António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Todos conheceremos a narração bíblica do início dos tempos. Era uma vez um jardim encantado onde tudo vivia em paz. Era uma vez uma cobra que tentou uma mulher e a mulher deixou-se levar pela cobra. E a mulher tentou o homem e o homem ouviu a mulher. Era uma vez um homem que culpou uma mulher e a mulher culpou a cobra. E a cobra rastejou e desapareceu, mas ficou nos anais da história. Desde então a culpa ficou anónima no mundo dos humanos e a culpa «morreu solteira» como todos saberão. A culpa é sempre alheia. A culpa é dos outros. Aqueles outros que até podem morar num país ao lado, no mesmo país, na mesma cidade, na mesma rua. Na mesma casa.
Ouvimos todos os dias que a Europa é uma comunidade de valores. E, quando se agigantam movimentos sociais e políticos que a confrontam com a fixação dos seus olhares, agigantam-se também as vozes contra eles em nome de tais valores. Não se apontam tanto os «inimigos» externos, que também os haverá, mas aponta-se para quantos não alinham de todo com a vivência que tais valores têm vindo a assumir.
Vai fazendo fortuna mediática o crescimento de partidos populistas na generalidade dos países da União Europeia. É o que temos ouvido nos últimos tempos, preenchidos desde há muito, com campanhas eleitorais. No momento em que escrevo, véspera de eleições europeias, fala-se e escreve-se, como se tem vindo a falar e a escrever, que será muito diferente da actual a configuração do Parlamento Europeu que resultará das eleições de 9 de Junho, prevendo-se que os partidos populistas possam vir a crescer significativamente.
Confirmem-se ou não estas previsões, terá todo o sentido perguntar como são vividos esses valores e até como são eles entendidos nos meios nacionais e, sobretudo, nos meios europeus de decisão. O que se tem visto é que o sistemático ataque ao populismo não tem sido acompanhado com uma reflexão racional e ponderada sobre como a União Europeia tem vindo a promover a vivência de tais valores. Parece haver um pensamento comum segundo o qual toda a responsabilidade do populismo está exclusivamente do lado da visão estreita e vesga dos populistas como se não houvesse também uma responsabilidade, e culpa também, dos decisores da União e de quantos vão vivendo encantados com o seu canto. Chego a pensar que, sem ser assumido como tal, anda por aí um certo maniqueísmo de convicção ou, se não, de conveniência.
Verdadeiramente, as comunidades, como os seus membros, os seres humanos, necessitam sempre de autoexame, quer para não esquecerem as suas raízes mais profundas, quer para poderem olhar o futuro onde não falte a seiva dos fundamentos que lhe dão vida. O mais lógico seria pensar que, quanto mais desabrocharem «inimigos internos» no seu seio, mais a União Europeia deveria pensar-se como vida analisando os caminhos seguidos e a fidelidade aos seus princípios e valores propagandeados. Ora, não parece que tal tenha vindo sempre a acontecer tanto como seria necessário. Às vezes até parece que, teimosa e arrogantemente, se julga detentora de uma verdade política absoluta só questionável por adversários desses valores. Mesmo as campanhas eleitorais, focadas na conquista de votos dos cidadãos, têm ficado aquém do que seria de esperar. E, lenta e suavemente como a cobra do paraíso terreal, vai-se enraizando o absolutismo do primado da liberdade individual em desfavor da saúde comunitária do bem. E quando se dá primado absoluto ao individualismo desencarnado, está aberto o caminho para a decadência. Decadência dos indivíduos, dos cidadãos, e decadência das nações e dos valores comunitários. Não porque eles não sejam ditos e falados, mas porque não são vividos e, se são vividos, são-no à medida do imediato, dos gostos, dos interesses ou das conveniências pessoais do momento. Assim vai rastejando a cobra disfarçada no tronco da ««árvore da vida».
Será necessário apresentar exemplos? Seja então o projecto de incluir o pretenso «direito ao aborto» na carta dos direitos fundamentais da União europeia. Seja o projecto de negar aos profissionais de saúde o direito à objecção de consciência quer respeitante ao aborto quer à eutanásia. Com tais projectos a racionalidade europeia parece ter-se esgotado na volubilidade dos tempos. São projectos que andam por aí, no corredor dos decisores europeus e que se impõe contrariar para bem da saúde e bem-estar europeu. E o que se impõe é defender, com afinco, uma carta de princípios em defesa da Vida, da Família e da Dignidade Humana desde a concepção até à morte natural.
E não se pense, nem se invoque, que se está perante problemáticas com origem religiosa, designadamente católica. Previamente às razões religiosas que, sem dúvida, lhe dão uma transcendência superior, há razões de ordem meramente racional, de pura razão, que impõem o dever ético e moral de salvaguarda da dignidade humana e da vida do ser humano em todo o processo da existência.
Sejam quais forem os resultados das eleições ou as medidas legais que vierem a ser tomadas, há um mal que vai sendo feito: o apoucamento da sensibilidade perante a beleza e valor da vida e a desresponsabilização dos Estados perante a necessidade de a salvaguardar em todas as circunstâncias. A saúde das comunidades humanas passa também por aí. O valor do respeito pela Dignidade da vida humana é a base de todos os outros valores e dos Direitos Humanos que a Europa diz defender. E, quando a base se esboroa, esboroar-se-á também todo o edifício.
Os valores da vida humana e da sua dignidade são valores fundamentais que alicerçam os direitos humanos na sua essência profunda de que a Humanidade foi lentamente tomando consciência. Mas quando se perde o sentido da dignidade da vida humana, facilmente os direitos humanos são vistos como resultado de uma mera convenção que podem ser interpretados ao sabor dos ventos e marés dos tempos e dos lugares. É isso que se diz e se ouve do lado de correntes políticas que olham para os Direitos Humanos como puras invenções da cultura europeia.
Parecendo, embora, provocações, impõem-se duas perguntas que poderão embaraçar a razão de muitos europeus. A dignidade do ser humano é pura convenção? São puras convenções os direitos humanos que nós consideramos universais e inerentes ao ser humano?
Aqueles projectos provam que a Europa, se quer continuar a ser verdadeiramente Europa dos Direitos Humanos, precisa de abandonar algum excesso de autoconfiança, precisa de não se deixar alhear da realidade. De toda a realidade. E a realidade profunda é a Vida. A Europa precisa de redescobrir a Dignidade da Vida humana. A Europa precisa de se olhar. A Europa precisa de deixar que a pensem. A Europa precisa de se pensar, pensando a Vida. A Europa precisa de se autocompreender na compreensão dos Direitos Humanos e suas exigências vitais.
A União Europeia precisa de Paixão pela Vida. Sem facilitismos de conveniência.
Guarda, 6 de Junho de 2024
António Salvado Morgado