Padres confessam as suas dúvidas

A partir de hoje, a Diocese do Funchal tem mais três padres, passando a dispor de 87 sacerdotes. Pelas 10h00, na Sé, D. António Carrilho preside à cerimónia de ordenação de Élio de Freitas Gomes, Victor Apolinar Gonçalves e António Estêvão. Nesta cerimónia, Daniel Paulo Gonçalves Rocha também será ordenado, mas padre religioso, pois pertence à Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos). Daniel Rocha deverá depois seguir para o Porto, onde será vigário numa das paróquias daquela Diocese. Esta circunstância não invalida, contudo, que venha no futuro a juntar-se aos actuais 18 padres religiosos existentes na Madeira que, juntamente com os padres diocesanos, totalizam 105 padres nesta Região. O Jornal da Madeira ouviu dois dos protagonistas de hoje. Convidámos Élio Freitas, padre diocesano, e Daniel Rocha, padre religioso, a fazer uma viagem de regresso ao início das suas caminhadas. Sem quaisquer reservas, ambos aceitaram o desafio. Os dois contam como aconteceu o chamamento à igreja, mas também falam das dificuldades, das dúvidas, das reflexões e do que passaram a estar privados. Falam de como se sentiram quando colegas seus desistiram e enveredaram por outros trilhos. Abordam ainda a igreja actual e os seus problemas. O celibato e os padres que saem para casar também aqui são assuntos discutidos. Falam de tudo. Sem tabus. Mas vamos ao início. Para Daniel Rocha, tudo começou na aula de Religião e Moral, quando dois sacerdotes dehonianos foram conversar consigo e com os seus colegas do quarto ano. Os padres falaram da Igreja e, no final, deixaram o convite para os que quisessem visitar o colégio missionário. A curiosidade fez o pequeno Daniel aceitar a oferta. Ficou pois acertada a visita para um fim-de-semana seguinte. O pequeno Daniel gostou, especialmente das brincadeiras que teve com os outros miúdos vindo de tantos sítios da Madeira. Mas também o lugar, de certo modo, o encantou. «Achava que era um lugar diferente, onde as pessoas se sentiam bem», recorda ao JM. Desde então começou a visitar com alguma frequência o colégio, ao ponto de no final do 6.º ano lhe perguntarem se queria ingressar naquela escola, ao que respondeu afirmativamente. Acólito até ao seminário Apesar de Élio Freitas ter uma relação próxima à Igreja desde muito cedo, o seu percurso foi diferente do de Daniel Rocha. O tio paterno de Élio Freitas foi quem o levou para mais perto da Igreja. A proximidade fê-lo um dia desejar acolitar na missas. Após a Primeira Comunhão, concretizou o sonho. Tinha apenas oito anos. Esteve a acolitar na paróquia do Monte até entrar para o Seminário. Só bem tarde se decidiu por esse caminho. Antes, era convidado para várias acções da Igreja, mas sempre as via mais como espaço «para a brincadeira» do que uma possibilidade de ir para o Seminário. Ser seminarista não o seduzia porque estava convencido pelos outros das dificuldades que teria de enfrentar para «deixar a casa, a família e as coisas boas». Por isso, o tempo foi passando até que o rapaz terminou o ensino Secundário. Concluída essa etapa, achou que se voluntariar para o Serviço Militar poderia ser uma boa solução, até porque pensava aprofundar no Exército os seus conhecimentos sobre a sua disciplina favorita, História. Durante oito meses vestiu verde mas a História pouco mudou. Foi também nessa época que teve uma conversa que alterou novamente o rumo da sua vida. Nas festas do Monte, cruzou-se com o padre Fiel, vice-reitor do seminário, que lhe perguntou porque não ingressava naquela escola. Élio admitiu logo a possibilidade. Fez ainda as disciplinas de reconhecimento (grego e latim) durante dois anos e, aos 21 anos de idade, estava pronto para fazer a nova caminhada. O percurso de Daniel Rocha começou muito mais cedo. Aos 15 anos viajou para Coimbra, onde ingressou no 10.º ano. De início sofria «muitas saudades» da família e amigos, mas depois o «clima de amizade e bem-estar» com os colegas de turma e as orações amenizaram a tristeza. «Cria-se um clima de família que nos faz superar as dificuldades», recorda hoje, revelando que «os tempos passados juntos» com os amigos de escola foram os melhores que guarda desta época. A turma de Daniel no 10.º ano tinha 29 alunos, seis dos quais madeirenses. «Era um clima espectacular», lembra-se, revivendo as cantorias com os amigos e as conversas sobre o futebol, a vida, o dia-a-dia e as aulas. «Falava-se um pouco sobre tudo», garante. Daniel esteve três anos em Coimbra. Depois fez o noviciado, que é um ano dedicado essencialmente à reflexão e que marca a iniciação à vida da Congregação. Nesta altura, o grupo já era só de sete pessoas, 22 alunos já tinham desistido ou seguido outros caminhos. O noviciado permite um tempo de reflexão acerca da opção que os jovens vão tomar. Permite também ponderar sobre os votos de castidade, pobreza e obediência que cada um irá fazer e conhecer as regras da congregação que os vai acolher. Paralelamente, possibilita aumentar os conhecimentos sobre a Bíblia, Dogmática e Teologia, apesar de em todo este período não haver aulas. De início, Daniel achou que o noviciado era uma «perda de tempo», dada a paragem nos estudos. Mas depois percebeu que esse era um momento «muito bom», pois servia para «alicerçar a opção que se tem depois». «Eu gostei muito desse ano», diz agora, sentindo até saudades da época. «Rezava-se mais. Tínhamos mais horas para rezar. Tínhamos mais tempo para reflectir. Agora, a vida já não dá para tanto», lamenta. O ano de reflexão terminou com Daniel Rocha convicto do que queria e com mais dois dos seus colegas a ficarem pelo caminho. Apenas cinco fizeram a Primeira Profissão Religiosa, cumprindo os votos de Castidade, Pobreza e Obediência. Os cinco desceram para Lisboa, onde uma nova etapa os aguardava. O curso superior de Teologia. «Capazes de uma relação normal» O biénio filosófico teológico de Élio Freitas foi feito no Funchal, após o que viajou para Lisboa onde completou os quatro anos que faltavam (triénio teológico e o ano pastoral). O homem que um dia quis seguir a vida militar e que depois se mudou para o caminho sacerdotal confessa ter tido dúvidas. «Em primeiro lugar, as dúvidas são apresentadas pelo imenso trabalho que temos de fazer. O estudo, por exemplo», aponta Élio Freitas, falando também das dúvidas sobre a preparação psicológica para enfrentar a caminhada. Há também os receios de uma deslocação de um meio pequeno para uma grande cidade (Funchal/Lisboa) poder “desviar” o estudante. «Podem aparecer outras novidades», diz. A possibilidade de enamorar-se, por exemplo. Perguntando como reagiria perante esse cenário, Élio Freitas responde: «Temos de ser capazes de ter uma relação normal, no sentido de ver as pessoas iguais a nós. Depois tentar combater, ver se é uma coisa sentimental, se é só superficial, e pôr as duas coisas a funcionar: a razão e o coração». «Tem de haver amizades, mas cada coisa no seu lugar», corta o novo padre. Mudando de assunto, e já falando sobre todo o seu percurso, Élio Freitas admite ter vacilado no início. «Vem à cabeça muita coisa: Será que somos capazes?». Mas as palavras dos padres mais velhos e a direcção espiritual ajudam muito nesses momentos. Saídas levantavam dúvidas Depois dos dois primeiros anos «secantes» do curso de Teologia, Daniel Rocha foi estagiar para São Miguel, nos Açores. Esteve durante um par de anos na casa da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos). Para além do apoio às pessoas que procuravam aquele espaço de retiro e reflexão, Daniel era ecónomo na congregação. Dos Açores gostou da «paisagem linda», mas não apreciou nada a humidade e o tempo frequentemente nublado. Findo o estágio no arquipélago vizinho, o estudante voltou para o terceiro ano de Teologia, no continente. Ao fim de mais três anos concluiu o curso. Já com o “canudo”, foi para o Porto, onde esteve no Seminário Menor, ficando responsável pela turma do oitavo ano, composta por 20 alunos. Depois deste longo percurso, é agora ordenado padre e nos próximos dias deverá voltar ao Porto, onde será vigário numa das paróquias da Diocese. Daniel Rocha diz que foi a convicção de que era este o seu caminho que o fez nunca desistir, ao contrário da maioria dos colegas. Sobre os antigos colegas, Daniel Rocha afirma que nalguns casos a saída já era esperada, mas noutros foi um espanto. Algumas pessoas «julgávamos que eram muito melhores do que nós, para esta missão» e por essa razão «reflectimos e ficámos um bocado a pensar sobre a nossa acção e sobre o aquilo que vamos fazer no futuro», diz. «Sempre que alguém saía, eu questionava-me sobre se estou bem, se devo continuar, ou não», confessa. Mas as dúvidas já lá vão e agora tanto Élio Freitas como Daniel Rocha estão seguros do passo que vão dar. Isto apesar da natural ansiedade dos dias que antecedem tão importante acontecimento para as suas vidas. Por outro lado, e falando já sobre o afastamento que muitos europeus estão a ter dos rituais da Igreja Católica, Daniel Rocha admite que em parte a culpa é dos padres. «Fazem, às vezes, as coisas, o rito, num mau sentido. (…) Não se põe alma, não têm vontade. É uma coisa para despachar», avalia, dizendo que há padres que «fazem as coisas à pressão» e «sem entusiasmo», enquanto que «a malta nova precisa de alguém que os entusiasme». «As pessoas gostas de participar, as pessoas não gostam de estar ali a assistir», considera. Élio Freitas também tem observações a fazer. «Se houver um pouco de acolhimento da parte da Igreja, dos padres, dos religiosos e dos bispos acho que isso faz cativar mais as pessoas», sugere, considerando que «a Igreja deve de se adaptar um pouco ao Mundo», não fazendo «as coisas que o pessoal faz mas tentando compreender porque é que a malta jovem gosta do tipo de música que ouve, por exemplo». No fundo, «ir ao encontro». «Às vezes nós ficamos fechadinhos», reconhece, quando «nós nos devíamos meter mais com eles», promovendo mais diálogo. Quanto ao chamamento e à falta de padres, Élio Freitas diz que o assunto traz a lume o celibato e outras matérias de que os padres, pela missão que abraçaram, têm de abdicar. «Isto de dizer sim, é dizer não a muitas outras coisas. E é difícil dizer não», confessa, adiantando que os padres que saem da Igreja para casar sentem «sempre uma certa frustração: ou dedicam-se muito à Igreja ou então não querem saber da Igreja para nada». Já Daniel Rocha foca a sua atenção sobre o assunto no facto de, às vezes, o «ambiente familiar, paroquial e escolar não ajudar».

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Agência ECCLESIA

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