José Miguel Sardica é historiador, professor associado e diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Em entrevista à Agência ECCLESIA, aborda a relação entre os círculos políticos e a sociedade civil
Agência ECCLESIA (AE) – As próximas eleições autárquicas podem ser vistas como uma oportunidade para aferir da saúde da nossa democracia?
José Miguel Sardica (JMS) – Estas são eleições especiais, não são para o poder central, onde a escolha é muito mais local e está muito mais ligada a discursos e interesses locais. Por outro lado, vivemos num tempo de forte contração económica, forte incerteza social, forte desorientação política.
Nesse contexto, o ciclo eleitoral dos anos mais próximo vai ser condicionado pelo discurso político muito imediatista, porque é cada vez mais difícil fazer planos para o médio prazo e cada vez mais se vai atrás do que as pessoas querem sentir dia a dia. Também não é fácil fazer política no cenário macroeconómico no qual nos encontramos, criar um discurso que seja mobilizador, apelativo, que dê esperança às pessoas.
AE – Esta mobilização passa só pelos partidos? A apresentação de candidaturas independentes pode ser um sinal de maior participação cívica?
JMS – Em todas as eleições, sobretudo nas autárquicas, fala-se muito na abertura dos circuitos a independentes, à esfera civil. O problema em Portugal é que quando falamos em sociedade civil, fora do Estado, ela é historicamente escassa, por razões várias – de desenvolvimento económico, de cultura cívica, de alfabetização.
Quando se fala de abertura à sociedade civil, à mobilização, à organização de listas de cidadãos, também temos de distinguir aqui dois aspetos: em primeiro lugar, nas eleições autárquicas, há muitos falsos independentes – políticos do regime, do sistema, que por qualquer razão pessoal se zangaram com a sua cor e se candidatam teoricamente como independentes, mas na prática mobilizam recursos e apoios que tinham anteriormente.
Verdadeiramente independentes temos, felizmente, algumas listas de associações cívicas, de cidadãos, o problema é que não só a mobilização cívica fora dos circuitos políticos não tem os mesmos meios mas também, muitas vezes, vemos a impreparação do discurso. Pergunto-me se algumas candidaturas independentes não são muito mais um desejo voyeurista de aparecer, durante 15 dias, para as pessoas falarem sobre essa lista do que um projeto político coerente, pensado.
O monopólio dos circuitos políticos sobre as eleições é um dado histórico, pelo que é difícil que seja feita a renovação com independentes, com gente não ligada aos círculos já existentes.
AE – Esses dados ajudam a explicar alguma falta de entusiasmo da população com a vida política, no distanciamento que se nota nas taxas de abstenção?
JMS – Em Ciência Política tende-se a interpretar a abstenção como sinónimo de que as coisas estão muito mal, com um fosso enorme entre eleitorado e quem o representa, ou – sobretudo em países no Norte da Europa – como um sinal de que as coisas estão bem e as pessoas não sentem a motivação de se expressarem pelo voto.
Em Portugal, a abstenção é um sintoma de qualquer coisa que não está bem, basta pensarmos no enorme entusiasmo das primeiras eleições dos anos 70 e 80 do século passado, com taxas de mobilização eleitoral na casa dos 80 por cento ou mais, nalguns casos.
Acontece que a classe política no nosso país é exígua, endogâmica – aquela expressão que nós ouvimos, ‘eles são sempre os mesmos’. Desde logo, o ‘eles’ mostra a alteridade, mostra que não somos ‘nós’: de facto, se olharmos sociologicamente, a classe política em Portugal praticamente não mudou desde 1976. Há alguma renovação etária, como é óbvio, mas a cultura, os hábitos, a linguagem, a maneira de fazer política são mais ou menos as mesmas.
Num país onde as questões sociais são muito sérias, as pessoas retrocedem para uma espécie de egoísmo, centrado nos seus interesses, e não pensam que o voto pode ser a manifestação coletiva de um sinal que obrigue os políticos a pensar e a ouvir a voz que se expressa de x em x anos, através das urnas. Há uma espécie de opinião pública inorgânica que sente que as coisas estão mal, mas não sente que o voto seja a solução para mudar, porque não vê uma alternativa. Nas eleições autárquicas é um misto de desinteresse pela política e inércia, dado que é muito fácil as Câmaras terem sempre a mesma ação, nunca se pensou o tecido autárquico como um modelo de desenvolvimento integrado.
AE – O modelo autárquico também precisa de ser revisto, para potenciar o desenvolvimento do país?
JMS – O poder autárquico é apontado, muitas vezes, como uma das grandes conquistas da revolução de 1974. Eu penso que sim, nos anos iniciais as Câmaras tiveram uma genuína importância a nível local, sobretudo nas regiões mais pobres, mais do Interior. Foram agentes de desenvolvimento local, de dinamização cívica, atuando localmente como vozes de um poder central que era novo.
Nas últimas décadas, contudo, as Câmaras deixaram de assumir o papel de intermediárias e passaram muito mais a reproduzir os vícios do sistema político central junto das pessoas. Foram também a forma que os poderes políticos numa Lisboa macrocéfala tiveram para se relacionar com um país superficialmente democratizado.
A democracia não resolveu um país dúplice: iletrado, pobre e imóvel no Interior; letrado, urbano, mais ágil e aberto ao mundo no Litoral. O Estado Novo agravou essa separação, conscientemente, e a democracia ainda não resolveu isso: as eleições ganham-se ao Centro, num milhão, dois milhões de eleitores urbanos da faixa que vai Minho até Setúbal. Por isso, não se investe em introduzir no debate política, mobilizar, democratizar as outras pessoas.
AE – Vemos nas campanhas autárquicas alguma mistura entre o discurso político e os símbolos religiosos, por exemplo. O que podem significar estes episódios?
JMS – O que nós constatamos é que a Igreja, enquanto ingrediente, narrativa social, moral, ética, política, etc., ainda tem uma enorme influência em Portugal e, portanto, é tentador instrumentalizar a religião, a Igreja, quando o discurso político não consegue chegar às pessoas, por si só, para suscitar adesão. O mesmo acontece com linguagens outras, quando o autarca oferece mais um estádio, mais uma obra pública.
Como é sabido, a ligação entre Igreja e Estado foi sempre muito forte no país, à exceção de algumas épocas históricas de mais acentuada secularização ou laicidade. Os políticos perceberam que têm de contar com a Igreja, nem que seja neutralizando-a, não podem abrir uma guerra, porque ela tem – mercê de uma continuada rede assistencial em zonas onde o desenvolvimento económico levou mais tempo a chegar – uma grande influência na modelação de valores. Chega-se às pessoas com quem já lá está e muitas vezes não é o desenvolvimento económico, a escola pública, os políticos em geral, mas é o padre, a obra da Igreja.
AE – Do ponto de vista da relação dos portugueses com a vida política, vislumbra-se alguma possibilidade de mudança?
JMS – Temo que as coisas evoluam para pior. Não vale a pena anunciar aqui apocalipses nem caos, não acho que estejamos à beira de qualquer guerra civil ou revolução, não é disso que se trata.
Penso, no entanto, que se o cenário económico se mantiver, se o discurso político continuar a ser este, se todos os dias a opinião pública continuar a ser bombardeada com as intrigas, a incoerência, uma série de exemplos muito pouco edificantes que temos tido da classe política em geral – independentemente da cor política -, com a distância, a displicência com que muitas questões sociais graves e que afetam a vida das pessoas são encaradas hoje em dia – na maneira como se atiram número e se traçam metas macroeconómicas que são humanamente inconcebíveis -, só se vai aprofundar o fosso que existe entre eleitorado e representantes. Independentemente de nós como cidadãos nos revermos mais à esquerda ou à direita, há valores que estão acima disso.
Um dia, podemos chegar a uma situação no mínimo estranha que é a da abstenção ser superior a todos os outros votos. Um regime democrático cai por várias razões, como uma revolução, um golpe de Estado, mas também cai porque implode: todos os regimes em Portugal, nos séculos XIX e XX, não caíram por grandes oposições, por grandes golpes de Estado, caíram porque o estado de degradação interna a que chegaram, o estado de incapacidade de autorreforma a que chegaram, tornou muito fácil que uma pequena oposição superasse esse regime. Assim aconteceu em 1820, em 1910, em 1926 e em 1974: faço votos, democrata que sou, que não aconteça qualquer coisa de muito séria a este regime político que temos. Ele depende de nós, em boa parte, mas também é verdade que já não depende de nós em muitas coisas, porque o que se passa em Portugal é parte do que se passa na Europa em geral. Teríamos por isso de falar sobre o discurso político europeu, sobre valores ética, sobre o tipo de cidadão europeu que sonhamos ter e ser nos próximos 10, 15, 20 anos.