Observatório Permanente sobre a Produção, Comércio e Proliferação de Armas Ligeiras comenta Verão de 2008 O Observatório, em reunião de 18 de Setembro de 2008, examinou os acontecimentos com relevância sobre a segurança interna dos últimos três meses e decidiu tornar público o resultado da sua reflexão. Um pico de violência sem precedentes Neste final de Verão de 2008, olhando para o sucedido em Portugal nos últimos três meses, podemos afirmar ter assistido a um pico de violência sem precedentes, deixando muito para trás a sensação de insegurança de um verão já um pouco distante (2004) com assaltos na C.R.E.L. na área da Grande Lisboa, envolvendo, até, actrizes conhecidas do teatro e da T.V. Desta vez houve um pouco de tudo, sequestros, assassinatos, tiroteio colectivo, assaltos a bancos, a estabelecimentos comerciais, a residências a carrinhas de valores, roubos de caixas de multibanco, carros incendiados, a violência dentro de esquadras, de tudo resultando mortos, muitos feridos, alguma gente presa, muita mandada para casa apenas com termo de identidade e residência, e muitos mais ainda a monte por identificar e encontrar. E sempre, omnipresentes, as armas ligeiras, instrumentos visíveis e actores principais de toda esta violência. Dois aspectos característicos dos acontecimentos destes dias Dois aspectos caracterizaram a violência do verão de 2008. Por um lado, o papel dos meios de comunicação social na difusão deste clima de insegurança como, por exemplo, a reportagem televisiva dos tiroteios colectivos na Quinta da Fonte em 10 e 11 de Julho, com uma descrição circunstanciada da movimentação de variadíssimos actores de uma das “partes”, dando largas á sua violência através de repetidos disparos sobre o outro “lado”, e o episódio da “morte em directo” de um sequestrador num assalto a uma dependência bancária na noite de 7 de Agosto. A comunicação social, à falta de outros assuntos – o que acontece por esta altura do ano –, potenciou o mais ínfimo pormenor do sucedido, ajudando a espalhar o clima de receio que o simples enunciado destes acontecimentos provocaria. Por outro lado, e já na ponta final deste verão (11 de Setembro) uma grande entrevista, muito interessante, a uma Procuradora Geral Adjunta do Ministério Público, que nos veio confirmar, sem titubear, que a recentíssima legislação penal e de processo penal retirou importante capacidade de repressão na luta contra o crime violento, enviando um claro sinal aos prevaricadores de que a justiça tinha adoptado uma via de maior brandura no seu julgamento. Retirando, se possível, o impacto exacerbado que rodeia um pico sazonal de violência e criminalidade, não será difícil considerar que, no nosso país, se entrou num patamar superior de insegurança e criminalidade caracterizado por uma maior violência, uma maior frequência de acontecimentos ilícitos e uma maior sofisticação e poder de fogo de muitos instrumentos utilizados ou encontrados nesses ilícitos, quer armas, quer explosivos. Forças de segurança e a justiça A fazer-lhe face encontram-se umas forças de segurança e uma justiça nitidamente desajustadas pela deficiente utilização dos meios de que dispõem, pela organização que as conduz, pelos métodos que utilizam, pela motivação que, na sua generalidade, deixam transparecer. Não obstante vultosos investimentos feitos no domínio da segurança, muitos dos quais no contexto da Nova Lei das Armas (Lei nº 5/2006), ainda não operacionalizados na sua totalidade, e das recentes alterações legislativas de que se destacam, para além desta Lei, as já aludidas Reformas dos Códigos Penal e do Processo Penal, as forças de segurança e a justiça não adquiriram ainda a capacidade de antecipar situações e de investigar, julgar e punir de forma célere e dissuasora as manifestações de violência que caracterizam este novo patamar de insegurança. Há que olhar esta tarefa com o mesmo grau de seriedade, urgência e necessidade de convergência de esforços, como o conseguido, para não se ir mais longe, com a organização da Expo 98 ou do Campeonato Europeu de 2004. O perigo de um novo patamar de insegurança mais elevado A luta contra a violência que conduz à insegurança é, por certo, muito mais vasta e polifacetada. Mas se não se consegue o mesmo grau de apuro – como o verificado naquelas duas ocasiões – na definição de objectivos, de preparação e articulação dos meios, de acompanhamento de execução das acções definidas, do controlo do território e, acima de tudo, da recolha e processamento de informação sobre o “outro lado”, dentro de pouco tempo estaremos defrontando um outro patamar de insegurança ainda mais elevado – descontando a sazonalidade e a intensidade do novo afloramento – com as repercussões negativas sobre o dia a dia dos cidadãos e da sua qualidade de vida. Não se pedem mais meios, pede-se melhor utilização dos meios existentes, em particular através de estruturas de orientação e coordenação encontradas na organização do Estado já implantada. Esta tarefa é muito exigente pois, pelo menos, os meios dispersos por 6 Ministérios – Administração Interna, Justiça, Defesa Nacional, Negócios Estrangeiros, Finanças e Economia – necessitam ser articulados com precisão e é fulcral assegurar a colaboração e o empenhamento dos outros dois Poderes, o Legislativo e o Judicial. Tem de se evitar situações como o termos assistido, a 3 de Setembro, à passagem do sexto aniversário da assinatura, por Portugal, do Protocolo contra a Fabricação e Comércio Ilícitos de armas de fogo, partes componentes e Munições no âmbito da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, documento de aplicação obrigatória, sem que tenha sido ainda ratificado pela Assembleia da República e, muito menos, transposto para a legislação nacional. Ou estarem já passados 5 anos desde que o Conselho Europeu aprovou em 23 de Junho de 2003 a Posição Comum sobre a intermediação no comércio de armas ligeiras sem que ela tenha sido adoptada no regime jurídico nacional. As razões profundas da insegurança Mas os ensinamentos deste verão relativos à luta contra a violência e a insegurança a que ela conduz não se cingem a reflexões sobre a actuação das forças de segurança ou a uma exigência de melhor organização dos sectores do Estado com elas relacionados, a partir dos meios já existentes, para lhes fazer face. Tal como o Observatório tem vindo a chamar a atenção nas suas duas Audições “Por uma sociedade segura e livre de armas” e “Dois anos depois: onde estão as armas?”, realizadas em 2005-2006 e em Fevereiro deste ano, a violência e a insegurança têm razões mais profundas e não podem nem devem ser combatidas no domínio estreito das forças de segurança, por maior latitude que lhes tenha sido conferida ao seu acompanhamento e enquadramento. A faceta social de todo este problema não pode ser retirada do campo da análise e da intervenção. Recorde-se, a propósito, que a 26 de Agosto morreu a 31ª mulher, este ano, às mãos do seu companheiro, num episódio miserável de violência doméstica, por se ter recusado a ceder a sua mensalidade do Rendimento Social de Inserção a que tinha direito. Este fenómeno, e tantos outros que poderíamos inventariar infindavelmente, mostram como a sociedade portuguesa está profundamente doente no seu tecido social e como a intervenção neste domínio é primordial para reduzir drasticamente as condições subjacentes à violência e à criminalidade. Não nos alongaremos nesta identificação, antes remetemos para as acções, análises e conclusões da especialidade das duas Audições atrás referenciadas e, acima de tudo, para o trabalho já executado pela Comissão Nacional Justiça e Paz e o seu Grupo de Trabalho Economia e Sociedade, divulgados em publicações da Comissão e no seu “site”. Como atender o mal-estar social Mas esta tarefa de atender o mal-estar social, e que tanto tem a ver com o reparar os erros do passado, em particular do passado recente, em áreas como a pobreza, a precariedade, a falta de condições mínimas de alojamento e de saúde que conduzem à exclusão, a dificuldades de vida insuperáveis, ao desespero e à revolta, se é, também, uma preocupação do Estado não deixa de ser, e acima de tudo, uma intervenção do todo da sociedade portuguesa. E, neste último domínio, haverá que sublinhar as transformações que se esperam, melhor, que se exigem, aos dois principais actores em presença. Aos “incluídos” um afastar da indiferença e um crescente de solidariedade, aos “excluídos” uma vontade forte de superar o dia de hoje e o aceitar, não só os direitos, como as obrigações de um viver pleno em sociedade. Por este breve enunciado vê-se que o que se exige à sociedade ultrapassa, em muito, em complexidade e amplitude, a tarefa das forças de segurança, no combate à violência e criminalidade. No entanto tal enunciado sublinha bem a necessidade, para a sociedade portuguesa, de a encarar com a mesma determinação e extremo cuidado que o exigido às forças de segurança em tal combate. Que duas excelentes causas a assumir no debate político do próximo ano!