Todos os dias a Igreja celebra o mesmo e único mistério da Páscoa de Cristo. Mas nem por isso, ao ritmo da liturgia, deixa de fazer uma “peregrinação interior” para celebrar a Páscoa anual. A este momento favorável chamamos Quaresma. A Quaresma, como indica o próprio nome, está programada para quarenta dias penitenciais (omitindo os domingos), destinados a preparar e a iniciar sacramentalmente para a Páscoa. Durante estes dias a oração torna-se mais intensa e a penitência é mais acentuada. É um tempo de retorno a Deus, de conversão e de abertura aos outros e, simultaneamente, um tempo de alegria baptismal, porque iluminado pela luz do mistério da Páscoa de Cristo. A Quaresma antiga era o contexto próprio da última preparação dos catecú-menos para o Baptismo na vigília pascal. Desde o séc. IV, com efeito, a oração, o jejum e a esmola constituem um programa existencial em ordem à celebração anual da Páscoa. A tal propósito escreveu Santo Agostinho: «Para que as nossas orações possam mais facilmente chegar a Deus é preciso que sejam acompanhadas pela esmola e pelo jejum» (Sermão 206). A oração caracteriza-se por uma relação de aliança entre Deus e o homem em Cristo. Este encontro com Cristo não se exprime apenas em pedidos de ajuda, mas também em louvor, acção de graças, escuta e contemplação. A arte de rezar exige uma aprendizagem na escola do Mestre, como lhe pediram os discípulos: «Senhor, ensina-nos a rezar» (Lc 11,1). Ele mesmo nos ensinou a chamar a Deus, Pai e nos mostrou a beleza e a bondade do Seu rosto. O jejum tem certamente uma dimensão física, como a privação voluntária de alimentos, mas é sobretudo a privação do pecado. Conforme uma oração da liturgia: «Fazei, Senhor, que os vossos fiéis se preparem convenientemente para o mistério pascal, de modo que a mortificação desta Quaresma a todos aproveite para bem das suas almas» (Colecta da Sexta-feira da I semana da Quaresma), o jejum é sinal do combate contra o espírito do mal. O modelo deste combate é Cristo, que foi tentado muitas vezes ao sucesso, ao domínio e à riqueza. No entanto, a sua vitória sobre todo o mal que oprime o homem inaugurou um tempo novo, um reino de justiça, de verdade, de paz e de amor. A esmola é fruto do jejum e situa o cristão na essência do cristianismo, ou seja, a caridade. S. Leão Magno diz que «A caridade é a força da fé, a fé é a energia da caridade» (Sermão 95). A relação dinâmica entre o amor e a adesão a Cristo fazem do gesto de ajuda, expresso na esmola, uma partilha fraterna e não uma esmola humilhante. Hoje, a terna da oração, do jejum e da esmola não perderam actualidade e continuam a ser propostos como instrumentos de conversão. A estes meios clássicos podemos acrescentar outros em ordem a melhorar a relação com Deus, connosco próprios e com os outros. O silêncio, a escuta da Palavra de Deus, a lectio divina, a Liturgia das Horas, os sacramentos e a centralidade da Eucaristia expressam bem a oração da Igreja que vive centrada na Páscoa. Rezar é confiar no Senhor que nos ama e corres-ponder ao seu amor incondicionado. Por sua vez, a oração penitencial privilegia o agradecimento da misericórdia de Deus e prepara o coração para o perdão e para a reconciliação. A experiência do jejum exterior e interior favorece a opção pelo essencial. No nosso tempo, o jejum tornou-se uma prática habitual. Alguns jejuam por razões dietéticas e estéticas. Todavia, o jejum cristão tem uma referência cristológica e uma dimensão solidária. Como Cristo e com Cristo jejuamos para sermos mais solidários e abertos ao Outro e aos outros. Podemos praticar várias formas de jejum, como por exemplo, o jejum mediá-tico da televisão, da internet, do telemó-vel, para redescobrir a beleza do encontro e da comunhão. O amor é criativo e encontra formas sempre novas de viver a fraternidade. O importante é que contribua para a sinceridade do coração e a coerência das atitudes no caminho da paz. Evitar a crítica maldizente, os preconceitos e os juízos acerca dos outros, favorecerá a autenticidade da vida cristã. Os grandes obstáculos a vencer são o egoísmo e orgulho, que impedem a generosidade do coração. No início da Quaresma, a liturgia renova o veemente imperativo: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc 1,15). Eis o convite à conversão interior, à mudança de mentalidade para acolher o Reino de Deus e para anunciar a Boa notícia. O Evangelho é o próprio Cristo. Acreditar no Evangelho implica, por isso, o seguimento de Jesus. A sua Ressurreição está já presente na penitência da Quaresma, que ajuda o cristão a morrer para si mesmo e a reviver plenamente em Cristo ressuscitado. Pe. José Cordeiro, Reitor do Pontifício Colégio Português