O Pe. José Tolentino Mendonça desafia os cristãos a ler a Bíblia como um livro que é Teólogo e poeta são duas das palavras associadas ao Pe. José Tolentino Mendonça, protagonista de uma vida feita de investigação e anúncio. A actual crise da linguagem religiosa, testemunho do final de um certo modo de ser cristão, faz-nos acreditar que na nossa sociedade, a Fé não mais se transmitirá pelas veias da assimilação a um determinado contexto sócio-cultural. Esta convicção levou o actual secretário da Comissão Episcopal da Cultura a apresentar na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, a sua tese de Doutoramento sobre o tema “A Construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lc 7,36-50”. ECCLESIA – Continua a ser importante, em pleno século XXI, procurar novas abordagens à Sagrada Escritura? Pe. Tolentino Mendonça – Hoje em dia, todos sentimos a urgência de encontrar novos caminhos de aproximação ao texto bíblico. Ainda vivemos uma crise da linguagem religiosa, há uma dificuldade de expressar de forma pertinente e relevante o que são as verdades do núcleo fundamental da fé, entre as quais a Bíblia ocupa um lugar central. A necessidade de encontrar outros instrumentos de interpretação é vital, tanto mais que verifico um divórcio muito grande entre o Livro em si e aqueles que deveriam ser os seus receptores, os principais destinatários, que é o Povo de Deus. E –A crise da linguagem em relação à Bíblia tem a ver com os nossos preconceitos quando nos abeiramos dela? TM – Acontece muitas vezes haver uma convivência com o texto e criar-se uma falsa ideia de familiaridade: a Bíblia é um texto escutado que precisa de ser lido. Na fome e na sede que hoje sentimos nas comunidades cristãs em relação à Escritura se percebe que esse divórcio pode ser superado no esforço de ajudar a ler a Bíblia. Esse é um dos desafios do nosso século: hoje temos a consciência de que não basta tornar acessível a circulação material do texto, é preciso criar leitores competentes, para saber interpretar e chegar ao próprio texto. E – O desafio de fazer do leitor uma parte necessária para a compreensão da narrativa é algo recorrente no seu trabalho… TM – O diálogo com o leitor é conduzido pelo próprio texto, que precisa dele para acordar. Como diz Umberto Eco, o texto é uma máquina preguiçosa que precisa da colaboração do leitor para que a mensagem se erga. Este aproximar-se do leitor é alguma coisa que o texto pede e deseja: a abordagem do tipo narrativo é perceber como o texto leva o leitor a uma determinada compreensão e o conduz a um determinado efeito. Isto percebe-se com a Jornada de Nazaré, relatada por Lucas, quando Jesus pega no livro, o abre e lê uma passagem do profeta Isaías, dizendo, no fim de a ler: hoje cumpriu-se esta palavra. Jesus sentiu-se incluído no texto e o método de análise narrativa faz sentir ao leitor que ele não é um espectador, mas que as histórias permanecem em aberto, incompletas, enquanto o lietor não dizer “hoje cumpriu-se esta passagem da Escritura”. E – De que nos devemos valer para ler a Bíblia: da crítica literária ou da teologia? TM – As duas coisas não se podem opor, mas a compreensão de que grande parte da Bíblia é composta de histórias e que é preciso saber interpretá-las usando métodos de outras áreas do saber – a teoria da literatura, estudos literários -, métodos que se utilizam para estudar os romances, ler a Bíblia como um livro, podem ser caminhos muito importantes. Precisamos também de um outro conjunto de instrumentos – história, arqueologia, sociologia, teologia – para nos avizinharmos do maravilhoso mundo bíblico. E – Essa síntese é feita no seu trabalho? TM – Eu tentei fazer uma leitura literária de um texto de Lucas e depois abrir para todo o Evangelho. Um dado interessante que hoje se tem na interpretação da Bíblia é o aproveitar de um património que vem da literatura para colocá-lo ao serviço da leitura bíblica. Isso pareceu-me pertinente e foi esse exercício de uma leitura literária do próprio Evangelho que eu fiz, sem dissociar o conteúdo do livro da maneira como ele está escrito: temos de valorizar e percepcionar os sinais que o autor literário, Lucas, utilizou. E – O método narrativo traz alguma novidade na leitura do Evangelho? TM – O método torna a mensagem mais viva, mesmo quando o texto é conhecido, porque muitas vezes o convívio com a Bíblia é muito utilitário, manipulador, para se confirmar uma ideia ou uma verdade, colocando-a ao serviço de uma catequese, de uma afirmação teológica, doutrinal, moral. A grande viragem é regressar ao texto, aos seus conteúdos, deixando-se encantar pelo próprio texto, porque em grande parte a Bíblia é feitas de histórias e a narrativa é um encantamento colocado no correr tempo. É preciso deixar-se encantar pelas histórias sobre Jesus e não ficar apenas pela incoência do encantamento, partindo para um encontro mais profundo com o mundo do próprio texto. E – O Pe. Tolentino fala em orgânica do texto e que não é possível entender o resíduo teológico sem compreender essa orgânica. TM – Exactamente, as duas coisas estão unidas e se nós quisermos saber quem é Jesus precisamos de fazer o caminho do texto. Quando falo em “Construção de Jesus” não é porque Jesus não preceda o próprio texto como existência histórica, mas Lucas, ao contar Jesus, como que o vai construindo pela acumulação de traços, de características, contando o espaço e o tempo, dando uma organização própria à intriga do Evangelho. O que me interessou foi perceber esta “construção”. E – Palavras como construção e intriga não são muito comuns na análise Bíblica… TM – Nós cristãos lidamos com a Palavra de Deus há 2 mil anos e só recentemente se começou a utilizar o vocabulário da leitura e dos livros para a Bíblia. Penso que no futuro estes termos soarão menos estranhos. E – Ainda assim, falar de “A Construção de Jesus” não poderá introduzir um elemento de ambiguidade? TM – Há uma ambiguidade que é pretendida, no sentido de despertar a atenção. Ao mesmo tempo, a palavra construção é própria deste método narrativo: o que me interessa tomar é o relato que Lucas faz do Jesus histórico, não se preocupando em traçar um retrato acabado de Jesus, passando pela indeterminação, pelo paradoxo e a ambiguidade. Um dos méritos do título deste trabalho é exactamente dizer aos cristãos que nós não temos o conhecimento completo de Jesus, não sabemos tudo o que é possível saber, mas todos nós precisamos de nos tornar de novo leitores e discípulos que fazem o caminho que o Evangelho nos narra. E – O seu trabalho parte de um episódio para tirar conclusões mais gerais sobre o Evangelho. Porque a escolha desta passagem (Lc 7,36-50)? TM – A estrutura do Evangelho de Lucas e dos outros é uma composição por episódios. Nós não temos uma história única do princípio ao fim, temos sim a cristalização em torno a uma pessoa, a pessoa de Jesus. Os evangelistas querem contar a história de Jesus e fazem-no numa sequência de episódios: eu escolhi um que é uma miniatura preciosa, onde Lucas revela todas as capacidades que tem como contador de histórias, que é o episódio de uma mulher anónima, uma intrusa que interrompe uma refeição de Jesus em casa de um Fariseu. Cria-se aqui um incidente em que Jesus é posto causa pelo seu anfitrião e em que Jesus acaba por colocar em causa toda a ideologia representada pelo seu anfitrião, acolhendo o gesto da mulher, perdoando os seus pecados e revelando-se como salvador da pessoa humana. Ao longo do Evangelho há vários títulos atribuídos a Jesus, com uma função revelatória, e este texto é muito importante porque representa o questionamento do título de profeta, percebe-se que Jesus é mais que um profeta porque tem o poder de perdoar os pecados E – Quais foram os motivos que o levaram a fazer uma tese de doutoramento sobre este texto? TM – A minha ideia inicial era analisar os três momentos em que Jesus é convidado dos Fariseus, uma especificidade do Evangelho de Lucas, que se passa muitas vezes em volta da mesa, como na literatura grega. Acontece que o primeiro texto se revelou tão rico e profundo que foi suficiente para a apresentação deste trabalho. E – A sua faceta de autor está presente? TM – Está presente sobretudo na atenção ao trabalho de Lucas. Se calhar a poesia e a literatura constróem um leitor atento aos processo da criação literária, se bem que o método de análise narrativa é bastamente utilizado. Agora, o grande desafio passa pela leitura, só nos aproximamos de Jesus passando pelo relato do Evangelho. E – É preciso partir ao encontro do texto como se fosse desconhecido? TM – Exactamente: temos de compreender que não sabemos nada do texto e precisamos de aprender tudo outra vez. Notícias relacionadas • A narrativa bíblica e a crise da linguagem religiosa