O testamento do Papa para a humanidade

O cenário de conflito no Iraque, as guerras esquecidas de África e o terrorismo internacional marcaram o ano de 2003. Agência ECCLESIA – A mensagem para o Dia Mundial da Paz está enquadrada na acção de João Paulo II ao longo de 2003? José Manuel Pureza – Eu diria mesmo que é o seu ponto culminante, porque é um texto muito forte, muito claro, centrado numa espécie de pedagogia que contrasta de maneira clara com alguns dos traços dominantes na situação actual no mundo – e o Papa não se esconde em subterfúgios, assume esta situação. Há “recados” que são distribuídos a todo o mundo, mas sobretudo aos grandes poderes dominantes, e isso arranca de uma convicção que o Papa exprime logo nas primeiras linhas: a solução armada não é uma fatalidade e a paz, mantendo-se como possibilidade, é um dever. O registo ético é o ponto de partida das suas considerações. AE – O tratamento que a mensagem faz do terrorismo, exigindo “uma análise corajosa e lúcida das motivações subja-centes aos ataques terroristas” serve de exemplo? JMP – O ponto 8 da mensagem deixa um apelo muito claro à necessidade de não esgotar a resposta ao terrorismo “em operações repressivas e punitivas”, mas sim em fazer um esforço lúcido e humilde para compreender de alguma maneira o que subjaz ao desespero e à loucura de actos terroristas. Sem se eximir a correr o risco de ser classificado de cúmplice objectivo, de apaziguador, o Papa vem dizer que é preciso compreender o que está por trás das questões e fala claramente das situações de injustiça – seja de carácter territorial, histórico ou económico – latentes em culturas que empurram, por assim dizer, para o terrorismo internacional. AE – A opção pela compreensão do fenómeno, em vez da condenação pura e simples, traz consequências práticas de que género? JMP – As consequências passam, sobretudo, pelo que é canónico pensar ou não: estamos fartos de ser “bombardeados” com teses de que face a estes fenómenos não há que produzir opinião – são actos de carácter violento e devem ser extirpados pela força e sem mais, o que é o pensamento dominante em alguns editoriais e da sociedade em geral. O Papa não tem medo de colocar-se do outro lado e dizer “não”. Esta questão obriga-nos a pensar e, portanto, temos de estar atentos às condições em que se formulam discursos, práticas, visões, aspirações de valoração terrorista. O terrorismo em si é, evidentemente, condenável, mas seria pouco sustentável, em termos de durabilidade, uma estratégia que não encarasse o terrorismo do ponto de vista das suas origens e essa é a grande mensagem – uma espécie de caderno de encargos bastante grande – que o Papa deixa à humanidade. AE – Faz sentido pedir, como o Papa, “instrumentos jurídicos” que atendam a estas novas realidades? JMP – Esse é um recado fortíssimo, há uma mensagem explícita sobre o crescendo das práticas de terrorismo que põem em causa os pilares de um direito e de uma ordem pensada exclusivamente para os Estados, porque estamos perante actores que superam o âmbito estatal e que estão, por isso, muito mais disseminados e são mais difíceis de identificar. Daí que João Paulo II peça novos mecanismos para enquadrar a questão. Chamo a atenção para o facto dele estar a assumir as acções terroristas como exemplos de novos fenómenos que não se esgotam neles próprios: as multinacionais e as ONG’s, por exemplo, são fenómenos não-estatais que hoje têm uma proeminência notável no sistema internacional. AE – Há necessidade, então, de um outro “ordenamento internacional”? JMP – Essa questão tem uma tripla dimensão, presente no texto de João Paulo II, a que é preciso atender. Em primeiro lugar há uma passagem muito explícita sobre a necessidade de mudar o direito “da guerra e da paz” para direito da paz. Portanto, esse é um sublinhado que exprime claramente a visão que o Papa tem desta questão. O segundo aspecto está na questão do cumprimento do direito internacional, que está para além de se saber se o direito internacional é ou não eficaz. O que o texto vinca é a necessidade de, nas relações internacionais e nas relações entre os Estados, se cumprirem as regras que secularmente têm vindo a ser definidas, dentre as quais ocupa lugar central a que afirma “pacta sunt servanda”, os acordos são para serem cumpridos, a partir do qual o Papa anuncia uma série de princípios centrais para uma convivência regulada no plano internacional. O terceiro ponto tem a ver com as instituições e a mensagem não foge a esta questão. A ONU está no coração desta regulação e há uma expressão de vontade, presente desde João XXIII, de que as Nações Unidas ocupem o lugar central. Nesse sentido, o Papa encontrou uma expressão muito feliz ao falar da ONU como representante da família humana lutando contra qualquer tentativa de votar ao desprezo esta organização, como tem vindo a acontecer por parte dos poderes maiores do sistema contemporâneo. Não há, por outro lado, uma proposta de reforma das Nações Unidas que a ponha ao serviço exclusivo das grandes potências, há uma vontade de a reformar para que seja mais eficaz enquanto instância reguladora, e mais adequada para a função de representação do género humano como um todo. AE – Estamos na presença de uma mensagem para a humanidade no seu todo e não apenas para os católicos? JMP – O Papa assume que para os católicos a educação da humanidade para a paz faz parte da essência da nossa religião. Diz mesmo que “a todos os amantes da paz impõe-se uma obrigação, que é educar as novas gerações para estes ideais, a fim de preparar uma era melhor para a humanidade inteira”. Assim sendo, a partir de agora não há margem para dúvidas e acredito que muitos vão pensar que o Papa perdeu o juízo completamente, porque o que está a dizer é que esta opção não é uma área acessória, mas tem de estar no coração da nossa religião. Se se quiser entender isto como um testamento, é um testamento largamente interpelador para o futuro.

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