A Sexta-feira Santa é o dia mais tenebroso do ano. Põe diante de nós a possibilidade de compreender ou não compreender, de aceitar ou não aceitar as realidades mais obscuras da vida: o sofrimento e a morte.
Procuramos pôr-nos na pele dos outros, nos seus cenários e tentamos ver como resistiríamos. Por exemplo, no cenário das vítimas das guerras que decorrem no nosso mundo, em várias latitudes e em circunstâncias diversas. Como resistem enquanto pessoas, como mantêm a fé no futuro, como subsiste neles a esperança?
Podemos procurar entrar na mente e no coração dos que procuram a verdade e sentem esmagá-los o peso da mentira, que corrompe, destrói, aniquila e mata a justiça. Como resistem os que são vítimas da mentira e que não conseguem fazer valer a verdade de si mesmos, dos outros?
Podemos tentar entrar nos sentimentos dos que se encontram nos mais duros sofrimentos e se apercebem da impossibilidade humana da cura. Como continuam a manter a alegria de viver e a desejar a paz do coração para enfrentar o desafio?
No fundo, a Sexta-feira Santa da Páscoa ou as sextas-feiras da existência trazem-nos sempre o confronto com a realidade mais obscura da vida e exigem uma resposta, que está sempre em construção, que nunca está definitivamente arrumada.
Há lugar para a fé; há lugar para a esperança; há ainda lugar para o amor?
A Sexta-feira Santa foi o dia mais tenebroso para Jesus. Encontrou-se diante do mesmo dilema. Viveu em primeira pessoa os dramas da humanidade ferida, as injustiças face à verdade, o sofrimento que O aproxima da morte sem retorno. Como Homem e Deus, acolheu em si os dias tenebrosos de toda a humanidade, quando no Getsémani aceitou beber o cálice que lhe foi dado e no Calvário aceitou a injustiça da mentira que O levou à morte.
Aí foi provada a Sua inabalável confiança no Pai, a força viva da Sua esperança e a qualidade única do Seu amor. Seguiu em frente numa entrega total ao Pai pela humanidade, conhecedor da verdade, apesar da injustiça e no meio do sofrimento mais atroz. Derrubou todas as cadeias que O podiam aprisionar e que podiam matar dentro de Si o gosto de viver e a alegria de Se dar.
Ali Jesus mostrou-nos que Deus está connosco de muitas formas e em muitos lugares, mas assegurou-nos que Deus está sempre onde há vítimas das guerras, onde se destrói a verdade e onde impera o sofrimento. Deus está sempre aí para acompanhar cada um e todos os povos que, mesmo nessas circunstâncias, são chamados a renovar a esperança.
A experiência da Sexta-feira Santa de Jesus permite a cada um de nós, não somente tentar perceber a experiência dos outros, mas entrar na sua própria experiência de vida. Como resolvemos os dramas das nossas guerras interiores e exteriores, como aceitamos os atropelos à verdade e as injustiças que nos tocam pessoalmente, como enfrentamos os nossos desencantos e sofrimentos leves ou profundos, físicos ou morais?
Jesus manifesta-nos pela Sua própria experiência que tudo isso pode ser vivido com Deus, pois Deus está aí com toda a certeza. A prova da fé, da esperança e do amor tem de enfrentar-se nessas circunstâncias que, afinal, não são momentos isolados do nosso percurso terreno, mas acabam por ser transversais a toda a nossa vida.
Superar as provações por meio da confiança em Deus aí presente é a grande tarefa da nossa vida, que construímos dia após dia, acolhendo o dom do Alto e percorrendo um verdadeiro caminho espiritual e crente dominado pela confiança e pelo amor Àquele que nos ama e nos fortalece em todas as tribulações.
A cruz de Cristo, que adoramos, permanece na nossa espiritualidade cristã como o símbolo da possibilidade que Deus nos oferece de superarmos as provações a que estamos sujeitos. Por ser a cruz de Cristo, o Filho de Deus, essa cruz assegura-nos a presença única e ininterrupta de Deus. Ele acompanhou o Seu Filho e acompanha-nos como filhos e abre-nos as portas da esperança e da vida eterna.
A luz da Páscoa esconde-se sempre por detrás das trevas que nos cercam e irromperão sempre em nós pelo poder de Deus, que esteve presente na paixão e na morte de Seu Filho. Renovemos a certeza de fé de que o mesmo Deus está connosco na vida e na morte, nunca nos deixará desistir e fará brilhar em nós a luz da esperança.
Coimbra, 18 de abril de 2025
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra