Homilia de D. Manuel Clemente na Vigília Pascal VIGÍLIA PASCAL NA NOITE SANTA Sé do Porto, 7 de Abril de 2007, 22 horas Amados irmãos e irmãs. É esta vigília tão santa e esta noite tão luminosa que quase se resumem nelas todas as coisas que temos de celebrar como cristãos na roda do ano. Grande graça é também que se vá recuperando o lugar da Vigília Pascal, não só na liturgia mas também na vida das comunidades crentes. Muito há ainda a fazer, para que a Páscoa não se reduza ao cumprimento exterior do calendário, ainda que festivo, ou a uma simples festa da Primavera, ainda que sugestiva. Não, meus irmãs e irmãs, absolutamente não. A Páscoa ultrapassa em absoluto o sentimento, aliás bonito, das nossas reuniões familiares, ou a sucessão cíclica, mas afinal fechada, das estações do ano. A Páscoa é passagem sim, mas definitiva, para o mundo de Deus, em que Cristo nos inclui pela sua morte e ressurreição. Por isso mesmo nos exige mais do que simples comoção humana; chama-nos fortemente à renovação divina, no Espírito de Cristo. Em suma, conversão e não mera distracção. Mesmo para os primeiros discípulos e discípulas de Cristo, para os que o tinham seguido desde a Galileia, a Páscoa foi, ao princípio, demasiada novidade, porque ultrapassava qualquer das coisas conhecidas e punha em causa todas as previsões habituais. Foi assim com eles, deve ser assim connosco. O que nós já sabemos, correntemente falando, não basta para a realidade pascal de Cristo. Os nossos quadros mentais formam-se na habitualidade e prevêem a partir dela. Tanto é assim que a expressão artística da ressurreição é sempre aproximativa, confessam-no os próprios criadores. Não têm os escultores modelo para tal figura, não têm os pintores paleta para tanta luz, não têm os músicos instrumentos para tal sonoridade. Tudo novo, tudo mais do que futuro, tudo inaudito e último. Quase como no ditado popular: “queremos dizer amor e falta-nos a boca”. Mas não nos falte o coração, antes se alargue em cada celebração pascal! Ouvimos, ao correr das leituras sagradas, o relato da criação e, transtornada esta, o sucessivo anúncio da nova criação. Da primeira Páscoa e libertação do cativeiro egípcio, trouxeram-nos os profetas até à última Páscoa e libertação do pecado e da morte: da morte, porque do pecado, cativeiro mais profundo e atroz. Refaçamos o caminho das mulheres do Evangelho: vamos ao sepulcro, admiremo-nos com a pedra removida e, ainda mais, com a ausência do corpo, anteontem sepultado. Mas não nos amedrontemos com o anúncio celeste: “Porque buscais entre os mortos, Aquele que está vivo? Não está aqui: ressuscitou!”. Não nos amedrontemos, porque já o conhecemos como cristãos. Cristãos somos, por isso mesmo, que o sabemos vivo e presente, vitorioso da morte e agora senhor das nossas vidas! E sobretudo, irmãos e irmãs, nunca mais o procuremos “entre os mortos”, entre a poeira e os escombros dum passado tão visto como esquecido. Não, não o procuraremos “entre os mortos”, como ainda o fazem os que só se interessam por Jesus como uma história mais, ou pseudo-alternativa, mesmo que assegure muitas vendas, em filme ou romance, com algum escândalo à mistura… Não, irmãos e irmãs, Jesus Cristo vive, abrindo a nossa história, transmudando-a de humana em divina, porque repassada duma caridade imensa, que renova todas as coisas em Deus, princípio e fim absoluto. E assim se autentica e afirma, na caridade que gera desde a primeira geração crente, numa cadeia ininterrupta de fé e de vida, eclesialmente transmitida. Aquelas mulheres não o encontraram como o tinham visto sepultar; nem seria encontrado mais como um cadáver reanimado qualquer. Far-se-á “ver”, onde, como e a quem quiser, mas como vislumbre da vida mais plena, a que a nossa passará também, por idêntica caridade, vencedora em nós do pecado e da morte. A esta luz última, que o círio pascal acendeu na noite, percebamos também a novidade imensa do nosso baptismo. Também ele supera qualquer rito arcaico. Não é mera lavagem, nem simples purificação, gesto frequente nas religiões diversas. Muito mais do que isso, muito além do que estas, o baptismo imerge-nos numa água abismal, para renascermos outros, no Espírito de Cristo. Dizia-o São Paulo, com toda a clareza: “Fomos sepultados com Cristo pelo baptismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos para glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova”. Disse Santo Ireneu, no segundo século da nossa era, que “a glória de Deus é o homem vivo”. E realmente o entendemos, quando contemplamos a humanidade como saiu das mãos do Criador, na terra emergente das águas primordiais. Como se admirava o salmista: “Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o vosso nome em toda a terra! […] Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a Lua e as estrelas que vós criastes: que é o homem para vos lembrardes dele, o filho do homem para com ele vos preocupardes? Quase fizestes dele um ser divino; de glória e de honra o coroastes!” (Sl 8, 2-6). Mas, se entendemos, nos melhores momentos, a glória divina esplendente em cada ser humano, com prodigiosas capacitações de engenho, ciência, arte e sensibilidade, também nos contristamos, em tantos outros, com as decepções e despistes de tanta vida esbanjada e tanta ocasião perdida, na vida nossa e alheia. Também por isto, a frase de Santo Ireneu não acabava ali. Completa, diz o seguinte: “A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus”. Di-lo como definição e di-lo como advertência: a humanidade de todos e de cada um manifesta o poder e a glória de Deus, mais até do que o brilho da primeira Lua cheia da Primavera, que nos marca a Páscoa em cada ano; mas só e enquanto não se separar da eterna fonte de luz e de vida, que é o mesmo Deus, antes se voltar constantemente para Ele, como seu alimento e substância: “a vida do homem é a visão de Deus”. Assim está, no próprio Deus, o Filho em relação ao Pai, diz-nos, por sua vez São João, abrindo o quarto Evangelho: “No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus [como que voltado para Deus]; e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). E essa vida, que recebe e retribui ao Pai, é a que nos trouxe e traz, pelo dom do Espírito: “A quantos o receberam, aos que nele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12). Isto somos nós, os baptizados, filhos de Deus, renascidos em Cristo das águas novas do Espírito em que a humanidade se recria e o mundo inteiro finalmente respira, na glória recuperada da criação final. São magníficas as imagens desta última glória, conseguida na água viva que a todos transfigura; são magníficas, neste trecho do Apocalipse: “Mostrou-me, depois, – trata-se dum anjo ainda -, um rio de água viva, resplendente como cristal, que saía do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça da cidade e nas margens do rio está a árvore da Vida que produz doze colheitas de frutos […]. Não mais haverá noite, nem terão necessidade da luz da lâmpada, nem da luz do Sol, porque o Senhor Deus irradiará sobre eles a sua luz e serão reis pelos séculos dos séculos” (Ap 22, 1-5). Mal nos ficaria, irmãos e irmãs, se subestimássemos estas magníficas imagens, tomando-as por demasiado poéticas e insuficientemente realistas para o dia a dia que levamos ou suportamos, nós e os outros. Mal nos ficaria, de facto, porque o Baptismo em Cristo, nos mergulha precisamente nestas últimas coisas, em que a sua ressurreição nos vai introduzindo também. E é com o coração cheio da última glória e luz, que seremos capazes de abrir clareiras onde só há sombra espessa em tantas vidas, de irradiar mais luz onde só enegrecem as trevas. Chamavam iluminação ao baptismo, os nossos irmãos antigos; e nós o devemos repetir, pois de luz se trata, recebida de Deus e difundida pelos seus filhos e filhas, renascidos em Cristo, ele que “era a luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1, 9). Como é bom, como é estimulante, deparar com alguém baptizado, nas mais diversas circunstâncias da vida! Da família à profissão, da vida social à política, da economia à cultura, é por ele ou ela que o Espírito de Cristo ilumina e renova as coisas, dando realismo às profecias bíblicas e toda a consistência à esperança que alimenta a humanidade, apesar de tudo. Aqui nos queremos nós, baptizados ou catecúmenos, nesta noite santa. Em gratidão e compromisso, por tudo quanto a graça de Cristo continua no mundo, pelos corações que renova. Para sairmos depois, como aquelas santas mulheres do Evangelho, que, “voltando do sepulcro, foram contar tudo isto aos Onze, bem como a todos os outros”. – Há tanta gente à espera do nosso testemunho pascal! + Manuel Clemente