Comunicação do Bispo do Porto no Encontro do Clero com a Comissão Diocesana de Infra-Estruturas “Não se pode esquecer também o contributo positivo da valorização dos bens culturais da Igreja. De facto, podem constituir um factor peculiar para suscitar de novo um humanismo de inspiração cristã. Com a sua adequada conservação e lúcido aproveitamento, tais bens, enquanto testemunho vivo da fé professada ao longo dos séculos, podem tornar-se um válido instrumento para a nova evangelização e para a catequese, convidando a redescobrir o sentido do mistério. Ao mesmo tempo, sejam promovidas novas expressões artísticas da fé, através de um diálogo assíduo com os cultores da arte. Com efeito, a Igreja tem necessidade da arte, literatura, música, pintura, escultura e arquitectura, porque ‘deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus’ (João Paulo II, Carta aos artistas, 12) e porque a beleza artística, como reflexo do Espírito de Deus, é um criptograma do mistério, um convite a buscar o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré” (João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, 28 de Junho de 2003, 60). 1. Para suscitar de novo um humanismo de inspiração cristã… Desde a Renascença que dialogamos com o Humanismo, porque ele é tão herdeiro como “concorrente” da tradição cristã. É herdeiro, porque a religião do Deus humanado ultima no homem a presença de Deus e faz da forma e do conteúdo humanos o lugar e a mediação da comunicação divina. Foi com considerações desta ordem que o II Concílio de Niceia (787) legitimou a iconografia cristã, em contraste com os iconoclasmos antigos (e modernos). É concorrente, quando forma e conteúdo humanos passam de mediação a absoluto, secando a fonte e limitando o horizonte. O nosso património artístico e religioso é mais conhecido do que reconhecido enquanto tal. Por parte de visitantes – e mesmo de crentes – limita-se bastante ao funcional, museológico ou cultual, na acepção fraca dos termos. Deixa de “falar”, por desconhecimento da linguagem. Deixa de sensibilizar, por ignorância ou pressa. Liga-se isto à “crise” do humanismo contemporâneo, tão pulverizado e mais diletante do que propriamente cultural (que implica “cultivo”, aprendizagem, assimilação e integração no conjunto). É vulgaríssimo sermos abordados por quem quer os nossos espaços para “eventos” absolutamente descontextualizados do seu significado essencial e global, exactamente pelas pulverização e diletância atrás referidas. A estes casos teremos de (cor)responder, quer abrindo horizontes ao interlocutor, quer antecipando nós ofertas mais consistentes e qualificadas. 2. Válido instrumento para a nova evangelização e para a catequese, convidando a redescobrir o sentido do mistério… Paredes meias com a desistência pós-moderna em relação ao sentido e ao contexto, vive a coisificação de pessoas, relações e rituais. Não lhe estamos completamente alheios, quando perdemos o sentido do mistério e reduzimos as celebrações a “cerimónias” e a arte religiosa a uma série de espaços “funcionais” ou objectos amovíveis, segundo o gosto e a ocasião. Directa ou indirectamente, o nosso património orienta-se para a liturgia, como a própria vida cristã. Resumindo a reflexão conciliar, o Catecismo da Igreja Católica acentua: “… na liturgia, a Igreja celebra principalmente o mistério pascal, pelo qual Cristo realizou a obra da nossa salvação” (nº 1067). E ainda: “Originariamente, a palavra ‘liturgia’ significa ‘obra pública’, ‘serviço por parte de/e em favor do povo’. Na tradição cristã, quer dizer que o povo de Deus toma parte na ‘obra de Deus’. Pela liturgia, Cristo, nosso redentor e Sumo-Sacerdote, continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa redenção” (nº 1069). Em muitas celebrações e outros actos podemos e devemos “catequizar” a partir do património religioso. Teremos de o “escutar”, estudando-o; de o fazer “falar”, interpretando-o; de “rezar” com ele, porque nos inclui no mistério pascal de Cristo. Seguindo neste ponto o tempo que corre, a “nova evangelização” irá tanto pela via estética como pela noética, ultrapassando as prevenções de alguma mente pela adesão pessoal inteira. Recuperando intuições de há dois séculos (cf. Chateaubriand, O génio do Cristianismo), a beleza do Cristianismo leva-nos à sua verdade. Oferecidas ambas como caridade, como acrescentou o Cardeal Martini, glosando Dostoievski: “A beleza que salva o mundo é o amor que partilha a dor”. Não nos fala de outra coisa a arte propriamente cristã, que começa e acaba sempre “cruciforme”. 3. Um convite a buscar o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré… O património artístico e religioso é especialmente “nosso” quando corresponde a esta consideração de João Paulo II: “os homens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes ‘falem’ de Cristo, mas também que de certa forma lho façam ‘ver’” (Carta apostólica Novo Millenio Ineunte, 6 de Janeiro de 2001, 16). Re(con)dução cristológica da vida e missão da Igreja, assim apresentada como programa para o presente milénio: “O programa […] concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para nele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Este programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milénio” (Ibidem, 29). Transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste… É dessa transformação que o nosso património artístico e religioso, litúrgica ou para-liturgicamente entendido, tem de ser sinal e activação, qual esperança “performativa” de que Bento XVI nos falou recentemente, significando isto que “o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida” (Bento XVI, Carta encíclica Spe Salvi, 30 de Novembro de 2007, 2). 20 de Outubro de 2008, Seminário Maior do Porto + Manuel Clemente, Bispo do Porto