Olhar o mundo a partir da Cruz

Bispo de Aveiro na celebração de Adoração da Cruz SEXTA-FEIRA SANTA CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR Catedral de Aveiro, 6 de Abril de 2007 “Olhar o mundo a partir da Cruz” 1. O Santo Padre Bento XVI convidou-nos, no início da Quaresma a “olhar para Aquele que trespassaram”. Nesta tarde de Sexta-Feira Santa tem redobrado sentido este apelo do Santo Padre. “Olhar Aquele que trespassaram” significa contemplar o “Servo Sofredor” de que nos falava Isaías e n’Ele descobrir Aquele que suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores (Is. 52,15). Neste olhar a Cruz, contemplativos do mistério santo da nossa redenção, não estamos sós. Connosco, de olhar fixo no Crucificado estão todos os que sofrem, caminhando com pés magoados nos trilhos da dor, da doença, das provações, dos desânimos ou do pecado. Se formos capazes de olhar também nós o mundo a partir da Cruz de Cristo veremos alargado o nosso campo de visão aos horizontes do mundo e de toda a existência humana. A Cruz manifesta-nos a plenitude do amor feito doação, entrega e oblação redentoras. Só este amor dá sentido à vida. Na Cruz a Humanidade deixa de ser vítima do pecado e da morte para iniciar a sua própria história de salvação, fascinada pelo valor incondicional e sagrado da vida e da libertação do mal, do pecado e da morte. Quando a Cruz pesa sobre alguém todos nós somos necessários e imprescindíveis para partilhar o seu peso, mesmo que a nossa ajuda pareça insignificante perante a imensidão da dor. Mesmo quando somos chamados a ajudar quem veio para a todos servir. Compreendemos, assim, a missão do Cireneu, da Verónica, das mulheres de Jerusalém, do discípulo João e sobretudo da Mãe de Jesus. A Mãe é sempre quem melhor compreende o mistério da dor e mais alivia o peso da Cruz. O caminho do Calvário não prescinde de cireneus que partilhem a dor e que reparem a humilhação pública e o desprezo da indiferença, que são em todos os tempos da história duas das mais angustiantes e demolidoras experiências humanas. 2. Chegado ao Calvário crucificaram Jesus. No auge da Crucifixão Jesus pronuncia algumas palavras que nos revelam, nesta hora da sua doação até à morte, a dimensão infinita do seu amor por nós e por todos. “Pai perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem”. O perdão torna-se, assim, uma verdadeira loucura de amor: um verdadeiro dom que só o Pai pode conceder, porque só Ele é rico de misericórdia. Jesus desculpou os indesculpáveis. Esta sua atitude dócil e tranquila incomodou ainda mais os seus inimigos. Nem assim respeitavam a sua dor e zombavam dele. Apenas um criminoso, ali crucificado a seu lado, implorou de Jesus que se lembrasse dele quando estivesse no seu reino (Lc. 23, 42). A reacção de Jesus foi acolhê-lo de imediato, sem cláusulas nem condições: “Hoje mesmo entrarás no Paraíso” (Lc. 23, 43). A Humanidade sempre recorreu a Deus. E sempre O procurou. Mesmo que seja por caminhos estranhos. Mesmo que seja na hora última e no momento final da vida. Uma outra impressionante palavra é a que Jesus diz a sua Mãe. Maria, Mãe de Jesus estava de pé junto da Cruz. Jesus sabia da sua dor e diz-lhe: “Mulher eis aí o teu Filho”. E olhando para João diz-lhe: “Filho eis aí a tua Mãe” (Jo. 19, 26). E a última palavra surpreendentemente serena e confiante dita no âmago da sua entrega é esta: “Pai nas tuas mãos entrego O meu Espírito”. É a manifestação de que tudo está cumprido. A Humanidade está salva. O regresso ao Pai é agora possível. Está restabelecido em Aliança nova e a eterna o diálogo entre Deus e o Universo, entre o Pai e a Humanidade. Renovar em permanência esta Aliança é a missão da Igreja. E a Igreja começa aqui. No auge do sofrimento e da doação em que o Coração do Crucificado trespassado pela lança do soldado jorra sangue e água. 3. Nesta tarde de Sexta-Feira Santa continuamos, dois mil anos depois, no limiar do terceiro milénio e nos alvores de tempos novos, de profunda mudança civilizacional, a olhar o Crucificado e a rezar-lhe, com convicção, com verdade e com insistência. Quando vires, Senhor Jesus, pobres na nossa cidade, gente sem pão nem abrigo, sem mesa e sem lar nas nossas terras… Faz nosso o Teu olhar. Para que as nossas portas se abram, as nossas mãos se estendam e o nosso pão se reparta, porque “fechar os olhos diante dos pobres torna-nos cegos diante de Vós, ó Jesus”. Quando encontrares, Senhor, multidões sem rumo e sem rosto, jovens sem horizontes e sem projectos, braços sem trabalho e sem emprego… Faz nossos os Teus passos. Para que as nossas ruas ganhem sentido, o nosso futuro recupere encanto e a terra que pisamos nos ofereça firmeza e confiança. Quando sentires, Senhor, lágrimas tristes e magoadas de crianças sem família, sem escola ou sem terra e de idosos, irmãos gémeos da solidão, do desânimo e do abandono… Faz nosso o Teu Coração. Para que a vida seja defendida e respeitada, como direito sagrado e valor eterno, cresça em liberdade e em paz e os mais velhos recebam em presença, afecto e respeito o que nos dão em sabedoria, em exemplo e em bênção. Quando souberes, Senhor, que há Calvários levantados em lugares de gente abandonada e inocente, cruzes de dor erguidas em holocaustos de sofrimento e corações rasgados em momentos de desprezo… Faz nossas as Tuas dores. Para que encontremos coragem humana, decisão crente e determinação evangélica para percorrer caminhos de Via-Sacra e partilhar as dores dos irmãos sem ninguém. “Só o serviço ao próximo é que abre os meus olhas para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele ma ama” (Bento XVI, Deus caritas est, 18). Quando, Senhor Jesus, os silêncios demorados, as ausências inexplicadas ou as atitudes agressivas e violentas ferirem o amor fiel dos esposos, a harmonia sagrada dos lares e a paz abençoada das famílias… Ensina-lhes de novo a parábola do filho pródigo e a coragem do perdão nascido da Cruz. Para que as famílias reencontrem o caminho do diálogo, da unidade, do amor reconhecido e ajudem solidariamente todos os lares em sofrimento e todos os corações magoados por causa do amor rompido, da vida rejeitada ou da violência escondida. Quando ouvires, Senhor, orações de súplica, de louvor e de gratidão e cânticos de alegria em comunidades vivas de fé, de entusiasmo e de comunhão… Fala-nos da Tua Igreja. Para que a vida e a missão da Igreja se centrem em Ti, Senhor Jesus, e na Eucaristia e cresçam a partir da palavra e dos sacramentos, da força do Evangelho e da beleza da Liturgia, da santidade de vida de todos os seus membros e do fascínio permanente da Caridade. Peço-vos, Senhor, que a Igreja de Aveiro não se canse de contemplar a Cruz e o Crucificado e seja sempre sacramento de salvação para o Mundo. 4. Alargando o horizonte do nosso olhar e a súplica da nossa oração para lá dos umbrais desta Catedral de Aveiro e pensando em todos quantos estão em comunhão connosco através da Rádio Renascença eu rezo com o Beato Charles de Foucauld, um profeta de um amor sem medida: “Senhor Jesus, não te bastou transformar cada pena e cada causa da cruz em fontes de alegria eterna; abraçando-as Tu mesmo, fizeste delas motivo de esperança. Tu aceitaste a pobreza, a fome, as lágrimas e as perseguições; de modo que, depois de ti, quem chora, quem é pobre, tem fome, é perseguido, torna-se semelhante a ti. Como és bom, ó Jesus, que até ao fim do mundo, transformaste os nossos males em alegrias e fontes de vida eterna! (M.S.E. 288) O teu Coração, que nos amou até aceitar a morte no Calvário, amou-nos como quando nos dizia: «Eis a tua Mãe» e derramará sobre nós, com a generosidade desse amor, as suas graças e bênçãos, para dar ajuda, amparo, fortaleza, coragem e salvação a cada um destes teus filhos tão amados que hoje te acolhem, e imploram saúde e bênção” (M.S.E.V. 89) 5. Junto da Cruz estava Maria, a Mãe de Jesus. Na Mãe de Jesus vemos os traços do rosto terno de todas as nossas mães, marcado por doloroso sentimento. Quero rezar nesta tarde de Sexta-feira Santa com redobrado fervor pelas nossas Mães e por todas as mães, bênção e berço da vida e da fé de cada um de nós. Rezo com as palavras do Santo Padre Bento XVI: “Santa Maria, Mãe de Deus, Vós destes ao mundo a luz verdadeira, Jesus, vosso Filho – Filho de Deus. Entregastes-Vos completamente ao chamamento de Deus e assim Vos tornastes fonte da bondade que brota d’Ele. Mostrai-nos Jesus. Guiai-nos para Ele. Ensinai-nos a conhecê-Lo e a amá-Lo” + António Francisco dos Santos, Bispo de Aveiro

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