«O ´socius´ e o próximo»

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Foi em 1992 que o Papa João Paulo II instituiu o Dia Mundial do Doente para ser celebrado a 11 de Fevereiro, memória litúrgica de Nossa Senhora de Lurdes, padroeira dos enfermos. Redigida a 10 de Janeiro, o Papa Francisco publicou uma mensagem para o XXXI Dia Mundial do Doente de 2023, dedicada ao tema «“Trata bem dele! (Lc 10, 35): A compaixão como exercício sinodal de cura», associando assim a compaixão e o cuidado do doente ao caminho sinodal que a Igreja é convidada a percorrer.

A mensagem é pequena. Assim acontece em situações desta natureza. Como Francisco já nos habituou, numa linguagem simples vai desenvolvendo o conteúdo da mensagem, profundamente rica, ao longo dos dez parágrafos em que ela se configura, tendo como pano de fundo a encíclica “Fratelli tutti de Outubro de 2022. Sem deixar de salientar a primeira frase da mensagem «A doença faz parte da nossa experiência humana» que, naturalmente, vai estando presente em toda a mensagem, atrevo-me a sintetizar.

  1. Aprender a caminhar juntos através da experiência de fragilidade e de doença;
  2. A fragilidade como elemento integrante do caminhar;
  3. A parábola do Bom Samaritano;
  4. A atrocidade da condição de solidão e de abandono;
  5. Nunca nos encontramos preparados para a doença – o medo da fragilidade;
  6. O Dia Mundial do Doente e a prática da fraternidade;
  7. A lição dos anos de pandemia;
  8. O cuidar: “Trata bem dele” – “Vai e faz tu também o mesmo”;
  9. O santuário de Lurdes como lugar profético;
  10. Intercessão de Maria, Saúde dos Enfermos, e envio de bênção apostólica.

Cada um destes pontos mereceria uma reflexão particular. Aliás, muitas reflexões. Impossível ir por aí. Centro-me nas palavras utilizadas pelo Papa Francisco para expressar os objectivos do Dia Mundial do Doente. Escreve Francisco: «o Dia Mundial do Doente não convida apenas à oração e à proximidade com os que sofrem, mas visa ao mesmo tempo sensibilizar o povo de Deus, as instituições de saúde e a sociedade civil para uma nova forma de avançar juntos

Não só… mas também… Não só o que parece mais evidente, a oração e a proximidade com os que sofrem, mas também o menos evidente e esquecido, «sensibilizar» «para uma nova forma de avançar juntos». Sensibilizar para «avançar juntos» não só a Igreja, Povo de Deus, nem só «as instituições de saúde», mas também a «sociedade civil». Por isso a mensagem papal lembra que a parábola do Bom Samaritano sugere como «a prática da fraternidade, que começou por um encontro de indivíduo com indivíduo, se pode alargar para um tratamento organizado», como organizado se encontra na parábola o círculo compreendido pela estalagem, o estalajadeiro, o dinheiro e a promessa de mútua informação futura. Não será por acaso que a mensagem termine confiando a Maria, Saúde dos Enfermos, os doentes e todos «vós que cuidais deles em família, com o trabalho, a investigação e o voluntariado; e vós que vos esforçais por tecer laços pessoais, eclesiais e civis de fraternidade.»

«Avançar juntos», verbo esquecido tantas vezes no dia-a-dia, mas que transparece, e com toda a força, nos momentos mais trágicos das vidas humanas, como está a acontecer com a solidariedade que se concentra na Turquia e Síria em que a comunidade internacional parece ter acordado de um sono letárgico e se transformou numa «sociedade civil» da «prática da fraternidade».

«Avançar juntos» na «sociedade civil» na «prática da fraternidade». Não é fácil conjugar estas três realidades. Na sociedade civil, como o sacerdote e o levita da parábola, somos funcionários, não irmãos, e avançamos “juntos”, funcionalmente, absorvidos pelas tarefas inerentes às funções sociais, indisponíveis para sermos «próximo», essa maneira de compaixão, do encontro de pessoa a pessoa sem mediação social.

Estranhamos que, na parábola, Jesus responda a uma pergunta com outra pergunta: «Qual dos três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?» É o desafio para descoberta pessoal.

Estranhamos também que a narrativa da parábola se transforme em norma de acção. Mais: transforma-se numa ordem: «vai e faz tu também o mesmo». O «próximo» já não é um «objecto social» entre outros «objectos sociais» de um qualquer grupo das ciências humanas. Por isso, num artigo a que deu o título de «O ‘socius´ e o próximo», já Paul Ricoeur (1913-2005) o fazia notar em 1955, «não existe sociologia do próximo». Importará superar a tendência fácil de pensarmos em termos de oposições, de dilemas, porque o «´socius` e o próximo» poderão ser duas faces da caridade, radicado no Amor Infinito de Deus, que é «proximidade, compaixão e ternura». Por isso, se não há uma «sociologia do próximo», embora haja uma sociologia das organizações de caridade, pode e deve haver uma «teologia do próximo».

Como lembra Francisco, «Todos somos frágeis e vulneráveis; todos precisamos daquela atenção compassiva que sabe deter-se, aproximar-se, cuidar e levantar. Assim, a condição dos enfermos é um apelo que interrompe a indiferença e abranda o passo de quem avança como se não tivesse irmãs e irmãos.» A temática do «próximo» é, principalmente, um desafio e apelo às consciências.

Creio que é para aí que aponta a mensagem de Francisco quando realça, em termos sinodais, a necessidade de «avançar juntos» na «sociedade civil» na «prática da fraternidade».

António Salvado Morgado
Guarda, 10 de Fevereiro de 2023

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