«Onde está o teu irmão?»

José Rosa, professor da Universidade da Beira Interior

A Mensagem do papa Bento XVI para a Quaresma de 2012, propõe-nos a meditação, em compasso ternário, de uma passagem da Carta aos Hebreus (10, 24): «Prestemos atenção / uns aos outros, / para nos estimularmos ao amor e às boas obras.»

Prestar atenção porquê? Porque amiúde andamos distraídos. Ou, pior, olhamos indiferentes, sem ver. Ou pior ainda: olhamos invejosos, com aquele olhar vesgo que mata e petrifica. A atenção e o espanto perante a natureza, há muito tempo que ciência moderna os matou. Prestar atenção, observar o mundo como quem o vê pela primeira vez, em silêncio e em jejum, como que saído das mãos de Deus, é cultivar um sadio e franciscano reencantamento do mundo. Ora o mundo é também o lugar onde aparecemos uns aos outros, para o bem e para o mal. No Livro do Génesis 4, 9, depois de matar Abel, Caim responde à pergunta “Onde está o teu irmão?” com um “Não sei!”. E acrescenta ato contínuo: “Acaso sou eu o guarda do meu irmão?” Terrível evasiva. Meditando nesta passagem bíblica, o Talmude da Babilónia (Tratado Aboth, 6) lança duas interrogações que permanecerão enquanto a humanidade for humanidade: “Se não respondo por mim, quem responderá por mim? Mas se só respondo por mim, serei ainda eu?” O inferno não são os outros, afirmava muito a propósito l’Abbé Pierre, contrariando Sartre. O inferno somos nós próprios separados dos outros.

Neste tempo de Quaresma e de crise europeia e global (e a Quaresma é sempre tempo de krisis, i.e., de discernimento, de atenção, de encruzilhada, de vida joeirada e examinada, a única que merece ser vivida) urge atalhar o atavismo arcaico: “salve-se quem puder”. Este tropismo de ouriço, soprado por certos ismos, ameaça hoje a nossa vida pessoal e coletiva. E alguns núcleos da União Europeia, mais do que uma discutível quarentena, parecem já dispostos a abandonar alguns países e, com isso, o sonho dos pais fundadores: a paz, a justiça, a prosperidade, a solidariedade num continente propenso à guerra. Entre nós a exclusão grassa. Oxalá o poeta não se tenha enganado e que “onde cresce o perigo nasce também aquilo que salva” (Hölderlin), pois a crise pode ser um bom momento para retorno ao essencial, para a frugalidade do que mais importa.

A palavra do autor da Carta aos Hebreus é para que prestemos atenção uns aos outros. Existem certamente diferentes esferas de atenção e de responsabilidade pelo outro, a começar pelos laços de sangue até à grande família humana. Em cada uma destas esferas coloca-se a questão: quem é o meu outro? Não há dúvida de que, em primeiro lugar, somos próximos do mais frágil e mais desprotegido junto de nós e a quem podemos dar e pedir a mão. Os problemas globais, os da Europa, os da Grécia e da Síria, os do Mundo, os da Humanidade pedem-nos certamente toda a atenção e solidariedade. O caminho para o universal, contudo, passa sempre pelo singular concreto. Prestar atenção é começar por cair em si, descobrir-se outro em relação com tudo: com o mundo, com a cultura, com os outros próximos e longínquos, e com um horizonte de sentido último para a que somos convocados, mas que não dominamos. É preciso superar aqui a pertinaz obstinação do nosso olhar e do nosso pensamento que pensa por oposições, que precisa de “substancializar”, “etiquetar” e reificar, processo que historicamente culminou no solipsismo e no individualismo teórico e prático, e no egoísmo das “belas consciências”. Prestar atenção é também “ler com verdade dentro de si mesmo”, descobrir-se antecedido numa relação de doação de próprio ser. E a essência do ser é comunhão, afirmava o trapista Thomas Merton. É neste reconhecimento de si, dos outros e de tudo como relação/comunhão que assenta o sentido da reciprocidade verdadeira, nem parasitária nem parasitada. Nietzsche, que nos cumes gelados de Sils Maria se pretendeu já “para além do bem e do mal”, não pôde compreender nada da experiência cristã ao dizer que “Ser cristão será, no futuro, indecoroso”. Mas certas visões passivas e doloristas do cristianismo davam-lhe razão.

Contudo, apesar da teologia sacerdotal da Carta aos Hebreus, Jesus de Nazaré nunca se viu a si mesmo como Sumo-sacerdote de uma religião. Jesus foi para o deserto sonhar o Reino, uma fratria radical que questionava na raiz todos os poderes e os calendários religiosos, do sagrado cósmico, esmagador, cratofânico, porque “o Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado” (Mc 2, 27) e o Filho do Homem é também o Senhor do Sábado. Para a experiência cristã, a hora que vai chegar é sempre “agora”: “Mas vai chegar a hora, e é agora…” (Jo 4, 23: Sed venit hora, et nunc est…). É “agora” para a Samaritana de Sicar, junto ao poço de Jacob, e é igualmente “agora” para o Samaritano que não passou adiante e foi o próximo do homem que descia de Jerusalém para Jericó, e é sempre “agora” para cada um de nós. O único tempo que temos é agora. Entre o e o ainda-não pascais, a Quaresma é também, agora, o pretexto litúrgico e pastoral para todos os dias prestarmos “atenção uns aos outros” e nos “estimularmos ao amor e às boas obras”.

Se quiséssemos dizê-lo em regime reflexivo, aproveitando ainda a mesma cadência, relembraríamos o ‘triângulo de base da ética’ (P. Ricoeur): procurar a vida boa, / com e para os outros, / em instituições justas. E porque a palavra ad extra é, em primeiro, lugar palavra ad intra, um exemplo luminoso de “boas obras” foi-nos dado em tempos pelo ‘bom Papa João’ XXIII. Estando um dia a falar com um dos empregados do Vaticano, como gostava de fazer, pergunta-lhe como vai a vida. Ele respondeu: “Vai mal, vai mal, Vossa Eminência”, referindo o pouco que ganhava e as despesas avultadas que tinha com uma família numerosa. João XXIII respondeu: “Temos que tratar disso. É que, aqui entre nós, eu não sou Vossa Eminência, sou o Papa.” Tentando mais tarde melhorar os salários dos funcionários do Vaticano, foi-lhe dito que “só cortando nas obras de caridade” se poderia “aumentar as despesas”. Sem hesitar redargui: “Então é o que teremos de fazer. Porque a justiça está antes da caridade.”

José Maria Silva Rosa, professor da Universidade da Beira Interior

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