Luís da Silva Pereira, Diocese de Braga
Aí estão de novo as festas dos santos populares com a sua amálgama inseparável de sagrado e profano. Com essa desconcertante mistura, que encontramos em todas as festas religiosas e não apenas nas dos santos mais populares, temos convivido, ao longo dos tempos, sem grandes sobressaltos e até com gostosa alegria, afinal. Mas continua a verificar-se alguma tensão entre os que defendem a necessidade de purificar as festas religiosas dessas profanidades que, por vezes, tocam, de facto, as raias da inconveniência, e os que as interpretam como compreensível manifestação da sensibilidade e cultura populares. Não podemos esquecer que na vida das pessoas o aspeto religioso nem sempre prevalece sobre os outros aspetos da existência. Uma coisa é a piedade oficial, digamos assim, da Igreja, outra é a piedade popular, na qual a dimensão folclórica, a agitação, o ruido e a atividade económica têm o seu lugar próprio.
Tirando a missa, o sermão, a procissão com os andores e a banda de música, o resto diz mais respeito às alegrias do corpo do que à elevação da alma. Assim se tem conseguido manter a dimensão sobrenatural e a cultura popular em razoável harmonia, mesmo em circunstâncias sociais adversas. Do bailarico e das marchas populares ao fogo de artifício, da sardinha assada à bifana, do copo de vinho à cerveja, da doçaria popular às farturas, das tendas de roupa e de sapatos ao artesanato africano e sul-americano, tudo tem cabimento nas festas dos santos populares e vai convivendo mais ou menos harmoniosamente com o sagrado. E tudo isso os santos contemplam com os seus olhos celestes nos quais podemos adivinhar uma compreensão e uma ternura sem limites por todos nós.
Confiamos num santo para nos arranjar casamento ou para nos ajudar a encontrar o namorado ou a namorada. Este santo encontra coisas perdidas, aquele protege os pescadores dos perigos do mar e abre-nos as portas do céu com as suas chaves. Outros defendem-nos das pestes, das doenças de garganta, dos ossos ou dos olhos. A este rogamos que abençoe as vacas e as ovelhas; àquele, que proteja os frutos dos campos. No fundo, é toda a nossa vida que entregamos ao seu cuidado. Eles são, nas circunstâncias mais difíceis, quando tudo parece falhar, os médicos, os veterinários, os advogados, os psicólogos. Atualmente, parece que confiamos mais nas urgências dos hospitais, no ministério da agricultura e nos subsídios da Comunidade Europeia. No entanto, quando já nenhuma urgência nos acode nem ministro nenhum nos subsidia, para quem nos havemos de voltar?
Deus e os seus santos existindo, sempre é possível um milagre. Com eles, a esperança permanece até para além da morte. Por isso continuamos a celebrá-los e a invocá-los como sabemos, com a linguagem de que somos capazes, segundo a nossa cultura e as tradições que herdámos dos antepassados. Continuamos teimosamente a recordá-los, apesar das tentativas sempre renovadas e sempre fracassadas, de os remeterem para a sacristia ou para o sótão das velharias. Afinal, essa inseparável mistura de sagrado e de profano concretiza, melhor ou pior, a exigência católica de fundirmos a nossa vida concreta com a dimensão espiritual. É, afinal, uma das formas de encarnar a mensagem evangélica no nosso quotidiano.
Devemos evitar a tentação de uma excessiva depuração destas tão arreigadas celebrações religiosas. Essa purificação será necessária, não duvidamos, mas deverá sempre ser feita com paciência e compreensão inteligente das circunstâncias. Doutro modo, corremos o risco de, com a água do banho, deitarmos fora também o menino.