António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
De vez em quando a comunicação social vai noticiando acontecimentos passados com o uso do telemóvel por adolescentes nas escolas que não nos podem deixar indiferentes dado que o telemóvel, com as possibilidades que oferece, só impropriamente se chamará telemóvel. Será por essa e outras razões que, pelo menos na Europa, vão surgindo movimentos que preconizam a proibição do uso de telemóveis nas escolas, onde é vulgar a invasão da privacidade por parte de alunos e a divulgação nas redes sociais de vídeos realizados em meio escolar.
Todos sabemos que esse «telemóvel inteligente» – será essa a designação possível em português para significar o «smartphone» da língua inglesa – possui um grande número de funcionalidades para além da função tradicional de um telefone. E a evolução tecnológica tem sido de tal ordem que, se não deixamos de nos admirar, muito menos deixaremos de ser tentados a utilizá-la, nem sempre com a melhor consciencialização dos fenómenos com ela emergentes.
De equipamento de trabalho para adultos tornou-se o encanto de crianças, adolescentes e jovens e, naturalmente, a questão chegou às escolas: o «smartphone» é também aí um instrumento de trabalho escolar ou dificulta ele a acção pedagógica e educativa dos alunos? Ou, ultrapassando a disjuntiva, talvez se deva antes perguntar em que condições e situações pode o «smartphone» ser um instrumento de trabalho para crianças, adolescentes e jovens que frequentam as escolas. Complexa problemática que exige um pensamento também complexo, contra a tentação do pensamento simples, sabendo que a questão, sendo de maior acuidade por se tratar de pessoas em desenvolvimento, não deixa de dizer respeito aos adultos.
Com as redes sociais que diariamente utilizamos, vamos entrando num novo universo e lá vamos permanecendo. “Facebook”, “Instagram”, “Whats App” e quejandos são as portas de entrada para este universo virtual de onde dificilmente há saída. De vez em quando somos informados – seremos? – dos perigos que corremos com a utilização destas portas e ouvimos falar na necessidade de legislação proporcionada às realidades emergentes com a expansão e utilização das novas tecnologias. E, por vezes, numa qualquer reportagem, parece podermos concluir que fomos apanhados numa rede virtual de mirones de onde não sabemos como sair. Conheceremos, com certeza, os recantos da nossa casa, da nossa usual habitação, mas andaremos vagabundeando, sem o sabermos, neste universo virtual em que, deslumbrados com as possibilidades oferecidas, entrámos e construímos uma nova habitação cujos meandros ignoramos.
Numa obra de Davide Sisto [n. 1978] – “Fantasmas Digitais: Imortalidade, memória e luto na era das redes sociais” -, pensador italiano que me era absolutamente desconhecido até há dias, fui encontrar estas palavras: «Morrer no espaço virtual não é fácil. As pegadas digitais de uma pessoa falecida vagueiam eternamente e sem rumo, reaparecendo de forma intempestiva aos olhos de todos os seus contactos.» Será o que espera cada um de nós, a julgar pelas suas palavras: «O destino de cada um de nós está marcado: tornar-nos-emos ‘fantasmas digitais’, permanentemente à disposição da posteridade e, por conseguinte, involuntariamente, capazes de viver para sempre.»
Assim parece e assim nos dizem: no universo digital, desde que lá entrámos, nunca morremos definitivamente. E a entrada poderá até acontecer antes do nascimento nas imagens e fotografias pré-natais disponibilizadas pelos pais a familiares e amigos e continuará depois no espaço familiar e nos espaços das instituições escolares. E, espontaneamente, lembramos o Camões de «Os Lusíadas» quando, na “Proposição” do poema épico, assim canta: «E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da morte libertando: / Cantando espalharei por toda a parte, / Se a tanto me ajudar o engenho e arte.»
Poderemos não ser autores de obras valorosas, sobretudo se nos deixarmos levar passivamente pela torrente, e não teremos um poeta que nos cante, mesmo algum que não possua grande engenho e arte. Mas poderemos nós, mesmo sem arte nem engenho, entrar de mansinho nesse universo virtual e assim nos irmos da «lei da morte libertando» enquanto navegamos nesse mundo que nos espreita para nos envolver.
Não sei se tal «imortalidade» virtual conforta o leitor ou se o deixa preocupado com aquilo que poderá acontecer, após a morte, aos dados e informações deixados nesse universo de pegadas digitais que fomos deixando desde que entrámos pela primeira vez neste universo digital. Também não sei se se imagina o leitor a revisitar velhas decisões sobre o uso que tem feito destes meios tecnológicos. Mas que a situação dá que pensar, lá isso sei que dá. E importa que dê que pensar às escolas, sobretudo se a questão se lhe levantar no quadro da sua autonomia que não no quadro de uma qualquer proibição tutelar. E, sobretudo, importa que dê que pensar aos pais, eles que são os principais responsáveis pela educação dos filhos, seja pela acção adequada, seja pela fácil passividade.
Guarda, 9 de Setembro de 2024
António Salvado Morgado