Pensamento e personalidade de Bento XVI

Aura Miguel

O conclave de 2005 que elegeu Joseph Ratzinger foi dos mais rápidos. Durou 24 horas e o novo Papa foi eleito após somente quatro votações. O panorama dos cardeais eleitores foi muito diferente dos conclaves anteriores, cuja predominância era essencialmente europeia e italiana. Desta vez, o leque foi muito mais diversificado e, por isso, equilibrado, em idades e proveniências, correspondente à vitalidade da Igreja espalhada pelo mundo. Foi esse “mosaico” que se uniu para escolher o actual Papa. A rapidez da escolha desmentiu os prognósticos de muitos sectores (incluindo meios eclesiásticos e comunicação social), de que havia uma forte resistência à eleição de Ratzinger; aconteceu exactamente o contrário: os cardeais deram ao mundo um sinal de união ao elegerem tão depressa este Papa.

Depois da sua eleição, alguns consideraram que este Papa não viajaria tanto como o anterior, tendo em conta a sua idade. Afinal, Bento XVI já realizou 13 viagens fora de Itália, foi a quatro continentes (só falta a Ásia) e tem agendadas para este ano cinco visitas pastorais – todas elas para a Europa: além de Malta – que é já a 17 e 18 de Abril  – e ao nosso país, em Maio, o Papa vai a Chipre, em Setembro à Grã-Bretanha e a Espanha (Santiago de Compostela e Barcelona), em Novembro.

O panorama da Europa

Entre as preocupações que Bento XVI tem manifestado nos últimos tempos e em viagens pastorais – tendo como horizonte a visita dele ao nosso país – vale a pena sublinhar algumas coisas que tem dito à Europa. Esta Europa “cansada da fé”, onde Portugal se inclui e que, explica, no meu entender, a prioridade do Papa em centrar todas as suas viagens pastorais deste ano no Velho Continente..

Quando Bento XVI visitou a Baviera, em Setembro de 2006, afirmou que o Ocidente está ferido de morte. Ou seja, “sofre de patologias mortais da religião e da razão”, cujas consequências só podem ser desastrosas para a humanidade. E os sintomas destas “patologias” percebem-se pela maneira como os outros nos olham: “As populações da África e da Ásia admiram as nossas realizações técnicas e a nossa ciência, mas ao mesmo tempo assustam-se perante um certo tipo de razão que exclui Deus da visão do homem. (…) Para eles, a verdadeira ameaça à sua identidade não está na fé cristã, mas no desprezo de Deus e no cinismo que considera um direito da liberdade ridicularizar o sagrado.” (Munique, homilia, 10.09.2006)

Foi também na Alemanha, que o Papa deixou várias advertências: Não sabemos usar a razão convenientemente, estamos “mirrados” desde o iluminismo, perdeu-se o temor de Deus e o respeito pelo sagrado, enfim, “o Ocidente está há muito tempo ameaçado por esta aversão contra as perguntas fundamentais da sua razão” (Universidade de Regensburg, lectio magistralis, 12.09.2006)

Esta insensibilidade do homem ocidental penetra na nossa maneira de encarar o mundo – disse o Papa, desta vez, na Praça de Espanha, em Roma. Insensibilidade ao ponto de nos acostumarmos “todos os dias, através dos jornais, da televisão e da rádio ao mal narrado, repetido e ampliado”; habituamo-nos assim “às coisas mais horríveis que nos tornam insensíveis e nos intoxicam. (…) E os meios de comunicação social tendem a fazer que nos sintamos sempre «espectadores», como se o mal só afectasse os outros.” Resultado: está em curso uma “contaminação do espírito, que faz com que os nossos rostos sorriam menos, estejam mais tristes e não olhem os outros nos olhos (…). Passamos a ver tudo superficialmente” (Roma, homenagem à Imaculada 08.12.2009)

A questão viria ser retomada na República Checa, no passado mês de Setembro: “Nada é mais desumano e destrutivo do que o cinismo que nega a grandeza da nossa busca da verdade. Não há pior do que o relativismo que corrompe os verdadeiros valores que inspiram a construção de um mundo mais unido e fraterno. Por isso, é preciso readquirir confiança na fidelidade e nobreza de espírito e na sua capacidade de alcançar a verdade (…)” (Praga, Discurso às autoridades civis e políticas, 26.09.2009)

Um Papa realista

Bento XVI tem-se revelado um Papa realista e uma chave de leitura fundamental para perceber este pontificado é a última homilia que proferiu antes de ser eleito, onde ficaram famosas as palavras que proferiu, quer sobre a “ditadura do relativismo”, quer sobre o risco de permanecermos com uma fé infantil, “em estado de menoridade”: “Ter uma fé clara, de acordo com o Credo da Igreja, é com frequência rotulado como fundamentalismo. Ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar de um lado para o outro, ao sabor de qualquer vento de doutrina, surge como a única postura adequada aos tempos de hoje. Vai-se, assim, constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”. Nesta homilia, Ratzinger acrescentou ainda que “adulta” não é uma fé que segue as ondas da moda, nem a última novidade; adulta e madura é uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo”. (Homilia Pro Eligendo Romano Pontefice, 18.04.2005)

Esta lucidez de Ratzinger sobre o panorama da nossa fé vem da sua vasta experiência como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Pelas funções que desempenhou durante mais de 24 anos, conhece bem onde estão as feridas do homem e da Igreja. Por isso, são profundamente realistas as suas intervenções.

Portugal

É com estas e outras preocupações que Bento XVI definiu a sua agenda de viagens para este ano. E é com elas que aterrará em Portugal no próximo dia 11 de Maio, para uma visita de quatro dias ao nosso país.

Quatro dias para uma visita papal é mais do que é costume na Europa (Malta, por exemplo, são dois dias e Chipre três) e é significativo que o seu programa inclua encontros com fiéis em Lisboa e Porto, com toda a visibilidade que isso implica. Creio mesmo que se a visita do Papa fosse apenas centrada em Fátima, seria arrumá-la numa espécie de “prateleira religiosa”, confinada ao perímetro geográfico de um Santuário – um dos maiores do mundo, é certo, mas que muitos consideram a “sacristia do país” –  hipótese, aliás, pouco “ratzingeriana”, uma vez que este Papa, não tendo uma relação pessoal tão intensa com Fátima como tinha João Paulo II, tem-se distinguido também por falar aos que estão fora da Igreja. É prova disso o interesse com que largos sectores intelectuais seguem este pontificado (a partir das suas interpelações culturais), tendo em conta a lucidez e extraordinária capacidade do Papa para falar aos que estão de fora, ou hesitantes. É também neste contexto que se têm organizado sucessivos encontros com o mundo dos intelectuais e da cultura – que em Lisboa será na manhã de 12 de Maio no CCB.

Aura Miguel, jornalista

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