Papa não teme pôr em risco a sua reputação e a sua vida

Autor do livro “A Lista de Bergoglio”, Nello Scavo, analisa o pontificado de Francisco

Agência Ecclesia – Como lhe surgiu a ideia deste livro?

Nello Scavo – Logo após a eleição do Papa Bergoglio, surgiram suspeitas e acusações que o envolviam como cúmplice da ditadura argentina, de 76 a 83. Isto surpreendeu-me! Eu não conhecia muito sobre esta época histórica e comecei a investigar.

Faço jornalismo na área da investigação criminal e de guerra e, instintivamente comecei a investigar a consistência destas acusações que eu considerava muito graves. Entretanto, logo nas primeiras horas após a eleição de Bergoglio, começava-se a perceber que estas acusações assentavam em testemunhos indiretos, em documentos redigidos pela polícia política que não eram credíveis, assim como outras referências um pouco estranhas, como uma fotografia que mostrava Bergoglio em 1994 a dar a comunhão ao general Videla, onze anos depois da queda da ditadura. Aquela fotografia estava manipulada para que não se percebesse quem era o sacerdote. Eu encontrei o original e percebe-se claramente que não se trata de Bergoglio, mas de um sacerdote argentino de idade muito avançada.

 

AE – Estava diante de acusações com falta de fundamento?

NS – Sim. Percebi que as acusações eram muito estranhas e avancei com esta investigação, que inicialmente publiquei no meu jornal, em Itália, “Avennire”.

Depois surgiu este livro, porque enquanto recolhia informação, algumas pessoas diziam-me ter sido ajudadas ou protegidas por Bergoglio durante a ditadura. Vozes que inicialmente eram apenas esporádicas, mas se multiplicaram.

Eu pude verificar com documentos e testemunhos precisos a veracidade destes factos, chegando à conclusão de que Bergoglio bem como os jesuítas argentinos, com a colaboração de jesuítas brasileiros, desenvolveram toda uma atividade de proteção de dissidentes e pessoas perseguidas pela ditadura. Uma atividade extraordinária, correndo riscos muito grandes, mas que permitiu salvar muitas pessoas.

 

AE – É um momento histórico em que, na Argentina, coexiste uma Igreja da coragem e da denúncia e outra do conformismo e do silêncio?

NS – Na época da ditadura, a Igreja estava dividida. Uma parte do episcopado era claramente cúmplice, pensava que a ditadura era a solução para os problemas da Argentina a sair de uma guerra civil, entre movimentos de esquerda e instituições mais próximas da direita política. Há também uma parte desta Igreja que emerge, nesta tensão, e empenhou-se no salvamento de muitas pessoas que tiveram a coragem de denunciar violações gravíssimas dos direitos humanos.

 

AE – Recorda casos concretos?

NS – Recordo casos como a Paróquia de Santa Cruz onde alguns leigos foram mortos devido a um infiltrado dos serviços secretos, penso nos padres Palotinos, no Bispo Angelelli, ou sacerdotes como o padre Maurício Silva. Foram assassinado apenas porque entenderam que desenvolviam uma atividade subversiva.

Na hierarquia a Igreja era ambígua. Mas nas bases a Igreja na Argentina desenvolveu, com o tempo, uma consciência crítica muito forte. Bergoglio encontrou-se neste contexto histórico e escolheu salvar a vida de algumas pessoas, no silêncio e no segredo, o que também era motivo de acusação.

Hoje temos a certeza que se Bergoglio se tivesse exposto na sua luta pelos direitos humanos, teria entrado no rol de suspeitos da polícia militar dos serviços secretos e não poderia salvar ninguém. Ele fez uma escolha muito difícil, muito corajosa, mas que permitiu a estas pessoas estarem hoje vivas e poderem revelar uma parte de Bergoglio que não conhecíamos.

 

AE – Não terá sido fácil recolher estes testemunhos, provenientes de uma época de tanto sofrimento…

NS – Foi muito difícil mas também apaixonante! Muitas destas testemunhas não queriam falar inicialmente. Queriam respeitar o silêncio que tinham decidido impor a estes acontecimentos.

O silêncio surpreendeu-me, no início. Questionava-me: se Bergoglio é inocente porque é que os seus amigos não falam e não o defendem? Ele, pelo contrário, manteve sempre o segredo em torno destas atividades, um pouco também como diz o Evangelho, que “a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda”.

Foi difícil convencer as pessoas a falar porque sentiam-se a violar um pacto de silêncio e de amizade para com Bergoglio. Depois, diante de documentos que tinha encontrado, testemunhos pessoais e processos dos tribunais, alguns decidiram contar a verdade para dar a conhecer ao mundo quem é verdadeiramente Mario Bergoglio e para afirmar que nenhuma suspeita lhe pode ser atribuída.

Ainda outro elemento: alguns organismos internacionais, não apenas a justiça argentina mas também a Amnistia Internacional, que não é uma organização católica, tinham elaborado um documento interno, que se publica neste livro, e na qual explicam as razões pelas quais Jorge Mario Bergoglio não pode ser acusado. Não existe nada contra ele.

 

AE – Assim que foi anunciado, o nome de Mario Bergoglio deixou muitos surpreendidos, que não esconderam o seu desconhecimento em relação ao homem escolhido para suceder a Bento XVI. No seu caso, e depois desta investigação, ficou com uma outra ideia do Papa Francisco?

NS – Eu conhecia muito pouco de Jorge Mario Bergoglio e devo dizer que muitos jornalistas, mesmo vaticanistas, conheciam pouco deste homem. Outros já o seguiam há algum tempo e imaginavam que um dia pudesse chegar a Papa.

A reconstrução do livro, a forma com estas pessoas me contaram como era Bergoglio naquela época e a amizade que continuaram a cultivar com ele até agora, porque Bergoglio não as perdeu de vista, possibilitou-me o conhecimento de um outro Jorge Mario Bergoglio. Ele não é apenas o arcebispo, o homem institucional. É verdadeiramente um pastor da Igreja que não teme pôr em risco a sua reputação, a sua vida, para que possa salvar, nem que seja apenas uma das suas ovelhas do seu rebanho. É isto que podemos verificar na coragem que ele está a demonstrar no seu pontificado.

 

AE – Entende que a coragem que demonstrou diante da ditadura militar lhe fará falta neste momento em que trabalha na renovação da Cúria e quer mais transparência no sistema financeiro do Vaticano?

NS – Muitos pessoas perguntam-me se Bergoglio está em perigo. Eu não creio! Penso que ele não se preocupa minimamente com isso. No entanto, o Papa está a criar muitos inimigos porque tem a coragem, por exemplo, de denunciar a alta finança, os grandes bancos, o poder político que não se ocupa dos pobres nem dos últimos. Pede a todos para que se ocupem destas pessoas. Estou a pensar nessa viagem profética a Lambedusa, o lugar onde desembarca quem quer emigrar para a Europa e o lugar onde a Europa se deve responsabilizar por tantas vidas que se perdem. Porque é que os países de onde provêm estas pessoas são ainda hoje, em 2013, atingidos por pobreza, por guerras?

O Papa está a mudar a forma de viver, até dentro da própria Igreja. O Papa está a mudar muito a forma como de fora se encara a Igreja. Por isso este é um Papa muito forte, que conquistou o carinho e a amizade de tanta gente, crentes e não crentes. A sua força, alimentada pela sua profunda espiritualidade, levá-lo-á muito longe!

 

AE – E o que pensa o Papa deste livro?

NS – Não faço ideia! Este trabalho não o envolveu. Sei que recebeu uma cópia do livro e que estava ao corrente. No entanto, ele nunca quis falar destes acontecimentos e, a menos que um dia os queira comentar, vai manter-se em silêncio.

Até eu, com o tempo, mudei de opinião: quando inicialmente achava que ele se devia defender, hoje penso que fez bem em ter-se reservado ao silêncio…

HM/PR

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Agência ECCLESIA

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