Páscoa: «Vemos imagens de massacres de inocentes. Deus identifica-se com todo este sofrimento» – Pedro Vaz Patto

Presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz evoca destruição da guerra e as consequências da pandemia de Covid-19, apontando prioridades para o novo Governo em Portugal

Foto: Joana Gonçalves/RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Na sua tradicional mensagem de preparação para a Páscoa, a Comissão Nacional de Justiça e Paz denunciou as vozes da destruição e da guerra e as consequências da pandemia de Covid-19, , pedindo que a celebração da ressurreição passe pela atenção ao sofrimento dos outros e ao acolhimento de quem foge da violência.

Sim, a mensagem da Páscoa lembra-nos, por um lado, um Deus que não é indiferente ao sofrimento das pessoas. O Filho de Deus identificou se com os sofredores, com as vítimas de injustiça, com os doentes,…E é particularmente oportuno nesta altura em que nós todos os dias vemos imagens de destruição de morte, de pessoas que fogem e que deixam tudo, deixam a sua família;  têm que separar da sua família para ter um lugar mais seguro. Vemos imagens de massacres de inocentes. Deus identifica-se com todos este sofrimento. É isto que nos lembra a Páscoa, mas também nos lembra, que é a Ressurreição, e a Ressurreição diz-nos que a morte e a violência não têm a última palavra e, portanto, está nos uma esperança que nos permite enfrentar de outra forma todas estas realidades …

 

Mas é incontornável, parece-me sentir-se que esta Páscoa é muito marcada pela guerra, pelas suas consequências. Do ponto de vista da Comissão Nacional Justiça e Paz, como é que chegámos a este momento? A comunidade internacional não soube prever a situação?

Eu penso que de facto não soube, mas eu próprio também fiquei surpreendido. Quer dizer, algumas pessoas alertaram para o regime russo, para a possibilidade de se expandir. Já havia precedentes, como a invasão da Crimeia, mas verdadeiramente, acho que todos fomos surpreendidos. Quer dizer, não imaginávamos que se chegasse a este ponto de uma agressão tão nítida, tão clara, uma violação tão clara da Carta das Nações Unidas, do direito internacional. Depois da Segunda Guerra Mundial aprendemos um pouco com a lição dessa Segunda Guerra Mundial. Houve instituições que foram criadas – as Nações Unidas e a União Europeia – precisamente para evitar que se repetisse uma tragédia como essa. Portanto, essa é agora outra questão sobre a qual a Comissão Justiça e Paz deve refletir, e todos nós. Que nova ordem internacional vai ser criada depois desta guerra? É Evidente que não podemos ter ilusões de que, de um momento para o outro, o risco de guerras, de repetição de guerras vai desaparecer.

 

Mas corremos o risco de uma Guerra Fria alargada, como sugeriu o Papa Francisco ainda recentemente? 

Sim, parece que é isso que se está a verificar. Aliás, falava-se em Guerra Fria, mas a Guerra Fria, que existiu durante muitos anos depois da Segunda Guerra Mundial, não chegou a vias de facto. Quer dizer, não chegou a uma guerra verdadeira como esta que estamos a assistir agora. E isso é que é de facto preocupante.

 

Publicou recentemente uma reflexão sobre a resistência não violenta em tempo de guerra. O Papa já disse que nenhuma vitória pode ser festejada sobre mortes e destroços. Como é que está a ser a resistência civil à guerra na Ucrânia? 

Aquilo que gostaríamos de salientar, e também temos feito esta reflexão com os nossos colegas da Ucrânia é que não se nega o direito de legítima defesa e o direito de legítima defesa armada que está a decorrer na Ucrânia, mas não podemos esquecer que a guerra é sempre um mal. Pode ser um mal menor, mas é sempre um mal. Deve ser sempre um último recurso. Devemos sempre esgotar todas as possibilidades de resolver os conflitos de outra forma, porque verdadeiramente a guerra deixa feridas que não beneficiam ninguém, e portanto, isso choca-me um pouco. Verificar que os contendentes festejam, ou quase que festejam o número de baixas do inimigo, que até podem ser pessoas agressoras e, portanto, pessoas que nos ameaçavam, mas não deixam de ser pessoas humanas e, portanto, nunca, nunca é de festejar a morte. A questão da resistência não armada é algo que tem exemplos históricos e que devemos tê-los em mente, porque é sempre uma possibilidade que não devemos rejeitar liminarmente.

 

Falava dos contactos que estão a ser mantidos com os congéneres de outros países nas Comissões Nacionais, Justiça e Paz. Como é que tem corrido esse diálogo?

Temos de um lado, os nossos colegas ucranianos que fazem este apelo ao auxílio também armado. São pessoas que estão identificadas com a posição do governo ucraniano e pretendem que os países da Europa em geral auxiliem também com armas este governo. Noutras comissões, nós temos algumas reticências. Não questionamos o direito de legítima defesa, mas lembramos esta possibilidade de haver outras formas de resistência, que sejam formas de recusa de colaboração com as autoridades e que também exigem um sacrifício heroico. Através dessas formas, as pessoas também arriscam a vida, quando recorrem às armas e esse é um aspeto. Depois podemos perguntar até que ponto é que se deve transigir em relação a determinadas reivindicações? Até que ponto é que essa transigência não é uma forma de premiar o infrator, ou se é uma forma de evitar a guerra? Às vezes, quando se faz uma opção pela defesa armada, tem de se pensar sempre de acordo com a doutrina da Igreja, senão serão as consequências da guerra mais graves do que as consequências de não atuar.

 

Essa mesma reflexão tem estado muito presente, por exemplo, nas intervenções do Papa Francisco, que ainda recentemente pedia que as duas partes estivessem disponíveis para fazer sacrifícios. Penso que vai ao encontro do que nos diz neste nesta sua reflexão. A Santa Sé tem sido incansável na procura de uma solução para a paz. O Papa, praticamente em todas as suas intervenções, tem presente este cenário de guerra e admitiu recentemente que está a ponderar uma visita a Kiev. No atual contexto, uma deslocação do Papa Francisco à Ucrânia teria algumas consequências no poder negocial da Santa Sé do seu ponto de vista?

É difícil. Não sei se será viável essa forma de mediação. A deslocação do Papa é, antes de mais, um gesto simbólico de solidariedade para com as vítimas da guerra. Mas não sei se há condições. Normalmente, as viagens do Papa não são apenas umas viagens num plano político, diplomático de encontrar autoridades, neste caso do governo ucraniano ou das autarquias locais, mas também normalmente são um encontro com os fiéis, com o povo cristão, e isso será mais difícil de concretizar. Depois, o Secretário de Estado, o cardeal Parolin, disse que qualquer intervenção do Papa não deveria ser interpretada como uma opção a favor de um ou de outro campo.

 

Esse será o grande problema, porque uma eventual deslocação do Papa pode indiciar ou pode a outra parte ver como uma tomada de posição, não é? 

Sim, isso também tem estado presente nestes diálogos que temos tido com os nossos colegas ucranianos e eles têm dito que gostariam que o Papa fosse mais claro no sentido de identificar quem é a potência agressora, quem é o responsável máximo pelas guerras, pelos massacres que estamos a assistir. Mas eu vejo que da parte do Papa, da diplomacia da Santa Sé – neste caso, como em muitos outros – esta situação não é diferente do que se tem verificado noutras. Omitir ou não ter um discurso tão agressivo, sem deixar de denunciar….

 

Refere-se à importância de não fechar portas, não é?

É precisamente isso. Não fechar a porta a uma eventual possibilidade de negociação, em que o contributo da Santa Sé possa ser importante.

 

E um eventual encontro com o Patriarca de Moscovo, que foi avançada pela agência Reuters, e que ainda não foi confirmada pelo Vaticano, pode ser uma espécie de caminho alternativo para se chegar ao objetivo?

A intervenção do Papa junto do Patriarca Cirilo seria sem dúvida importante, porque de alguma maneira, o governo russo serve-se de – digamos -instrumentaliza este apoio da Igreja Ortodoxa para efeitos de propaganda. Não quer dizer que é uma componente religiosa, como algumas vezes se diz, uma componente religiosa da guerra. Não é, porque não está em causa nenhum princípio religioso, pelo contrário. Esta guerra é uma contradição em relação à mensagem do Cristianismo, seja católica, ortodoxa, seja o que for, e isso também têm dito os críticos ortodoxos do Patriarca de Moscovo. Mas, de facto, há esta instrumentalização que seria desejável que não que não se verificasse. E se houvesse outra atitude do Patriarca, poderia, de facto, isso alterar- se. Não sei se de facto, um encontro do Papa com o Patriarca Cirilo seria suficiente para mudar a sua atitude.

 

Mas dando por exemplo uma ideia que o Papa Francisco lançou; a ideia de uma trégua de Páscoa teria em vista, por exemplo, esta mobilização de os responsáveis cristãos de dois países de enorme tradição cristã para um momento simbólico, pudesse abrir caminho à paz. Uma proposta destas não deveria ter sido mais apoiada até pelos responsáveis políticos, como uma porta que se poderia ter aberto? 

Sim, sem dúvida, sem dúvida. Mas é preciso também haver outra atitude, outra abertura que ainda não se verifica da parte da parte destes responsáveis.

 

 

Após a sua viagem a Malta, o Papa Francisco denunciou a falência do sistema internacional na defesa dos mais fracos perante a lógica dos mais fortes, dos poderosos. E falou mesmo da impotência das Nações Unidas. Podemos tirar efetivamente essa conclusão?

Não diria que que as Nações Unidas não têm atuado. De facto, o secretário-geral das Nações Unidas tem sido muito claro a denunciar, pelo menos neste aspeto de denúncia, daquilo que se está a verificar em relação a esta guerra. Mas, para além disso, não se tem verificado, enfim, uma consequência…

Há limites. Desde logo, o sistema de votação no Conselho de Segurança que impede uma condenação clara da agressão russa. Em relação à nova ordem internacional, da parte do Papa há propostas no sentido da limitação, do desarmamento. Nesta última mensagem para o Dia Mundial da Paz fez uma sugestão de destinar a um fundo para combater a fome as despesas que seriam poupadas através do desarmamento.

Agora, o que nós vemos é que se propõe uma nova ordem internacional em que haja mais despesas para a Defesa, precisamente porque esta guerra não é algo de distante, a possibilidade da guerra, como nós poderíamos pensar anteriormente.

Não devemos pensar numa nova ordem internacional que seja o renascer daquilo que se experimentou antes da II Guerra Mundial, os conflitos de poder entre nações e entre blocos. Não devemos desistir de continuar nessa senda, em vez de regredir, construindo uma nova ordem internacional que siga, no fundo, aquela lógica “se queres a paz, prepara a guerra”. Não, “se queres a paz, prepara a paz”.

 

E como é que a comunidade internacional deve reagir perante indícios de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia?

Há um Tribunal Penal Internacional e este também foi um progresso que nós temos de saudar e de ter em conta, um progresso no sentido de dizer que na guerra não vale tudo e que, quando estão em causa estes crimes – crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio – é afetada a humanidade no seu todo, não apenas as vítimas ou a nação que é a vítima. Há estes instrumentos que têm os seus limites, não podemos negar isso.

Neste caso, o Tribunal Penal Internacional atua em relação a países que aceitam a sua jurisdição. A Rússia não aceita a jurisdição do Tribunal Penal Internacional; os Estados Unidos também, não há que dizê-lo. Isto limita, digamos, a possibilidade de tornar efetivas os julgamentos e condenações dos responsáveis por estes crimes de guerra ou contra a humanidade. Mas, mesmo assim, as pessoas que possam vir a ser investigadas neste âmbito podem, pelo menos, ficar com a sua liberdade de circulação limitada, porque nos outros países que aceitam essa jurisdição já poderão ser perseguidas criminalmente.

 

Sabemos que a guerra tem consequências que se fazem sentir, obviamente também em Portugal, na vida concreta das pessoas. Estamos a iniciar uma nova Legislatura. Que expectativas tem para este novo Governo, agora com maioria absoluta?

O facto de o Governo ter maioria absoluta cria um horizonte que permite uma certa estabilidade e uma certa coerência de políticas. Esse facto não deve servir para deixar de tentar consensos mais alargados em relação a muitas matérias: foi o que se verificou em relação à pandemia, pelo menos durante algum tempo, e em relação a tomadas matérias, em que houve uma coesão que facilitou o trabalho. Não estava em causa apenas o sucesso do Governo, estava em causa toda a harmonia social em relação à qual somos responsáveis.

Os tempos que se aproximam não são os mais favoráveis, não permitem grandes otimismos, precisamente por causa das consequências da guerra. Há um desafio grande que é o acolhimento agora destes refugiados da Ucrânia, em relação ao qual a sociedade civil tem agido com grande generosidade. É aquele aspeto positivo que contrasta com todo o negativo que nós vemos na guerra e que importa salientar. Nesta ação da sociedade civil, também é importante que o Governo apoie, também é um aspeto em que podemos conseguir consensos alargados.

Sem esquecer que, tal como na pandemia, as consequências não se revelam de igual gravidade para todos, também em relação a estes fenómenos da inflação, há quem sofra mais e quem sofra menos. Normalmente são os que já estão pior que sofrem mais.

 

Em que outras áreas que deveria predominar esse consenso alargado? Lembro, por exemplo, a questão da lei da eutanásia vetada pelo presidente da República, em que, de imediato, alguns partidos fizeram saber da sua disponibilidade para regressar ao tema. O Parlamento, nesta fase, deveria pensar no referendo?

A mim choca-me um pouco a prioridade que é dada a este tema, apresentar uma proposta de legalização da eutanásia logo no primeiro dia de efetividade de funções da Assembleia da República. A questão do referendo justifica-se, porque se repete agora um fenómeno que já se verificava na Legislatura anterior: os dois maiores partidos não tomaram uma posição durante a campanha eleitoral e estão divididos – uns mais do que outros, mas é uma matéria que é deixada à liberdade de cada deputado e o sistema eleitoral não permite à pessoa que vota num partido extinguir entre deputados que estão a favor ou que estão contra. Verdadeiramente, não me parece que haja do ponto de vista dos princípios democráticos – substancialmente, porque formalmente poderá haver, não digo que não, mas substancialmente – uma legitimidade democrática para votar sobre esta questão. E é isso que torna justificado, em meu entender, o referendo.

 

Ficaria surpreendido se algum partido avançasse com a possibilidade de realização de um referendo?

Tenho de reconhecer que não há grandes probabilidades de vir a ser alterada a posição que foi tomada na Legislatura anterior. Em todo o caso, os deputados são outros, pelo menos em grande. Não é demais tentar colocar esta questão.

Gostaria de dizer em relação à pandemia e às lições que deveríamos colher que há dois aspetos que que contradizem esta tentativa da legalização da eutanásia. Por um lado, em relação às medidas que foram tomadas, houve grandes sacrifícios de um ponto de vista económico, do ponto de vista de restrição das liberdades, ponto de vista social, etc. Grandes sacrifícios foram tomados para salvaguardar a vida das pessoas mais vulneráveis, dos idosos, mesmo que estas pessoas tivessem uma expectativa de vida reduzida, como é natural.

A vida não deixa de merecer proteção, mesmo nestas situações, e justifica todos os sacrifícios que foram tomados. Acho que ninguém se arrependeu e a eutanásia contradiz isto. E contradiz porque, no fundo, vêm dizer que em certas situações a vida humana deixa de ser proteção.

Por outro lado, também a pandemia nos revelou a importância, a dignidade e a nobreza da profissão médica e todas as profissões que lhe estão associadas. A eutanásia também contradiz esta missão essencial da profissão de médico, que é salvar as vidas, que é salvaguardar a vida humana, em todas as situações, até o seu fim natural.

 

Nós os entramos numa fase diferente, felizmente, da pandemia, já com alguns sinais de esperança. Um deles é este regresso das celebrações comunitárias e das várias tradições ligadas à Páscoa. É efetivamente, um sinal de esperança para o pós-pandemia depois destes anos de limitações?

Sim, de facto, há uma dimensão comunitária, pública, do fenómeno religioso que não pode ser esquecida. A dada altura, fixei uma frase de um do ministro francês que, uma vez que as pessoas podiam rezar em casa, não estava em causa a liberdade religiosa quando se faziam restrições de confinamento. Não: a liberdade religiosa tem uma dimensão comunitária, social, pública, que não pode ser esquecida e isso é reconhecido por todas as declarações internacionais de Direitos Humanos, de reconhecimento da liberdade religiosa.

Não estou com isto a dizer que não se justificassem algumas restrições, mas impedir em absoluto essa dimensão comunitária e pública da religião, pareceu-me negativo. É bom que haja este retomar das celebrações, das tradições próprias da Páscoa, são motivo de alegria. Também nos ajudam a viver a Páscoa nesta dimensão, porque não o fazemos sozinhos, mas fazemo-lo como comunidade.

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Agência ECCLESIA

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