OS NÚMEROS E AS PESSOAS
1. Em 17 do corrente mês de Setembro, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma Nota sobre a “Missão da Igreja num país em crise”.
A Comissão Nacional Justiça e Paz deseja, antes do mais, sublinhar a relevância desse texto, que reflete a voz autorizada e oportuna da Igreja Portuguesa sobre a situação do país.
2. O início do novo ano de atividades ocorreu sob o peso esmagador das notícias da 5ª avaliação da Troika, e suas repercussões sobre a economia e as condições de vida dos portugueses. De modo geral, as medidas anunciadas situam-se à sombra dos compromissos assumidos pelo país junto das instituições credoras, com a agravante de tudo apontar para um ano de 2013 mais austero, contrariamente aos anúncios anteriores do Governo. A tónica de crítica generalizada dos comentários transmitidos pelos media é inédita, expressiva e preocupante.
3. Não é intenção da Comissão Nacional Justiça e Paz participar, com este comunicado, no debate sobre aspetos económicos e financeiros discutíveis da situação. A Comissão reconhece a importância da análise quantitativa, sobretudo quando reflete ou denuncia aspetos humanos ou sociais, e por isso mesmo não desvaloriza os efeitos positivos que podem advir da revisão dos défices públicos a respeitar em 2012, 2013 e 2014, bem como a decisão do BCE respeitante ao financiamento das dívidas soberanas.
4. Pelo que respeita às notícias veiculadas pelo Governo quanto à 5ª avaliação da Troika, a primeira nota que ressalta é a de um discurso determinista e fatalista, do «caminho único» e do «não há outra via», quando o mais verdadeiro e humilde seria o de dizer «eu não conheço outro caminho», ou «eu não sou capaz de seguir outra orientação». E note-se que algumas das vias alternativas foram fechadas pelo próprio Governo, através da total aceitação dos ditames da Troika, com pública declaração de concordância. Só aqui, reconhecendo aos credores o direito de ditar, em nome de uma «credibilidade externa», amputou o país de uns quantos graus de liberdade. Esqueceu-se que os credores não são um grupo qualquer de agiotas, mas instituições internacionais de que Portugal é membro, com deveres e direitos. Pelo menos neste contexto, seria exigível um comportamento civilizado, justo e solidário entre todas as partes.
Em segundo lugar, o Governo tentou perceber a situação do país sem nada exigir da Europa. Quando tantas vozes nacionais e internacionais autorizadas reclamavam uma atitude adequada por parte da Europa, tudo quanto vimos foi um gesto de submissão aos governantes de países mais poderosos, que bem depressa esqueceram a sua própria história no contexto europeu da segunda metade do século XX, e não perderiam em investigar sobre os verdadeiros ganhadores da União Europeia e da Zona Euro, desde que uma e outra existem. Aliás, respeitados ex-dirigentes daqueles países têm dado sinais claros de crítica à linha política dominante.
Em terceiro lugar, o Governo mostra-se crente num pensamento económico que o falhanço do défice orçamental do corrente ano deveria, no mínimo, levar a considerar como discutível. Porque se insiste em continuar a aplicá-lo, como base, no orçamento de Estado para 2013? As profundas alterações das previsões para 2013 deveriam ser mais do que suficientes para considerar seriamente outros rumos possíveis.
Em quarto lugar, o Governo nunca foi capaz de demonstrar que os sacrifícios exigidos aos portugueses estavam distribuídos com equidade. Apesar de frases sonantes nesse sentido, a política pública não tem combatido eficazmente as disparidades na distribuição do rendimento e outras formas de desigualdade na sociedade portuguesa, havendo mesmo indícios de agravamento destas desigualdades nos últimos anos. Só agora se ouviu o anúncio de que seriam sujeitos a impostos novos alguns tipos de bens e de rendimentos de capital. O contraste entre o pormenor das medidas que atingem os rendimentos do trabalho e o carácter vago e brando de algumas que irão afetar, no futuro, a riqueza e os rendimentos de capital é significativo.
O desnível das condições de vida sofrido pelas pessoas e famílias por força da crise e das políticas públicas revela um quadro socioeconómico gritantemente desigual. Enquanto a uns falta pão, casa, água e luz, outros mantêm um nível de vida praticamente igual, se não mais elevado, do que aquele que tinham antes da crise. Está aqui um critério fundamental de equidade: não basta proporcionalidade no que se retira (por via fiscal ou outra); também é preciso que exista equidade no que resta depois disso (rendimento disponível). Esta é a medida em que as pessoas e as famílias são afetadas pela crise e medidas conexas. Isto aplica-se não apenas aos rendimentos do capital, mas também a certos estratos de rendimentos do trabalho, como são os de alguns dirigentes de empresas.
Em quinto lugar, as medidas destinadas a acorrer ao desemprego — “o maior flagelo social do país”, nas palavras do Ministro de Estado e das Finanças — serão pouco eficazes perante a gravidade do problema. As reações de espanto dos responsáveis governamentais e dos membros da Troika face ao agravamento deste fenómeno denotam uma preocupante desadequação do seu pensamento económico à realidade económica do país. Exige-se de quem governa, agora como sempre, mais atenção à realidade e menos enfeudamento a ideias pré-concebidas.
Sexto, os apoiantes do Governo têm tentado ilustrar o «sucesso» da governação explicando que os objetivos da despesa foram conseguidos e só os da receita não, argumentando que só os primeiros dependem do Governo e os últimos não. A CNJP sente a obrigação de denunciar a desonestidade intelectual desta argumentação. Seria grave que o Governo abandonasse o êxito das medidas destinadas a aumentar as receitas públicas ao simples acaso. O mesmo se diga, se bem que por razões diversas, da declaração de um membro da Troika, no sentido de que o programa a que o país está sujeito é um programa do Governo português, como se a Troika não tivesse tido imposições.
Sétimo, verifica-se que o Estado de Direito vai-se enfraquecendo: a garantia dos direitos dos cidadãos vai-se fragilizando, nomeadamente no que se refere à parte contratual contributiva da Segurança Social (valor das pensões da reforma, por exemplo), e ao valor dos salários contratados. As alterações das condições contratuais por decisão unilateral prejudica o sentimento de estabilidade e segurança que qualquer Estado de Direito deve garantir aos cidadãos.
Oitavo, ao afirmar que “Até agora protegemos o nosso modo de vida, em geral, e, em particular, os mais pobres, mais vulneráveis e mais desfavorecidos destes riscos catastróficos (de bancarrota)”, o Governo revela desconhecer a realidade do país. Ocorre perguntar a que país se referia o Ministro da Finanças quando pronunciou aquelas palavras. Bastará interrogar os serviços sociais, públicos e
privados, para concluir que “o nosso modo de vida, em geral, e, em particular, os mais pobres, mais vulneráveis e mais desfavorecidos” está desprotegido. As instituições de solidariedade, nomeadamente as relacionadas com a Igreja Católica, vêm testemunhando essa situação de desproteção e o seu persistente agravamento.
A CNJP tem consciência de que a política anunciada para 2013 carece ainda de discussão e aprovação, designadamente na Concertação Social, na Assembleia da República e pelo Presidente da República, e, eventualmente, pelo exame do Tribunal Constitucional. A CNJP espera que ao longo do processo se possam modificar os aspetos mais gravosos do quadro apresentado.
5. A preocupação da CNJP é, antes mais, de natureza ética. Por isso, não pode subestimar as graves responsabilidades dos poderes públicos, de modo particular no que respeita à equidade e aos direitos básicos de subsistência e emprego. Mas não deve ignorar, igualmente, que as responsabilidades de cada um, cidadão e cidadã, de cada grupo e de cada empresa não se restringem apenas ao que seja exigido pelo Estado.
Numa situação tão grave como esta, que muitos portugueses e portuguesas atravessam, impõe-se que, para além do que se situa no âmbito da competência dos poderes públicos, cada um responda positivamente à sua própria consciência, em matéria de justiça e de solidariedade.
A gravidade da situação reclama urgência na ação, mas, como sublinham os nossos Bispos, importa reconhecer que “A superação da crise supõe [também] uma renovação cultural”. Tal renovação requer uma revisitação de alguns valores fundamentais, geralmente reconhecidos pela nossa sociedade, mas cuja densidade se foi perdendo com o passar do tempo: a dignidade da pessoa humana, enquanto ser individual e social; o reconhecimento de que a liberdade exige as condições existenciais para o seu exercício; o sentido do bem comum como dimensão indispensável da realização pessoal. Pelo que respeita, em particular, aos cristãos, lembramos o exemplo de Jesus Cristo, que “veio, não para ser servido, mas para servir” (Mt. 20, 28).
Lisboa, 19 de Setembro de 2012
COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ