D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro
A realidade ai está. Não se pode iludir. Tempos houve com muitos padres, criavam-se paróquias para lhes dar lugar. Agora, diminuiu a população, há paróquias desertas, que permanecem entidades canónicas, mal servidas por padres que correm, porque o seu número diminuiu. Há dioceses, com menos população do que grandes paróquias das zonas urbanas, ao lado de dioceses normais e de outras com uma extensão geográfica e populacional que não lhes é fácil a ação pastoral renovadora, recomendada pelo Vaticano II. Tornou-se difícil operar a renovação da Igreja, mediante a ação direta junto das pessoas e a sua participação nas comunidades. Por razões óbvias, nas dioceses e paróquias com pouca gente, manter ou edificar comunidades vivas, com uma população residente diminuta, envelhecida e pouco dada a “novidades” na religião parece pesadelo ou ideal sem consistência. Gente a mais por um lado, gente a menos por outro, num país pequeno, onde a mesma Igreja tem a responsabilidade de evangelizar, alimentar a fé e ajudar a crescer, onde quer que as pessoas vivam e qualquer que seja a sua idade e capacidade… Nesta Igreja, que deve ser uma comunhão efetiva de Igrejas Irmãs, subsistem comunidades, umas ricas com meios e recursos de sobra e onde se esbanja, e outras empobrecidas de pessoas e de meios, onde cada dia tudo se torna mais difícil, e onde a solidariedade se devia sentir. Esta, desde longe, uma realidade da Igreja em Portugal.
Na sociedade sente-se igual problema em relação a freguesias e municípios, o que levou o poder político a tomar medidas de solução não pacífica. Se a situação é semelhante, em regra as freguesias são paróquias, na Igreja e no Estado as propostas variam pela natureza das entidades, havendo, porém, vantagem de alguma reflexão em comum, não para reivindicar, mas para abrir caminhos. Diferentes, embora, os problemas não são separáveis. As respostas, dado o objetivo prosseguido, é que não são coincidentes. Enquanto no Estado se tenta um caminho que responda às necessidades dos cidadãos, suprimindo e anexando, na Igreja, o caminho deve ser outro. Há paróquias já anexadas e padres ao serviço de várias, que, todas juntas, nem sempre somam mil habitantes. Esta solução fora do tempo, pela referência e tónica clerical, que, além de transitória, nada tem de tranquilizadora, por estar cheia de novos problemas, sobretudo no que se refere ao equilíbrio humano e espiritual dos padres e à dificuldade de satisfazer direitos e deveres dos cristãos.
Todas as estruturas da Igreja estão ao serviço das pessoas, são transitórias e duram enquanto promovem e não dificultam nem impedem a vida dos cristãos e das comunidades. Ao longo da história, muitas delas foram fruto de pressões e de interesses, estranhos ao sentido eclesial e ao bem espiritual. Passados séculos e, mais recentemente, dezenas de anos, o erro mantém-se e, apesar da vida que mudou, estruturas caducas permanecem intocáveis. O que se inova é tirado a ferros, e logo se fecham portas, não venha aí a tentação de mais novidades pastorais. A criação de seis novas dioceses no século passado, nunca foi pacífica, dado interesses tocados e prestígios beliscados. A história está feita. Entretanto, houve um concilio, muitas coisas mudaram na Igreja e na sociedade, deram-se orientações… Mas o povo continua sem voz e o zelo e o bom senso, apenas privilégio de alguns.
O problema das paróquias e das dioceses, grandes ou pequenas, não é questão de números e territórios. Presente a necessidade de acertos, por vezes urgentes, o problema é de bairrismos ferrugentos, da mentalidade de quem preside, das pressões corporativas, da pouca liberdade de participação, permitida aos cristãos afetados. O padre é indispensável para o que lhe é específico, mas a solução é eclesial, não clerical. Há capacidades não aproveitadas no Povo de Deus, frente à realidade e urgência da missão. Criam-se, mundo fora, dioceses com um enorme território e um número diminuto de padres. E funcionam, crescem e geram comunidades. Contam com o que têm, abertas à solidariedade de outras, nem sempre das mais ricas. Na Igreja, como na vida, quem mais ajuda os pobres, são os pobres.
No caso das paróquias do interior, há caminhos em aberto para explorar: unidades pastorais de espírito conciliar e prática sinodal; equipas eclesiais, com lugar de direito aos leigos e, com eles, em atitude ativa de procura e experiência; abertura a novos ministérios e a experiências válidas, já testadas noutras zonas; programação realista, olhando as pessoas, as suas capacidades e necessidades; reflexão aberta sobre os problemas, a nível diocesano e nacional, com gente que conheça, pense e deixe pensar… O que se está a fazer, na maioria dos casos, não vai além de uma pastoral de conservação, sempre com base no padre, pronto para celebrar muitas missas, mas sem tempo para rezar, estudar, acolher, educar na fé, e abrir horizontes de vida, àqueles a quem sempre foram fechados.
A Igreja em Portugal precisa de parar e repensar, não a partir das franjas pastorais, incómodas para quem vê de fora, mas da vida das pessoas e das comunidades. Precisa de conversão dos responsáveis, a exemplo de João XXIII e de Paulo VI, que se negaram a privilégios de séculos e escolheram o caminho de Paulo (Fil 2, 3-4), considerando os outros superiores a si próprios, procurando não o seu próprio interesse, mas o dos outros. Isto exige descer, voluntariamente, do carro do poder e das honras e trilhar o caminho pedregoso dos pobres e falar aí a sua língua. O carro triunfal não volta. Acabou o tempo dos senhores e dos donos das pessoas e do templo. O lugar de Cristo só a Ele pertence. Agora, é o tempo, evangélico e privilegiado, da Igreja serva e pobre, que, de pés no chão, luta e sofre para dar testemunho da verdade e ser sinal de salvação e de esperança. Poderá haver sempre e mais ainda em tempos de crise, algo de mais fascinante para um servo do Povo de Deus e que sente, dia a dia, as urgências do Reino?
D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro