Os Arquivos da Igreja: Preservação e Fruição – Memória e Identidade

Ricardo Aniceto, Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa

Cuidar os arquivos da Igreja pode parecer um contra-senso num tempo marcado pela afirmação de um modo de estar em sociedade centrado no usufruto imediato de bens e numa lógica do lucro, tendo por consequência o actual quadro económico e financeiro em que as pessoas têm de ser a prioridade por excelência, em que da Igreja Católica se reclama grito solidário e gesto humanizante.

Qual será, neste quadro, a importância dos arquivos da Igreja? Em que aspectos, e sobre que fundamentos, se poderá dizer que urge preservá-los e enquadrá-los numa pastoral da Cultura que cultive a memória e a identidade?!

A novidade do Cristianismo, Revelação continuada na história da humanidade, faz-nos compreender que a Fé, dimensão plena de beleza e mistério, é perpassada pelo testemunho de homens e mulheres que, na sua acção e testemunho, foram Cristo para os outros (Tradição). A importância pastoral dos arquivos radica no facto de serem o lugar de memória das comunidades cristãs e de registarem o percurso feito pela Igreja ao longo de séculos, em cada uma das realidades que a compõem, cultivando a memória da sua vida e dando eco da sua dimensão evangelizadora.

Na verdade, uma instituição que esquece o próprio passado, dificilmente consegue configurar a sua função entre os homens dum determinado contexto social, cultural e religioso. Nesse sentido, conservando os testemunhos das tradições religiosas e da praxis pastoral, os arquivos têm uma intrínseca vitalidade e validade, contribuindo para fazer crescer o sentido da pertença eclesial de cada uma das gerações. (Cf. IGREJA CATÓLICA. Comissão Pontifícia para os Bens Culturais da Igreja – Os Bens Culturais da Igreja. Lisboa: Paulinas, 2000, p.79.).

Não obstante a expulsão das Ordens Religiosas em 1834 e as leis da I República com impacto nesta área, a Igreja Católica é, ainda hoje, depositária de um extenso património documental passível de gerar perplexidades quando urge o seu tratamento. Em 2008 estimava-se em 500 km a documentação produzida e acumulada pela Igreja em Portugal. Aliado este volume documental aos custos inerentes a um processo moroso e com exigências técnicas e humanas específicas, acreditamos que os responsáveis pelas várias estruturas vacilem na hora de actuar.

Sem pretendermos cair em apologias utópicas em torno das práticas para a salvaguarda e conservação do património documental, não podemos deixar de nos sentir motivados para a necessidade e urgência que se coloca ao cabal tratamento dos nossos repositórios documentais. A inviabilidade económica em dotar serviços da Igreja com um aparato técnico-científico de última geração não pode ser factor para um descomprometimento com a memória das comunidades cristãs.

Em verdade, para uma digna conservação dos documentos bastam, muitas vezes, cuidados básicos de higiene e correcto acondicionamento; a valorização e incremento do diálogo para co-responsabilização das diferentes estruturas eclesiais; a criação de estruturas básicas de arquivo no âmbito de uma política da memória que seja o ponto de referência do projecto a construir; a afectação de técnicos de arquivo ou responsável diocesano pela área; uma aposta decidida no diagnóstico dos arquivos da Igreja, já em marcha; a procura de financiamentos para projectos-piloto de qualidade que qualifiquem o trabalho e, por si, captem novos financiamentos. Tudo isto numa lógica de parcerias eclesiais, com a sociedade civil e, inclusive, com o Estado.

Em suma, as condições para a implementação dos arquivos da Igreja passam pela tomada de consciência da importância do património documental existente e do que se cria diariamente, assumindo a responsabilidade pela sua gestão e conservação. Diagnosticar os problemas, eleger a meta, fixar um caminho com objectivos claros e tangíveis utilizando os meios possíveis e trabalhar em rede são pressupostos fundamentais para elaborar um plano geral de actuação sobre o nosso património arquivístico, quer sejam projectos de grande envergadura ou pequenas intervenções.

Sejamos capazes e audazes de actuar junto do nosso património documental para testemunharmos, com propriedade, esta dimensão que perpassa a nossa história e identidade: a nossa vocação de Filhos de Deus. Se é verdade que a expressão da fé através da cultura e de uma cultura que ilumina a fé é um campo que avança lentamente, também é verdade o que nos disse João Paulo II ao referir que uma fé que não se transforma em cultura é uma fé mal assumida, mal compreendida e não completamente vivida.

Coincidindo no reconhecimento da importância do património histórico-cultural da Igreja enquanto repositório das fontes do desenvolvimento das comunidades cristãs e na importância e necessidade da sua comunicação enquanto memória da evangelização e instrumento de pastoral, ousemos descobrir-nos nesta radicalidade de procurarmos ser, de há dois milénios para cá, rostos de Cristo.

Ricardo Aniceto, Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa

Serviço de Arquivo Histórico e Biblioteca 

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