Lopes Morgado, frade franciscano capuchinho, trabalhou na Rádio Renascença entre 1970 e 1975. Até maio de 1974 como colaborador externo; a partir dessa data, fazendo parte do quadro da estação.
Lopes Morgado, frade franciscano capuchinho, trabalhou na Rádio Renascença entre 1970 e 1975. Até maio de 1974 como colaborador externo; a partir dessa data, fazendo parte do quadro da estação.
José Joaquim Lopes da Silva Morgado é jornalista, chefe de redação da revista “Bíblica” desde o ano 2000, após 25 anos como diretor, e tem livros publicados sobre Bíblia, pastoral e de poesia.
[Entrevista concedida por escrito a Paula Borges Santos pelo frei Lopes Morgado, na qualidade de trabalhador da Rádio Renascença, para Mestrado em História Contemporânea sobre «A Igreja e a Revolução. O caso da Rádio Renascença», na Universidade Nova de Lisboa. Realizada em 2001, é agora tornada pública em www.agencia.ecclesia.pt, após um pedido de artigo de opinião sobre este tema ao autor destas declarações]
Quando e por quem foi convidado a trabalhar na Rádio Renascença?
Em 1970, pelo padre António Rego. Então, o padre Rego era Regente de Estúdios da Rádio Renascença em Lisboa, por nomeação do Episcopado, e o convite que me fez era avalizado a esse nível.
Que funções desempenhou na Rádio Renascença?
Nunca desempenhei funções especiais nenhumas, se está a falar em cargos de chefia. Aliás, a minha participação na Rádio Renascença teve duas fases diferentes: uma como colaborador externo, de 1970 a 1974; outra como membro da equipa sacerdotal e fazendo parte do quadro da RR, de maio de 1974 a 27 de maio de 1975. Mas não fui o que se costuma dizer um “trabalhador” da RR, no sentido que isso tem de ligação ao Conselho de Administração ou de Gerência e aos Sindicatos, embora fizesse os descontos oficiais como qualquer outro trabalhador.
Em 1970, talvez por ser diretor da revista Bíblica (pois igual convite foi dirigido ao padre Agostinho Rodrigues, sacerdote dos Missionários da Boa Nova, então diretor da revista Boa Nova, para um programa sobre Missões), fui convidado para fazer um Programa semanal de 25 minutos, sobre Bíblia. Chamava-se “MARANA THA”, era antegravado e transmitido na Sexta-feira à tarde, antes do noticiário das 19 horas. Na gravação contava com o próprio padre Rego e com os meios e operadores técnicos da estação (bem como alguns locutores, que sempre colaboravam simpaticamente quando solicitados). A minha colaboração era gratuita, ou considerada paga por esta “publicidade” no indicativo: “um programa dos Padres Capuchinhos, todas as Sextas-feiras nos emissores da Rádio Renascença pelas 18 horas e cinco minutos, produzido pela Difusora Bíblica e realizado pelo padre Lopes Morgado, diretor da revista Bíblica”. O primeiro foi emitido em 1 de outubro de 1970.
Em novembro de 1973, o padre Rego propôs-me fazer outro programa, desta vez diário, de 3 a 5 minutos, ligando as Leituras bíblicas de cada dia com a vida. Chamou-se “PALAVRA DO DIA”, e era emitido imediatamente antes dos noticiários das 07 e das 19 horas. O primeiro foi para o ar no I Domingo do Advento (portanto, em fins de novembro). Este já era pago pela Administração, como o de qualquer outro produtor ou realizador contratado. Tanto num caso como noutro, a minha aceitação passou pela aprovação do meu Ministro Provincial (o frei António Monteiro, atualmente bispo de Viseu) e pela opinião favorável da Fraternidade dos Capuchinhos de Lisboa, a que eu pertencia.
Na sequência desta colaboração, e sempre como Regente de Estúdios, embora já fazendo parte da Comissão de Gestão eleita pelos trabalhadores em 30 de abril, em maio de 1974 o padre Rego convidou-me para trabalhar a tempo inteiro na programação religiosa, numa equipa que incluía ele próprio e mais dois sacerdotes: Carlos Capucho nos Estúdios de Lisboa e Eloy Pinho nos do Porto. Uma equipa de quatro, portanto. Mais uma vez com o beneplácito dos meus Superiores, aceitei. O padre do Porto entrou com a aprovação do seu bispo; os de Lisboa, com a aprovação do cardeal Patriarca. Quer antes, quer depois do 25 de Abril de 1974, em nenhum destes casos houve qualquer contrato escrito. Mas sempre fui pago normalmente nos escritórios da empresa, com recibos oficiais assinados por quem de direito. Sempre, exceto o que me ficaram a dever no fim, até hoje. Por isso, quando alguém me diz «a nossa Rádio Renascença», costumo ironizar: «Sim, ainda lá tenho vinte e tal contos meus.»
Entre 1970 e abril de 1974, como define o tipo de informação religiosa disponibilizada pela Rádio Renascença?
Talvez convenha recuar até 1968, data em que o padre Rego entrou. Até à morte de Mons. Lopes da Cruz, a RR não era nem do Patriarcado nem do episcopado, mas de uma sociedade (Lopes da Cruz, mais Rogério Leal), e a Igreja não lhe ligava quase nenhum. Era uma “minhoca”, como se dizia das rádios pequenas. Então, havia apenas um único programa religioso, semanal, dirigido aos doentes (“Diálogo com os que sofrem”), além do terço diário e missa dominical a partir da Basílica dos Mártires, e não sei se as cerimónias de Fátima nas peregrinações principais; mas havia casos em que a programação religiosa era subalternizada, como passar o terço para a noite quando a hora habitual coincidia com jogos de futebol.
Com a entrada do padre Rego, o programa para doentes passou a bissemanal, nasceu o “Esquema 13” diário, os dois meus e o outro de que falei, as crónicas do Manuel Vilas-Boas a partir da Rádio Clube de Moçambique entre 1972 e 1974, etc. E começou o tratamento das notícias religiosas e a opinião e comentário sobre elas.
Houve continuidades ou inovações na linha editorial durante o período compreendido entre 1970 e 1974?
Inovação progressiva. Quando um produtor independente cessava o contrato, o padre Rego tentava ocupar o espaço com programação religiosa, caso a Administração não se opusesse.
Quais os objetivos pretendidos e tipo de informação veiculada?
Tanto quanto me apercebia (pois dessa fase só sei o que conhecia como ouvinte e o que o padre Rego partilhava como colega), pretendia-se que a religião não fosse tão compartimentada apenas em programas confessionais e num reduto fora dos tempos de maior audiência, mas atravessasse toda a programação e entrasse no ar sempre que fosse notícia, como acontecia em qualquer outra área da informação.
Que relação entre os trabalhadores e o Conselho de Gerência (formado pelo padre Américo e por mons. Sesinando)?
Não faço a mínima ideia. Até 1974 não contactei com nenhum deles, nessa função. Depois da sua saída, só me encontrei esporadicamente com o padre Américo na RTP, onde ele também celebrava, ou em sua casa quando me encontrava lá com o padre Rego, que vivia com ele.
Qual o impacto da reflexão teológica promovida pelo Concílio Vaticano II, nas iniciativas e no tipo de informação realizadas pela RR?
O nome do programa Esquema 13 foi bebido expressamente no Concílio, pois era o número do texto da futura constituição pastoral Gaudium et Spes quando deu entrada para discussão na aula conciliar. O padre Rego era eminentemente um “filho” do Vaticano II, e empenhou-se sempre, até hoje, no espírito de diálogo (não de rejeição ou oposição) entre a Igreja e o Mundo, promovendo qualquer sinal de bem, justiça e bondade, viesse donde viesse. E para isso, procurava iluminar a vida concreta do país e do mundo com a luz do Evangelho, como recomendava o Concílio na mesma Gaudium et Spes e era de esperar numa estação que se dizia “Emissora Católica Portuguesa”.
Quais as consequências da substituição do cardeal Cerejeira pelo cardeal D. António Ribeiro no projeto delineado para a Rádio Renascença?
Só sei dizer que o Dom António já tinha uma boa relação com o padre Rego, antes, enquanto bispo auxiliar do Patriarcado e Presidente da Comissão Episcopal das Comunicações Sociais, pois vivia na residência paroquial da basílica dos Mártires, quase ao lado da Renascença. Nessa fase, dava, sobretudo, apoio e sugestões. Eu próprio participei nalguns encontros com ele e ouvi os seus conselhos aos padres que celebrávamos a Eucaristia na televisão. Claro, tinha maior sensibilidade nesse campo que o anterior, pois trabalhara 9 anos na RTP (donde fora despedido por apoiar Paulo VI na Visita Pastoral a Bombaim, criticada publicamente por Franco Nogueira). Havia vários trabalhadores que o conheciam bem dos tempos em que “o Doutor Ribeiro” descia o Chiado e tomava café na Brasileira. E tinham por ele certa admiração e estima, que depois vieram a perder.
Por isso lamento que, sendo o Patriarcado acionista maioritário da RR, e conhecendo o Patriarca tão bem aquela casa, não usasse esse “capital” de simpatia em 1974 para resolver o caso logo à partida. Porque era resolúvel, antes da sucessiva degradação do processo! Isso, para já não falar da amizade entre ele e o padre Rego e da aceitação do padre Rego junto dos trabalhadores, que a 30 de abril o nomearam para a Comissão de Gestão. E logo a 1 de maio, a Comissão de Gestão foi encontrar-se com o Patriarca em Sintra, onde ele celebrava São José operário com os trabalhadores da União Gráfica. Ainda me lembro de os padres (e outros trabalhadores?) termos participado num encontro com ele na casa do Patriarcado ao Largo de S. Mamede, não sei a pedido de quem. Mais tarde nomeou para mediador o cónego João Alves, que chegou a presidir a uma reunião com todos os trabalhadores, de Lisboa e do Porto, no salão da mesma casa de S. Mamede.
Que tipo de alternativa propunha a Rádio Renascença aos espaços religiosos emitidos pela Emissora Nacional?
Parece-me que a EN, a não ser a cobertura das celebrações de 12 e 13 de maio e outubro em Fátima, não tinha programas ditos religiosos.
Antes do 25 de Abril de 1974, existia censura na Emissora Católica, Portuguesa? Quem a praticava e que tipo de linha impunham ao trabalho dos jornalistas e da equipa sacerdotal?
Curiosamente, quando comecei a trabalhar a tempo inteiro como membro da equipa sacerdotal em maio de 1974, o nosso gabinete de trabalho era o que acabava de ser ocupado pelos censores. Mas esses censores só tinham entrado cerca de um mês antes do 25 de Abril. Até lá, tal função era declinada no padre Rego, o qual, na sua posição de Regente de Estúdios era o “responsável de conteúdos”. Disse-me ele que chegou a ter diálogos duros com o PIDE encarregado da censura e com o SNI, que não cessava de os inquietar. Talvez tenha sido o Conselho de Gerência a optar pela presença dos censores dentro do próprio espaço da estação. Merecia a pena informar-se disso, pois, no caso de ter sido assim, tal facto poderá ter contribuído para o descrédito do Conselho de Gerência junto dos trabalhadores, consumado pelo seu saneamento a 30 de abril. Aliás, parece que os nomes referidos não eram especialmente qualificados para aquela função. Talvez tenham sido vítimas da obediência aos seus superiores hierárquicos.
Antes de abril de 1974 ainda não havia “equipa” sacerdotal; era só o padre Rego e, que eu saiba, o Conselho de Gerência não lhe impunha nenhuma “linha”. Pelo que via, o padre Rego é que lhes ia “impondo” alguns programas ou tempos religiosos, sempre que podia, “prendendo” as horas dos produtores independentes que vagavam na grelha de programação… Tinham consideração por ele e grande confiança no seu trabalho, pois era muito competente no que fazia. Como continua a ser. Eu era produtor e realizador independente, e nunca ninguém me contactou nem chamou a atenção quanto a isso.
Na sua opinião, qual foi o posicionamento da Rádio Renascença (distinguindo entre as posições dos trabalhadores e da entidade patronal) face à revolução?
Como é evidente, nenhum dos setores emitiu qualquer comunicado a dizer do seu posicionamento. Mas, de um modo genérico, imagino que a dos trabalhadores fosse de franca adesão; a da entidade patronal, representada pelo Conselho de Gerência (que deverá ter telefonado para Fátima, onde decorria a Assembleia plenária da Conferencia Episcopal, a pedir parecer ou instruções…), terá sido “esperar até ver”, possivelmente não acreditando que o golpe resultasse. E talvez tenha sido esse espírito diferente que levou ao desentendimento entre os dois setores, no dia 30 de abril de 1974.
A 30 de abril de 1974, formou‑se um conselho de programas, constituído por trabalhadores da Rádio Renascença, cujo resultado foi uma greve levada a cabo pelo pessoal dos Estúdios de Lisboa. Quais foram as motivações dos trabalhadores para entrarem em autogestão?
O Conselho de Gerência não deixou transmitir a reportagem da chegada de Álvaro Cunhal ao aeroporto. Talvez o Conselho ainda estivesse a pensar nos censores, ou a assumir esse papel. E os jornalistas do Serviço de Noticiários não transigiram. Nem acho que devessem transigir, face ao novo contexto nacional de plena liberdade de informação.
Para si, a génese do conflito entre a entidade patronal e os trabalhadores foi um problema laboral ou político?
Talvez possa dizer que foi mais laboral da parte dos trabalhadores e mais político da parte da Gerência. Digo mais, porque as motivações das pessoas nunca são quimicamente puras e não sou ingénuo. Admito, por exemplo, que no grupo houvesse quem simpatizasse com a ideologia de Álvaro Cunhal. Mas isso não obstava que fosse notícia o facto de ele voltar a Portugal, depois de tantos anos na clandestinidade e no exílio. Ora, a estação de uma Igreja que defende as pessoas acima das ideologias ou das instituições, deveria sentir-se suficientemente livre para dar essa “boa” notícia. E se o regime político tinha, até então, considerado “criminosos” os que seguiam determinadas ideologias, o mínimo que se pedia, agora, é que pelo menos se respeitassem as pessoas, mesmo não aceitando as suas ideias, no dizer de Santo Agostinho. Não terá sido por acaso que, nesse período (não sei a partir de quando, nem por iniciativa de quem) a RR recebeu o qualificativo de “A Emissora da Liberdade”. Isso devia ser motivo de honra para a Igreja.
Houve é uma coisa que foi manipulada e precisa de ser esclarecida: a estação / empresa era da Igreja, mas nós relacionávamo-nos com uma entidade patronal personificada no Conselho de Gerência e era com este que os trabalhadores empreendiam a luta. Como ela não foi resolvida na sua primeira fase, a estratégia do novo Conselho de Gerência foi fazer passar para a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) a ideia de que a luta era contra a Igreja. Isso a nós, padres, pareceu-nos muito desonesto; porque, a partir de então, começaram a enviar comunicados a todos os Superiores religiosos e párocos, para serem lidos nas Missas, motivando e mobilizando os fiéis contra os trabalhadores como se eles fossem inimigos da Igreja. De facto, não era o controlo ideológico nem o direito de propriedade da Igreja que ali estava em causa; pelo contrário, como disse, a doutrina e a vida da Igreja no país e no mundo nunca tinham estado até ali tão presentes na estação. E se alguém, naquele processo, defendeu os valores religiosos e morais da Igreja dentro da empresa, e a credibilizou junto dos trabalhadores, fomos nós, os padres que lá estávamos.
A pedido de quem e porquê recomeçaram as emissões após o 11 de março de 1975?
Tanto quanto me lembro, a pedido direto do COPCON ou da Junta de Salvação Nacional, mais ou menos nestes termos: que puséssemos a Emissora ao serviço da Revolução.
A equipa sacerdotal da Rádio Renascença colocar‑se‑ia ao lado dos trabalhadores, desde o início do conflito. Do seu ponto de vista, que motivações fundamentaram essa tomada de posição?
No início só estava o padre Rego. Suponho que ele terá concordado com a atitude dos outros trabalhadores, pois foi eleito por eles para a tal Comissão de Gestão; ou, pelo menos, enquanto Regente de Estúdios, mereceu a sua confiança para resolver mais depressa aquele conflito, que passaria, ao que me lembro, pelo afastamento definitivo do Conselho de Gerência que tinha sido “saneado” pelos trabalhadores. A partir daí, como nas outras coisas da vida, as razões da solidariedade foram-se ajustando às motivações e aos contornos de cada fase ou episódio do processo.
Na base estava, para nós, esta evidência: isto é da Igreja, nós somos Igreja e estamos aqui como Igreja. Por isso, devemos seguir as atitudes e palavras de Jesus no seu tempo, que a Igreja pretende viver hoje, bem como a doutrina social da Igreja elaborada com base no respeito pela pessoa humana, que lhe permitiu autodefinir-se “perita em humanidade”. Se a nossa “entidade patronal” se identificava com a Igreja, ou vice-versa, isso não nos preocupava; preocupava-nos era testemunhar o que a Igreja, como comunidade de fé e de amor, acreditava e pregava. Ou seja: não pretendíamos agradar aos critérios de gestão dos que ali representavam a propriedade da Igreja, mas tornar presentes os valores doutrinais de verdade, liberdade, justiça, fraternidade e solidariedade da mesma Igreja. Quer no que dizíamos aos ouvintes, quer no que fazíamos aos (ou com os) trabalhadores. Por isso, mantínhamos com os trabalhadores um relacionamento de entreajuda solidária, para além da relação meramente laboral. E criámos também esse espírito entre todos. Ainda me lembro de ir com alguns deles a casa de colegas levar ajuda à sua família carenciada. Por outro lado, os sacerdotes nunca hostilizámos a Igreja e sempre pusemos o senhor Patriarca a par das nossas decisões ou das razões das nossas atitudes.
A estratégia do Conselho de Gerência era a da autoridade e propriedade, não tanto a de uns direitos humanos ou de uma justiça que em vários momentos foram seriamente postos em causa. A nós, que estávamos dentro e víamos cada dia as repercussões dramáticas de tais atitudes nos trabalhadores concretos da estação e nas suas famílias, era isso, sobretudo, que nos fazia manter-nos do seu lado, para além de todos os jogos de bastidores. Conhecíamos os colegas mais do que ninguém, e sabíamos que não eram o que às vezes se dizia deles ou eles próprios poderiam dizer nalgumas declarações emotivas à comunicação social. A partir de certa altura, as reações – por exemplo, nalguns comunicados – já eram as de animais acossados, sem saída, pela degradação a que tinha chegado a sua vida profissional e familiar devido ao impasse no processo.
Qual o tipo de relação estabelecido entre os sacerdotes e o novo Conselho de Gerência, nomeado em julho de 1974?
Pessoalmente, não o cheguei a ver nem fui contactado por ele enquanto lá estive, até 27 de maio de 1975, nem depois. Alguns dos meus colegas sacerdotes contactavam-no nas reuniões que tinham de realizar com ele enquanto membros de grupos de contacto ou comissões de trabalhadores.
E que contactos mantinha a equipa sacerdotal com o Patriarca de Lisboa?
Durante todo o processo, demos-lhe conta da nossa posição em cada passo e das razões por que a assumíamos. Por exemplo, às 19 horas do dia em que os trabalhadores decidiram iniciar uma greve de silêncio, nós ouvimos esse comunicado dentro do carro, à porta do Patriarcado, e em seguida entrámos para falar longamente com o senhor Patriarca acerca da situação. Normalmente limitava-se a ouvir, de um modo muito hierático e frio, nada acolhedor. Respeitava as nossas opções, mas não deixava de nos considerar ingénuos. Uma vez que outra referiu-se a grandes maquinações internacionais, mas sem nunca nos dar a confiança de entrar em pormenores. No fundo, não parecia confiar em nós, pois em seguida víamos sair comunicados da Conferência Episcopal, a que ele presidia, totalmente decalcados do ponto de vista do Conselho de Gerência, ou muito provavelmente redigidos por ele e à medida da sua estratégia. Nunca os pontos de vista dos padres ou dos trabalhadores foram ouvidos para a elaboração desses comunicados. Curiosamente, uns três anos mais tarde, falei com bispos que não estavam minimamente a par do que se tinha passado. Será que nem a eles o Presidente da CEP informava da situação?
Qual a relação entre os membros da equipa sacerdotal? As suas decisões foram tomadas por unanimidade, ou existiam divergências?
Até ao dia 27 de maio de 1975 fomos unânimes nas nossas posições. Encontrávamo-nos de vez em quando – umas vezes em Coimbra, por estar a meio caminho, outras em Lisboa – para apurar critérios.
Manteve ou não as mesmas funções antes e depois do 25 de Abril?
Como já disse, eu antes era produtor exterior contratado para dois programas; a partir daí, fui contratado a tempo inteiro, para o setor da programação religiosa, integrado na equipa sacerdotal de que falei. Continuei com o Palavra do Dia a meu encargo exclusivo (que por isso era pago à parte), integrei o Marana tha sobre Bíblia no programa diário Esquema 13 (mas também à minha inteira responsabilidade) e assumi os outros trabalhos que me foram pedidos, como membro de uma equipa, incluindo alguns não especificamente religiosos por falta de outros repórteres. Lembro-me, por exemplo, de ter ido várias vezes ao aeroporto quando o cardeal Patriarca chegava de Roma ou de outras saídas importantes à Europa; fiz a reportagem da 1ª Manifestação feminista no alto do Parque Eduardo VII, onde queimaram revistas pornográficas, soutiens, etc.; e fiz a cobertura das Eleições para a Constituinte no distrito de Beja em 25 de Abril de 1975 (com reportagem, à ida, nas secções de voto da Escola de Grândola, e entrevistando, em Beja, o Presidente da Câmara local, major Mariz Fernandes, e, no regresso, o Presidente da Câmara de Santiago do Cacém) e fiz reportagem de rua no 1º de maio desse ano.
Na equipa sacerdotal, delineávamos e assumíamos rotativamente uma programação religiosa bastante vasta, como nunca existira naquela estação: Oração da Manhã, diário, com texto nosso; Palavra do Dia, diário (este, feito por mim); Reflexão do Meio-Dia e, Meditando, à noite, diários, de 3 a 5 minutos cada; Esquema 13 (diário, à noite), de 25 minutos; 3 noticiários semanais de 25 minutos (à Segunda, Quarta e Sexta) sobre a vida da Igreja, intitulado Igreja é plural; 2 programas semanais de 25 minutos, intitulados Diálogo; Tempo para o Espírito, semanal, de 25 minutos; pontos de vista e editoriais ou comentários a notícias de Igreja, a integrar nos principais noticiários, nomeadamente no Dezanove Ponto Zero Zero (às 19hs).
Estava, também, ao nosso encargo a reportagem das cerimónias de Fátima, que procurámos valorizar e ampliar, e a programação da Semana Santa, sobretudo Quinta, Sexta e Sábado Santo e Domingo de Páscoa. Antes, nalguns destes dias, a estação fazia como as outras: limitava-se a pôr música clássica no ar ou a guardar silêncio, como se a Igreja não tivesse uma mensagem tão rica e própria a transmitir. Lá por abril e maio de 1975, o Reitor de Fátima proibiu a transmissão de alguns atos que habitualmente eram transmitidos a partir daquele Santuário. Naturalmente, devido a um Comunicado da CEP, em fevereiro, retirando à equipa sacerdotal a sua confiança (mais uma vez, quem o terá redigido?). Tudo como represália pela nossa solidariedade com os trabalhadores, que impedia ou questionava certas estratégias.
Repare que nós continuávamos a celebrar e a pregar nas nossas paróquias. E as missas transmitidas pela estação até nem eram celebradas por nós. Mas era a estratégia patronal do Conselho de Gerência, a que a CEP dava total cobertura: criar, junto do público, a convicção de que aquilo era mesmo um antro de inimigos da Igreja! Pois se até já nem tinham confiança neles para lhes deixarem transmitir coisas das igrejas… Pois olhe, fizemos então belíssimos programas religiosos sobre Maria e o Espírito Santo. O da Solenidade do Pentecostes, por exemplo, durou uma hora. Ainda o guardo e projeto de vez em quando, pois mais tarde reduzi a sua duração e remontei-o para montagem audiovisual com slides.
A propósito, lembro uma atitude vertical do senhor Dom António Ferreira Gomes: ao serem proibidas as transmissões da Sé de Lisboa, na Semana Santa desse ano, pela mesma razão, ele disponibilizou a Sé do Porto. Com isto, julgo que deu uma grande prova de inteligência e de liberdade. Até porque soube aproveitar muito bem a ocasião para fazer uma catequese a todo o país sobre os acontecimentos da época. Sem oportunismos, pois foi bastante duro. Sugiro que procure essas homilias, por exemplo no jornal A Voz Portucalense, porque foram memoráveis e vêm muito a propósito para o seu tema sobre «A Igreja e a Revolução».
Houve ou não uma política de saneamentos na Rádio Renascença depois do 25 de Abril? Quem os praticou e a quem se dirigiam?
Não sei se houve ou não uma “política de saneamentos”; mas, atendendo à forma como o novo Conselho de Gerência entrou em ação, ficámos convencidos de que houve essa intenção, nalguns casos, por muito que a tentassem disfarçar sob o nome de testes “psicotécnicos”. Lembro que esses testes foram impostos a um grupo de trabalhadores (os padres não estávamos incluídos nesse grupo) integrados na estação no período subsequente a abril de 1974, após terem cumprido o estágio que era habitual fazer, na altura. E por terem feito com aprovação esse estágio é que se recusaram a fazer tais testes. Por seu lado, o Conselho de Gerência não reconheceu à Comissão de Gestão competência para ter procedido a essas admissões, começando a enviar cartas de despedimento aos trabalhadores que recusaram fazer os testes. De facto, esses testes não pretendiam apurar a sua competência profissional (já testada no estágio, sob os responsáveis dos respetivos setores, como era costume fazer-se até então, ali e nas outras estações), mas apenas ideológica. Algumas perguntas neles incluídas permitiam induzi-lo.
Mas devo lembrar, também, que os próprios trabalhadores “sanearam” alguns colegas mais qualificados e até posicionados “à esquerda”. Eu próprio votei a favor de alguns desses “saneamentos”, em assembleias até altas horas da madrugada. E embora não o fizéssemos por motivos ideológicos, isso prova que o espírito dos trabalhadores não era o que o Conselho de Gerência transmitiu para o exterior.
Sensivelmente desde maio de 1974, os trabalhadores assumiram as funções da sua própria representação e de negociação, perante a entidade patronal. Teve conhecimento da ingerência de estruturas sindicais ou de forças político‑partidárias na mobilização dos trabalhadores?
Concretamente, não me recordo; mas acho natural que houvesse tais “ingerências”, em sentido amplo, que eu entendo mais como consulta e apoio, pois também as houve de membros e grupos da Igreja. Em qualquer processo em que estão em jogo direitos, por exemplo, é normal as duas partes em litígio terem os seus advogados e representantes sindicais. É essa a sua finalidade. Aliás, um dos membros do Conselho de Gerência era advogado. Mas, não saberia dizer qual a família político-partidária da maioria desses conselheiros ou apoiantes. Certamente, não eram apenas de uma sensibilidade ideológica, pois as pessoas envolvidas eram bastante plurais nesse aspeto.
Na mediação do conflito entre os trabalhadores e a entidade patronal, a Junta de Salvação Nacional (JSN), o MFA e ainda delegados dos Ministérios do Trabalho e da Comunicação Social foram solicitados a intervir. Como é que essas entidades atuavam? Favoreciam de algum modo alguma das partes?
Umas vezes apareciam lá pelos Estúdios, falando com uns e com outros informalmente; outras vezes, reuniam com os representantes dos trabalhadores. Como não pertencia a nenhuma comissão dessas, não tinha trato privilegiado com eles. Só umas duas vezes nos reunimos todos. Uma vez que outra aconselharam-nos nalguns passos, ou porque nos apoiavam, ou porque pretendiam esvaziar a agressividade que pudesse transparecer num comunicado, fruto da tensão em que se vivia lá dentro. Um de que me recordo especialmente, e fez lá um bom papel de apoio e apaziguamento, foi o capitão Santa Clara Gomes. A partir de certa altura acho que se sentiram todos ultrapassados, ou sobrepunham-se, ou contrapunham-se uns aos outros, talvez porque representavam, também, setores e interesses diferentes.
As manifestações de solidariedade com as posições dos trabalhadores e da equipa sacerdotal foram-se sucedendo, ao longo do processo. A sua organização foi espontânea ou existiram contactos no sentido de se reunirem apoios para a causa que defendiam? De quem partiam esses apoios, e de que forma se faziam sentir?
Muitas e muitas foram espontâneas: ouvintes dos nossos programas, colegas, movimentos, institutos religiosos… As paredes de uma das cabinas, logo à entrada à esquerda, estavam cobertas de telegramas, cartões, mensagens de todo o país. Quando estivemos em greve de silêncio chegavam, inclusivamente, alguns apoios em dinheiro, que entregávamos aos colegas com maiores dificuldades. Como disse antes, houve a natural solidariedade dos sindicatos e, em certa fase do processo, alguns encontros com os seus representantes.
Em entrevista concedida ao jornal Nova Terra, em 24 de junho de 1975, o Pe. António Rego afirmou: «Pela nossa parte [entenda-se: equipa sacerdotal], algumas tentativas de diálogo foram feitas, quer com o senhor cardeal Patriarca, quer com cristãos, militantes sinceros da Igreja de Cristo, convencidos de que era possível resolver esta questão.» Que tipo de iniciativas foram essas?
Com o senhor cardeal Patriarca, já disse. Houve um grupo de sacerdotes, dos mais considerados no Patriarcado, que se dispuseram a mediar a causa e convocaram a equipa para um encontro de esclarecimento total no salão da igreja de São Nicolau, na baixa de Lisboa. Assim de repente lembro os padres José Mendes Serrazina, Armindo Duarte, José de Freitas, José Carlos de Sousa, Jardim Gonçalves, Alberto Neto (assassinado), António Janela, Miguel Ponces de Carvalho, entre outros… A mediação que tentaram junto do senhor Patriarca parece não ter tido grande efeito. Não sei se foi a partir daí que o cónego João Alves (hoje bispo resignatário de Coimbra), foi escolhido como seu delegado.
Também houve leigos que, a título individual, nos convocaram para sua casa, a fim de se ver o que poderia ser feito para dignificar a Igreja e as pessoas nesse processo. Espero não ser indiscreto se revelar duas delas, muito estimáveis: a doutora Manuela Silva e o engenheiro Sidónio Paes. E várias pessoas iam ter connosco aos Estúdios, durante o dia, sobretudo durante a greve de silêncio total entre 4 de fevereiro e 11 de março de 75, para fazermos o ponto da situação e refletirmos, com seriedade e à luz do Evangelho, o sentido da nossa presença e dos nossos passos.
Outras pessoas, algumas já falecidas, discordavam de nós e diziam-no pessoalmente ou por escrito, com toda a liberdade. Ainda guardo cartas dessas. Eu tinha a solidariedade dos meus Superiores (aliás, nesse período, era Conselheiro do Ministro Provincial); mas sabia que eles ficariam contentes se eu me retirasse espontaneamente do processo. Claro que, dada a nossa forma de vida em fraternidade, a minha sobrevivência não dependia tanto daquele emprego como a de outros colegas; mas até por isso eu achava que não seria honesto nem pobre, se desistisse. Houve confrades meus que foram a manifestações contra os trabalhadores da RR. Respeitava-os, como eles me respeitavam. Em junho tivemos o nosso Capítulo Provincial, onde aproveitei para dar contas de tudo e pôr um ponto final nessa fase da minha vida.
Que análise fazia, na época, da intervenção da Igreja Católica na sociedade portuguesa?
Ao falar de Igreja Católica, temos sempre que entender todos os batizados que se assumem como membros corresponsáveis do Corpo de Cristo, o qual ultrapassa a mera estrutura ou instituição mais visível à opinião pública. A sua missão na sociedade é serem sal, fermento, luz, sinal de um sentido para a vida. É através disto que a Igreja deve “intervir”. A vida dos cristãos, com um humanismo de qualidade inspirado na relação de Jesus com as pessoas, é que há de ser a grande energia transformadora do mundo ou a grande prova de verdade que leve os outros a crerem no mesmo Deus. Acho que a Igreja, enquanto instituição, não deve pretender ser protagonista nem força paralela à sociedade ou concorrente com ela, mas apenas viver na fidelidade a Jesus Cristo servindo as pessoas. Só quando as pessoas estiverem em causa, sejam cristãs ou não, é que a Igreja – em nome de Cristo, que encarnou em cada pessoa – deve erguer a voz ou intervir diretamente junto dos responsáveis por esses atropelos. O qual se torna irónico, se pensarmos que, entre nós tal como em Espanha e em vários países da América Latina, os principais responsáveis pela repressão dos opositores assumiam-se como “católicos praticantes” ou “anticomunistas”, e utilizavam os tão criticados métodos atribuídos por eles aos regimes comunistas.
Não custa reconhecer que, antes do 25 de Abril, uma parte da Igreja – a chamada hierarquia – muitas vezes não denunciou claramente os carrascos de tantas pessoas, nem apoiou os cristãos leigos, padres e até bispos que, em nome da sua fé, se empenharam corajosamente na mudança das estruturas opressoras. Mas também conhecemos momentos significativos em que o fizeram. Pessoalmente, sempre lamentei o silêncio de uma Conferência Episcopal inteira, nalguns casos, pois não acredito que todos os bispos fossem expatriados ou que a Igreja fosse perseguida por isso. Refiro-me, por exemplo, à expatriação de Dom António Ferreira Gomes e à expulsão de Moçambique, em março, de 1974, do Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira Pinto.
Lembro-me de ter dado essa notícia às pessoas no Calhariz de Benfica, em 27 de abril seguinte (dois dias depois da revolução), na Eucaristia das 19 horas, que nesse dia do mês tinha sempre uma intenção por António de Oliveira (o Doutor Salazar). Li, então, o Comunicado da Conferência Episcopal de Moçambique, antes proibido pela censura. Alguns dos amigos de Salazar saíram da igreja, mas ouvi a governanta Dona Maria de Jesus, nossa paroquiana, repreendê-los no final, cá fora, dizendo que o senhor padre também tinha dito umas coisas que eles gostariam de ouvir. Eu tinha dito que era demais a Junta chamar-se de Salvação Nacional, pois de fosse de Libertação já era bom; e que nos mantivéssemos atentos para, às tantas, não estarmos ainda a aplaudir como salvadores os que já nos tinham posto de novo uma bota em cima da cabeça. Foi assim textual, porque naquela altura escrevia sempre as homilias por extenso e certas partes eram mesmo lidas para maior precisão.
Após a revolução assisti a três das chamadas “Assembleias de Cristãos”, duas em Lisboa e uma no Porto. Numa das de Lisboa, em que também se falou da RR, esteve o cardeal Patriarca, que ficou de convocar a seguinte… até hoje. Ali foram feitas denúncias e pedidas contas. Ficou famosa, depois, a expressão do bispo do Porto, acerca dos cristãos que “pedem perdão batendo com a mão no peito dos outros”. Ou seja: todos os cristãos fomos e somos responsáveis pelo que a nossa Igreja é, diz e faz.
Eu fui pároco em Lisboa de 1970 a 1973 e sei que de vez em quando havia “inspetores” ao fundo da igreja, porque as igrejas eram espaços de liberdade. Nas instalações paroquiais, um grupo cristão refletiu sobre o país e as formas de intervenção na coisa pública, a partir de uma corajosa carta pastoral dos bispos no 10º aniversário da Pacem in terris; e as conclusões, algumas corajosas, foram publicadas no boletim paroquial. Muitas homilias e alguns boletins paroquiais ou interparoquiais falavam dos problemas em linguagem que os fiéis entendiam e a PIDE vigiava; na Missa da RTP, as homilias nomeavam os problemas, tanto que o Mário Castrim costumava transcrever longos parágrafos delas no Diário de Lisboa. E a Ação Católica foi uma grande escola de militantes comprometidos.
Também não tenho dúvidas de que, nas suas muitas frentes e através dos vários meios de intervenção na sociedade (movimentos, escolas, misericórdias, hospitais, creches, centros de dia, lares), a Igreja contribuiu para humanizar e dignificar a vida de muita gente. Esta ação social positiva não é tão lembrada e foi certamente mais eficaz do que o seriam meras denúncias que, por si sós, não iam mudar as situações reais das pessoas.
Depois do 11 de março de 1975, o ministro da Comunicação Social reconhecia não ter sido encontrada uma solução para o conflito na Rádio Renascença. Alegando que nenhum órgão de comunicação social podia funcionar sem que existisse uma entidade responsável pela sua programação, o ministro Correia Jesuíno nomeou uma Comissão Mista para a Emissora Católica. Qual foi a atuação da Comissão Mista? Que tipo de relações estabeleceu a Comissão e a equipa sacerdotal e os trabalhadores?
Que eu saiba, com a equipa sacerdotal enquanto tal, nenhuma.
Por diversas vezes, o Executivo aludiu ao projeto de criar uma empresa pública de radiodifusão, o que significava assimilar a Rádio Renascença. Na época, o que pensava da possibilidade de ser nacionalizada a Emissora Católica? Como reagiram os trabalhadores a essas propostas?
Se significava assimilar a RR, estou certo de que os trabalhadores reagiriam mal. A não ser que a nacionalização fosse apenas ao nível económico, e dentro dessa empresa pública houvesse um certo espaço de autonomia para estações diferentes, como acontece com as regiões autónomas em relação com o todo nacional. E que, aí, fosse garantida plena liberdade na programação e total isenção ideológica por parte do Estado. Mas não seria disso que se tratava, naquela altura…
Em que momento se apercebeu da instrumentalização do conflito em torno da Rádio Renascença, por parte de forças político-partidárias?
Na parte final, em abril e maio de 75. Mas por pessoas de várias tendências e com visões diferentes da Igreja e da sociedade.
Em alguma ocasião foi abordado, enquanto membro da equipa sacerdotal da emissora católica, por elementos de algum partido político?
Nessa qualidade, não. Mas tinha e tenho amigos de todos os partidos. Devo ter falado com eles deste assunto como de outros, mas não na perspetiva de estratégia ou influência partidária. Nunca fui estratego…
No final de maio de 1975, um grupo de trabalhadores denunciava a ação inoperante da Comissão Mista e decidia ocupar o Emissor de Benfica. No assalto participariam elementos estranhos à estação. Foi informado da preparação daquela ação de luta pelos trabalhadores, e de alguma forma convidado a integrá‑la? O que é que o levou a suspender a sua atividade na emissora? Foi uma decisão consentânea com a dos outros sacerdotes?
Nesse dia soubemos que a estação iria ser ocupada, porque não fizeram segredo disso. Mas não concordámos com a ação, porque os trabalhadores não iriam poder controlar o processo segundo as suas razões e objetivos, como até ali. Por isso saímos. Antes, não tive conhecimento de que iriam participar elementos estranhos à estação. E depois, só imagino que tenham participado, por alguns programas que a partir daí começaram a ir para o ar. O Conselho de Gerência, como outras entidades patronais, jogou com o tempo, sabendo que a resistência física e a capacidade económica dos trabalhadores acabaria por dobrá-los. Foi por isso que alguns dos mais recalcitrantes mudaram de trincheira, antes e depois da separação entre Porto e Lisboa em 27 de maio. E foi por isso que outros terão chegado ao desespero de aderir à ocupação do Emissor.
A minha atividade na Emissora, tal como a dos outros padres que trabalhavam nos Estúdios de Lisboa, cessou nesse dia por vontade própria. No noticiário das 19 horas, quando os trabalhadores de Lisboa resolveram ocupar o Emissor na Buraca, os do Porto – até ali com pouca programação própria, e a quem o Conselho de Gerência tinha ido aliciando com uma progressiva autonomia – cortaram a emissão e passaram a transmitir independentemente a partir dos Estúdios do Porto. O padre Carlos Capucho estava ausente do país; o padre Rego e eu encontrámo-nos no convento dos Capuchinhos, no Calhariz de Benfica, e dali telefonámos ao padre Eloy, que trabalhava nos Estúdios do Porto. Dissemos-lhe que íamos suspender a nossa colaboração, pois o processo, a partir dali, tornava-se imprevisível. Ele respondeu que, uma vez que estava no Porto e tinha entrado para a equipa com o aval do seu bispo (Dom António Ferreira Gomes), que não lhe tinha retirado a confiança, e uma vez que os trabalhadores do Porto se tinham separado dos de Lisboa, continuava naturalmente onde estava. Achámos mutuamente que ambas as posições estavam certas.
E ali mesmo, o padre Rego e eu redigimos um texto (ainda guardo o original com emendas, e a cópia definitiva) em que, resumidamente, dizíamos: até hoje sempre estivemos solidários com os trabalhadores e recebemos deles todo o apoio, sem qualquer interferência ou limitação ao nosso trabalho; mas, a partir do momento em que pessoas estranhas à estação vão interferir na sua vida, a nossa presença e mensagem pode tornar-se ambígua. Por isso, suspendemos a programação ao nosso encargo. E dizíamos o nome de todos os programas à nossa responsabilidade, que cessavam naquele dia. Voltámos aos Estúdios e demos conta da nossa posição aos trabalhadores. Tentaram demover-nos, garantindo todo o apoio e respeito, mas seguimos em frente: no tempo destinado ao Esquema 13 dessa noite, o padre Rego e eu lemos o texto alternadamente e despedimo-nos dos ouvintes. Não voltei mais a entrar naqueles Estúdios, até hoje.
Que diz da manifestação e contramanifestação de junho de 1975 em frente ao Patriarcado de Lisboa?
Já tinha deixado a estação, em 27 de maio, e a partir dessa data saí totalmente daquele filme. Tinham sido meses muito duros. Por isso, não estive de nenhum dos lados da barricada, nem sei qual o envolvimento efetivo dos reais trabalhadores da RR nesse ato. Ouvi dizer que fizeram confluir para lá outra manifestação de trabalhadores, salvo erro da LISNAVE. E aí já havia ódios contra a Igreja que nada tinham a ver com a causa dos trabalhadores da RR, pois alguns, como nós, também já tinham ido saltando do comboio em marcha. Mas, como nós previmos ao sair, as coisas tinham-se baralhado e descontrolado irremediavelmente, com militantes católicos cheios de boa vontade a esbracejarem com o Evangelho naquele pântano da programação, como Camões no meio do naufrágio tentando salvar os Lusíadas. Criaram, mesmo, um Programa intitulado “O Evangelho é uma arma”…
Depois da sua saída da Rádio Renascença, mesmo não sendo já trabalhador da estação, continuou ou não a intervir no processo?
Desliguei-me completamente dele. Até porque, em junho, os Capuchinhos decidimos investir de forma intensa no apostolado bíblico, para ajudar os cristãos a fazerem a leitura da situação à luz da Palavra de Deus e a manter-se firmes na fé perante um certo desmoronamento do contexto familiar e social anterior, mais propício à prática religiosa. E eu fui escolhido para constituir uma equipe a tempo inteiro, que percorreu o país nesse trabalho até maio de 1978, ano em que me foi concedido um tempo sabático em França.
Pendentes ficaram, como disse, uns vinte e tal contos que o Conselho de Gerência nunca me pagou. E o facto de continuarem com o título e formato do Palavra do Dia, um exclusivo meu (apenas apondo um A = A Palavra do Dia). Alguém, depois, até chegou a publicar um livro com esse título e tudo. Como são diferentes os direitos em Portugal!
Que leitura fez da decisão de se destruir à bomba o Centro Emissor da Buraca, no dia 7 de novembro de 1975?
Acho que foi a forma de resolver um problema pela raiz, à moda da época. Basta lembrar que se estava apenas a 18 dias do “25 de novembro”. Com a crise de autoridade de então, o Governo terá entendido que a única forma de calar os trabalhadores era “desligar-lhes” o microfone. Para a Igreja, enquanto proprietária, acho que também foi bom: o caso prestou-se para a dramatização social, ganhou um Emissor novo e pôde lançar campanhas de angariação de fundos e de sócios, dizendo às pessoas que “agora” a RR era verdadeiramente católica. Um bispo, então eleito responsável pela Comissão Episcopal das Comunicações Sociais, disse-o numa entrevista ao Nova Terra. Nunca percebi porquê, nem qual era o seu tempo e conteúdo de comparação. O outro “antes” não era, com certeza, o imediatamente anterior, ou seja, o da presença da equipa sacerdotal de que fiz parte.
A propósito, a 10 de novembro o “Conselho de Gerência da empresa” enviou a todos os Párocos e Superiores religiosos um Comunicado de que tenho cópia. Nele, começa por colar-se às “autoridades da Igreja” (nº 1) e termina falando em nome da “consciência dos católicos” (nº 4), misturando assim estruturas de gerência, poder ou autoridade com níveis de consciência e fé, como sempre fez em todo o processo. Ao lê-lo, alguém é capaz de pensar que aquele “grupo minoritário de trabalhadores e elementos estranhos” (nº 2) que então ocupavam os Estúdios de Lisboa e o Centro Emissor na Buraca era o mesmo do tempo em que o processo tinha outros contornos e razoabilidade. Mas, só por acaso, desespero, fatalidade ou mesmo ideologia num contexto diferente é que alguns eram os mesmos.
Na sua opinião, o que simbolizou e que impacte teve o projeto da Rádio Renascença, enquanto meio de comunicação social da Igreja Católica, na sociedade portuguesa entre 1974-1976?
Só respondo até 27 de maio de 1975. Nesse período, acho que a RR foi, mesmo, aquilo que os trabalhadores lhe chamavam: A Emissora da Liberdade. Porque a luta que outros queriam que a Igreja tivesse feito contra as opressões do Estado totalitário anterior, travámo-la nós ali, noutro âmbito e contra outro poder que até jogava com as consciências, sem sair da Igreja. E isso foi muito mais difícil e doloroso do que possa pensar quem está fora da Igreja. Era quase um suicídio. Muitas vezes eu dizia, meio a brincar, quando os colegas trabalhadores redigiam alguns comunicados: «Vocês nem imaginam com quem se estão a meter!» E eu próprio dei a volta a parágrafos inteiros, para que as palavras ouvidas cá fora correspondessem ao espírito com que se vivia lá dentro. Tive, ali, toda a compreensão viva desta palavra de Cristo: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8,31-32). Só com fé e amor à Igreja – apesar de tudo – é que os católicos assumidos como tais saímos do processo de consciência livre e leve.
Por outro lado, foi um espelho dos sonhos e das tensões ou sensibilidades diferentes da época. À luz deste processo, foi possível perceber muitas contradições e ambiguidades que atravessavam a Igreja e o país de então, aos vários níveis. A Igreja sentiu-se interpelada e teve ocasião para tomar consciência de si, do que era fundamental na sua identidade (sem se deixar iludir pelos números estatísticos dos seus fiéis, nem sempre acompanhados pelas convicções e pela vida de fé), na ação que devia desempenhar e na (in)adequação dos meios e métodos entre a sua vocação e a sua missão. Talvez um certo triunfalismo de vitória, no desfecho do processo, tenha feito perder uma boa oportunidade para ir mais longe e mais fundo na conversão desejável.
Em nome do Evangelho, lamento a forma como os meus dois colegas de Lisboa foram segregados em seguida. Quanto a mim, recordo-lhe um episódio elucidativo. Ao nascer o jornal Nova Terra, a diretora indigitada, Maria de Lourdes Belchior, convidou-me para fazer uma coluna do género Palavra do Dia relativa às Leituras dominicais, pois gostava desse meu programa na RR – disse. Preveni-a de que, naquele momento, provavelmente eu era uma “persona non grata” para o senhor Patriarca. Respondeu-me que o senhor Patriarca lhe tinha dado carta branca para convidar os colaboradores que entendesse. Na sessão de apresentação, na Casa de Retiros Bom Pastor, à Buraca, sob a presidência do senhor Patriarca, a Maria de Lourdes apresentou-me também e referiu-se à colaboração que me tinha pedido. No final, disse-me qual a data do primeiro número e que o padre Doutor Fernando Cristóvão, Chefe da Redação, me contactaria quanto ao prazo de entrega do primeiro trabalho. Ainda estou à espera desse contacto ou de qualquer explicação, que até seria simples. Pois, se eu próprio a tinha antecipado à Maria de Lourdes! Claro que a coluna foi ocupada por outro. Não me dói o facto em si, porque até me deixou mais livre para o trabalho bíblico itinerante que então assumira; dói-me é a falta de qualidade humana e de respeito pelas pessoas que lhe está subjacente e que foi uma constante ao longo de todo o processo da RR. E repare que, a outros níveis, eu continuava a ter a confiança do senhor Patriarca, pois era ele que assinava a minha licença para celebrar, confessar e pregar; e continuei a ser diretor da revista Bíblica até 1978… e depois, durante mais doze anos.
No que respeita à programação religiosa, esse período da RR foi um marco: os níveis de exigência e pluralismo a que se tinha chegado, criaram nos ouvintes a convicção de que era possível tratar a religião como boa-nova a merecer destaque de primeira página. […]
Sei é que muita gente confundiu ou misturou intencionalmente coisas diferentes, naquele processo. Não acho que os padres da equipa estivéssemos nesse número, embora algumas pessoas, incluindo colegas meus (ainda guardo as cartas!), dissessem que tínhamos entregue a Rádio Renascença aos comunistas.
Digo com toda a convicção: embora, para nós, a luta fosse laboral e não ideológica, a nossa presença lá dentro até ao momento sustentável acabou por ser um dos maiores impedimentos para que certas forças políticas não tomassem, mais cedo, atitudes extremadas que teriam muito provavelmente apoio de setores militares dominantes. E quando o fizeram, a própria degeneração do processo permitiu desmascará-los com facilidade.
Por isso, ainda hoje estou de consciência tranquila. E creio que esse foi o período da minha vida em que me senti verticalmente mais homem e radicalmente mais fiel ao Evangelho e à minha vocação franciscana. E ao meu sacerdócio. Dentro da Igreja e como Igreja – sublinho.