Luís Silva, Diocese de Aveiro
Ninguém ousou formular a afirmação que chamei a título, mas bem a poderíamos reconhecer em muitas das opções, ao longo da história, e nos alicerces em que parece suportar-se o nosso tempo.
Há como que uma sedução do porvir, talvez por se presumir a ele se dever o ‘provir’. Essa sedução mata a tensão própria do ser humano que o faz situar-se entre o ‘sido’, o ‘sendo’ e o ‘vir a ser’, tensão que, se quebrada, gera uma espécie de ‘nado-morto’ pouco humano. O humano faz-se de ‘terra’, de condição vivida e não de um não-ser utópico. (Não é de hoje esta minha tese, mas revisito-a, pela oportunidade que proporciona para a reflexão que pretendo desenvolver).
Quando germinavam em mim as ideias que pretendo verter para este texto, reavivaram-se na minha memória, duas ‘narrativas’.
Recordei um livro de Mário Vargas Llosa, ‘a civilização do espetáculo’, onde o Nobel Peruano desenvolve uma leitura crítica, não da diversão e do espetáculo em si mesmos, mas da ‘gravitação’ (o termo é meu) da nossa cultura em torno deste aspeto da mesma. Na minha formulação já se subentende a crítica. O divertimento e o espetáculo integram a cultura, mas não são o seu todo.
Vivemos, porém, na linha do que também sustenta Lipovetsky em vários dos seus livros, embrenhados num cultura que distrai, que vive de e para a diversão, tudo reduzindo a espetáculo.
Não leio este fenómeno (no sentido original do termo, entendido como ‘manifestação’, expressão visível, manifesta, de algo real que está implícito, escondido sob a manifestação) defendendo a recusa do papel do espetáculo, como se de um ‘neo-luditismo’ se tratasse (os luditas opunham-se à mecanização e ao desenvolvimento industrial), mas antes com o intuito de secundar a ideia bíblica de que ‘onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração (Mt 6, 21 – cito a partir da edição de https://www.paroquias.org/biblia/).
Digo-o, de outro modo.
A denúncia feita por Llosa pretende evidenciar que estaremos perante uma nova alienação.
Marx, consequente com o que aprendera do seu mestre, G. W. F. Hegel, que desenvolvera o conceito de forma mais sistematizada, entendeu que a religião era ‘ópio do povo’ e fator de ‘alienação’ em relação aos problemas sociais da vida real.
Entendo que Marx leu, de forma errada, o papel da religião, mas a sua ‘popularização’ do conceito de ‘alienação’ é um mérito que vale a pena recuperar. Hoje, porém, a alienação tem outra fonte.
A religião não só não contribui para a alienação, na minha perspetiva, como, pelo contrário, é uma das escassas reservas de retorno à ‘humanidade’. Hoje, vivemos uma alienação de sinal contrário.
A do século XIX, denunciada (erradamente, como dizia, anteriormente) por Marx, atribuía a outro (alienus) aquilo que devia ser atribuído ao ser humano: seja a causa das condições sociais adversas, seja a sua própria resolução. (Feuerbach acrescentou a esta leitura da alienação um outro traço que perdurou, paralelamente ao de Marx: a consideração de que o que era atribuído a Deus – omnipresença, omnipotência, omnisciência – mais não era do que projeções em Deus do que o Homem desejava para si mesmo, sendo, por isso, para ele, de reduzir a ‘Teologia’ a uma ‘Antropologia’). Era uma alienação negativa. Retirava-se ao Homem para entregar a Deus.
Hoje, poderemos estar perante uma nova alienação. Diz-se do Homem o que não lhe pertence. Pretende-se uma omnipotência, uma omnisciência, uma omnipresença que não são próprias do ‘humano’ que, por natureza e definição, é situado, terreno, feito de mundo e corpo.
A ‘civilização do espetáculo’ distrai-nos dos limites e convence-nos da ‘ilimitude’.
Uma tal constatação fez-me revisitar uma outra narrativa. Esta, já não feita de texto no papel, mas de história na tela do cinema. Refiro-me à primeira versão cinematográfica (em desenhos animados) de o Rei Leão.
Estávamos em 1994 quando o filme chegou às salas de cinema portuguesas.
Eu estava, nessa altura, na equipa do secretariado diocesano da pastoral juvenil de Aveiro, que contava com uma modelar liderança, que lembro, vezes sem conta, por nela reconhecer os traços de um autêntico mestre.
A equipa foi convidada a assistir ao filme, em atividade de reforço de espírito de grupo. Não consegui ir, mas rapidamente pressenti que tinha de participar da ‘agenda comum’ que aquele filme proporcionara. Tinha de o ver, para que as muitas ‘agendas ocultas’ se tornassem ‘agendas explícitas e comuns’.
Não é, porém, esta circunstância o centro da minha reflexão.
Antes, analisar o conteúdo da história. Há, nela, lentes de precisão com que poderemos analisar a nossa sociedade.
Logo no primeiro visionamento, – sem que o tenha conseguido confirmar, porém! – me pareceu que o filme tinha elementos implícitos da leitura bíblica (judaico-cristã) da sociedade: a voz do Pai (a consciência como lugar sagrado), a figura de Rafiki (uma espécie de sacerdote, à maneira de Melquisedec), as hienas e Scar (a sedução do mal), a ideia da zona sombria (como que a lembrar os lugares ‘ínferos’ e, ao mesmo tempo, a missão da moral), etc.
A estes elementos somava-se um muito bem desenvolvido enredo, em que o mal consegue disfarçar-se de bem, criar ilusão, afastar quem poderia denunciá-lo, seduzindo com disfarces, num primeiro momento, para, num segundo, revelar a sua própria natureza.
Simba, o protagonista, que é afastado pelo tio, Scar, que criara uma cilada seu irmão e pai de Simba, Mufassa, acaba por fugir da sua terra, convencido de ter sido o causador da morte do seu pai (o espetador sabe, à maneira do que faziam as tragédias gregas, aquilo que os protagonistas não sabem). Nesse período de fuga, a alienação é completa. Encontra dois amigos que, sem maldade, porém, mas seduzidos pela ‘civilização do espetáculo’, o pretendem distrair do seu passado (em que ele vê culpa e necessidade de reparação), centrando a sua vida no célebre ‘akuna matata’, uma espécie de novo ‘carpe diem’: ‘não há problema’; ‘vive o agora’.
Assim se passa algum do tempo até que um encontro inesperado com ‘Nala’, uma sua amiga de infância, o desperta do torpor em que está. Não é, porém, imediato, e as dúvidas tomam conta dele.
– ‘O que fazer? O passado já lá vai e não pode regressar-se a ele. As hienas e o tio Scar têm o poder e não há que enfrentá-los.’
Mas Rafiki, o babuíno que lê, nos sinais dos tempos, que Simba não está, afinal, morto, não desiste de o procurar e fá-lo reconhecer que estava alienado e que a sua alienação está a ter custos: a sua terra está tomada pela escuridão, pois o poder despótico de Scar e das hienas (as hienas estarem no governo é bela metáfora da inversão da hierarquia dos valores e das verdades) tudo destruiu. O que era luz é, agora, sombra e escuridão.
Acordado, então, por Rafiki, Simba abandona o ‘akuna matata’ e decide assumir a sua verdadeira natureza e missão. As sombras, os destroços, a escuridão, dão lugar à luz, ao renascimento da natureza, à beleza.
Os tempos estão sombrios… Não é uma sombra de hoje, de há dias, de há meses… É de longa data. Temos vindo a aceitar a alienação como uma condição saborosa, sedutora. Como a Hidra de Lerna, que Héracles (‘Hércules’, como se popularizou) teve de enfrentar, e que com múltiplas cabeças (6? 7? 100?) parecia invencível, por estas renascerem sem cessar, a alienação ganha novas formas. É, hoje, a sedução do progresso sem fim; a desvinculada certeza de que o novo é realidade a acolher, sem reservas, sempre; a convicção de que mudar é sempre virtuoso e que jamais envelheceremos ou deixaremos de ser fortes e pujantes, belos e formosos. E, quando, como espelho omnipresente, alguns se mostram disformes (pela deficiência, a doença, a velhice…), há que afastá-los. Se possível, para sempre (veja-se como já alguns países não têm nascimentos de crianças com deficiências! Ou como, entre nós, a velhice é tratada de forma assética, distante e abandonada…)
Só quando assoma à nossa vida a dureza de uma doença, de uma morte, de um abandono, de uma desilusão, de um desemprego, é que vemos que os outros, alienados nas suas vidas, não nos acompanham, porque vivem torpores de que só despertarão, solitários, quando também a eles assomarem circunstâncias semelhantes. Mas cada um na sua vez. (Não como condição de humanos solidários.) E, nessa vez, individualizada e solitária, gritaremos, sem que nos ouçam, fechados nos seus ‘phones’ existenciais, distraídos, divertidos, porque, como afinal se diz, ‘é isso que levamos desta vida’. Para onde? – Caberá perguntar. Precisamos de nos acotovelar uns aos outros, para que nos despertemos. E não ter medo de que a religião nos desperte e nos diga que não somos deuses, mesmo que a ilusão seja sedutora. É, curiosamente, a ilusão de sempre: a ilusão da serpente. A ilusão de Adão, a ilusão de Eva, a ilusão da humanidade autossuficiente. A fonte de todos os males, a fonte dos pecados.
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