Pe. Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Estamos a viver tempos em que a fé e o ateísmo convivem pacificamente e se toleram sem grande confrontação. Já lá vão os tempos em que se travaram grandes disputas e combates para se aniquilarem um ao outro. Claro que ainda têm os seus defensores sempre atentos e empedernidos, que de vez em quando se envolvem em escaramuças intelectuais e largam uns dichotes ou umas sentenças presunçosas para não deixar morrer as brasas, mas sem o fervilhar e a belicosidade de tempos idos. A Igreja reagiu, sobretudo, ao ateísmo promovido por ideologias e regimes políticos, movimentos culturais e um certo cientismo radical que se instalou na mentalidade científica.
O confronto com o ateísmo foi útil e importante para a fé. Permitiu purificar a fé de muitas incongruências e incoerências, nomeadamente das muitas imagens erradas de falar de Deus e de O apresentar e das deficiências que existem nas propostas religiosas. O ateísmo manifestou aos crentes algumas inconsistências da sua fé e obrigou-os a compreenderem melhor a sua fé, a estudá-la e aprofundá-la, e a repensarem na forma como a propõem ao mundo.
Pelo que ainda vamos vendo e lendo, o ateísmo ainda subsiste na sociedade, nas suas variações, na linha do que pensava o sacerdote, teólogo e filósofo alemão, Bernhard Welte: ainda vemos o ateísmo negativo, que considera sem sentido qualquer busca de Deus ou pergunta por Deus, já que ao ser humano só interessa investigar e inteirar-se do mundo, Deus não interessa nada. Temos o ateísmo crítico, que acredita que o pensamento humano quando chega à sua maturidade prescinde de Deus e elimina-o, e mesmo que Deus possa existir, é impossível conhecê-lo e defini-lo com clareza. Portanto, Deus é estranho e é descartável. Persiste ainda o ateísmo militante: há que derrubar Deus de uma vez por todas, Deus amarra e castra o ser humano, é uma limitação ao poder, à liberdade e à ambição do ser humano. O homem só deve acreditar em si mesmo e nas suas capacidades e assim colocar-se no lugar de Deus. Então o mundo será de verdade livre e maravilhoso. Um ateísmo que, no fundo, está ao serviço da fome de poder e controle do ser humano, e já sabemos que efeitos teve na história da humanidade. Por fim, e este talvez seja o merecedor de mais respeito, temos o ateísmo sofredor: como acreditar em Deus diante do sofrimento, da maldade e da injustiça que vemos no mundo? Poderá existir um Deus, quando o mundo por Ele pretensamente criado bom está tão cheio de sofrimento e injustiça? Se o mundo é assim, então Deus não existe. A vida assim e um mundo assim não tem sentido. Assim não dá para acreditar em Deus. É um ateísmo para o qual não há resposta fácil e razoável, e ninguém está livre de ser atravessado por ele nas duras vias-sacras que a vida nos oferece.
Um tipo de ateísmo que atualmente ocupa o primeiro lugar do pódio talvez seja o que alguns chamam o “ateísmo do orgulho”: impulsionado pelos grandes avanços e descobertas científicas dos últimos anos, pelo progresso tecnológico que permitiu à humanidade adquirir ferramentas poderosas e de grande engenho e produtividade, que abriram um novo mundo de domínio e possibilidades, o ser humano atual sente-se quase divino, sente-se tentado a ser como Deus e que pode ser Deus, com capacidade para ser senhor do bem e do mal, determinar o que é bom e o que é mau, segundo o seu próprio gosto, interesse e vantagem. Domina a sensação de que tudo está nas suas mãos e tudo é e será possível, já não é preciso perder mais tempo na busca de um Deus e em viver uma relação com Ele, já nada faz falta e o que Deus tem para oferecer já não é preciso. Já tudo se pode alcançar para preencher todas as necessidades do ser humano. Deus é para esquecer. Ateísmo que nos leva ao encontro do “pecado original” nos inícios da história da humanidade.
No campo do ateísmo temos um grande campo de reflexão, mas talvez o maior desafio que a Igreja hoje encontra é o confronto com os que alguns denominam os apateístas, cada vez em maior número, ou seja, os apáticos, os indiferentes perante Deus, a fé, a religião e a Igreja, aqueles que não manifestam qualquer interesse por Deus e pela vida religiosa, que afirmam não precisar de Deus para nada – essa questão nem se coloca – e que se pode viver perfeitamente sem qualquer ligação ao transcendente ou a uma confissão religiosa, pessoas completamente alheias à fé e sem necessidade de contacto com a Igreja. Pessoas que se sentem bem no seu mundo plenamente mundano. O agnosticismo verdadeiro não é apateísmo, mas há muitos ditos agnósticos que, na verdade, são apateístas. Conversar com os indiferentes, que rejeitam liminarmente qualquer diálogo e atenção à fé ou a Deus, que se sentem muito bem na sua indiferença saciada e autossatisfeita, despertá-los e trazê-los para o universo da fé, é um berbicacho que a Igreja hoje tem diante de si. Como poderemos provocá-los de forma positiva? Como poderemos quebrar esta indiferença?
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