O sobrenatural do Cristianismo

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real

O escritor e filósofo católico francês, Jean Guitton, deixou-nos o livro «O Meu Testamento Filosófico». É uma espécie de síntese do pensamento multifacetado de um filósofo que era lido e escutado dentro da Igreja Católica, e a prova mais clara disso mesmo é que foi convocado para participar no Concílio Vaticano II. A um determinado momento do seu testamento filosófico, num suposto diálogo com outro filósofo francês, Bergson, Jean Guitton afirma:

– «Não deu conta, Bergson, como o Cristianismo, uma vez tirado o sobrenatural real, se torna insípido? O que fica? Um moralismo respeitável e bastante constrangedor; um humanitarismo que tem sempre o ar de procurar desculpar Deus por não evitar as misérias humanas; um «solidarismo» simpático; uma esperança vaga na melhoria das dificuldades do século. Tudo isto não é sólido, tudo isto não é profundo. Há necessidade de incomodar o próprio Deus para ensinar estas virtuosas banalidades? Tire o sobrenatural, o cristianismo é vazio».

– Bergson respondeu: «Estou de acordo consigo, Guitton. Quando o clero se torna racionalista, esvazia as igrejas e faz o sucesso das seitas».

– Guitton redarguiu: «Se se perde a fé, resta pôr luto por uma crença defunta. Se Cristo não ressuscitou, deixemos de choramingar nas sacristias aviltando o mistério.»

Jean Guitton lembra aos cristãos de todos os tempos a novidade e a originalidade do Cristianismo, que o distingue de todas as outras religiões: tem uma origem sobrenatural e tem como fim estabelecer comunhão com o sobrenatural. O Cristianismo foi fundado pelo próprio Filho de Deus, Jesus Cristo. Todas as outras religiões foram fundadas por homens, de grande densidade humana e espiritual, é verdade, mas homens. O Cristianismo tem na sua base e na sua fonte o sobrenatural e tudo o que propõe e ensina é para que o homem tome consciência do seu destino sobrenatural e se deixe enriquecer e fascinar pela beleza do sobrenatural, começando por realizar a sua humanidade. Eis o encanto e a grandeza do Cristianismo: a vida de Deus, com toda a sua marca de eternidade e de plenitude, já é comunicada aos crentes. Jesus Cristo teve sempre no centro da sua vida o «Pai», para quem sempre quis viver. O principal interesse da sua existência foi sempre viver em união e comunhão com o Pai, Amor fontal e sustentador de todas as coisas e de todos, convidando outros a entrarem nesta mesma comunhão sobrenatural, razão última da vida do homem. Este é o conteúdo fundamental do Cristianismo.

Ainda tenho na memória os resultados de uma sondagem que encontrei numa revista católica, aqui há uns anos, sondagem que teve como fim averiguar junto dos cristãos se acreditavam mesmo na divindade e na ressurreição de Jesus Cristo. Os resultados foram espantosos: a maioria dos entrevistados não acreditava nas duas coisas. O que nos leva a perguntar: mas, afinal, porque é que são cristãos? Terão a mínima noção do que andam a dizer e a viver? Para um bom número, Jesus foi um homem místico «que teve uma experiência muito forte do divino», experiência que o tornou um mestre admirável de moral e de espiritualidade, da elevação e da perfeição humanas, mas não passava de um «homem». Deus é Deus, o homem é o homem. Quanto à ressurreição, tinham muitas dúvidas e dificuldades em afirmá-la. Poderá ser mais um produto da forja da história fictícia da humanidade ou bela invenção dos amigos íntimos de Jesus. Lembramos S. Paulo: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé». As verdades basilares do Cristianismo – a divindade e a ressurreição de Jesus – não são aceites por muitos cristãos, ou pelos menos suscitam muitas dúvidas. Mas não há Cristianismo sem o sobrenatural. Este menino de quem celebramos o nascimento não foi apenas um profeta de uma nova humanidade ou um Che Guevara da Palestina que combateu poderes opressores e injustiças no seu tempo, amigo dos pobres e dos excluídos, ou um simples mestre de afetos sublimes e de regras morais para se ser feliz, imagens românticas a que tantos gostam de o reduzir, Ele é o Filho de Deus que se fez homem e que ofereceu a vida para recriar a vida do mundo, ressuscitando ao terceiro dia, sendo fonte de vida nova e eterna para todos os que o querem amar e seguir. Não captar esta verdade e esta novidade em Jesus Cristo é viver um Cristianismo vazio e sem sentido.

Celebramos hoje o dia maior da fé cristã, o dia de Páscoa. Que podemos dizer da Ressurreição? Vivemos num tempo em que a técnica e a ciência, e sua doença que é o cientismo, estão no seu esplendor, e em que as grandes perguntas da vida foram metidas na gaveta do dia seguinte. Pergunto-me como é que os homens e mulheres de hoje acolherão o acontecimento da ressurreição de Jesus. Jesus ressuscitou, venceu a morte, voltou à vida, entrou noutro estádio de existência, isso é inquestionável. Teremos poucas dúvidas de que os discípulos de Jesus Cristo experimentam algo de completamente novo depois da sua morte. Contudo, a ressurreição de Jesus é um acontecimento transcendente, mas é “captável” pela fé. O teólogo Joseph Moingt alerta desde logo que “não é mediante uma evidência puramente sensível, visual, táctil que nasce a sua fé em Jesus ressuscitado”. E a ressurreição “também não é um cadáver que anda pelo mundo e possui o dom da ubiquidade! Paulo falará de um «corpo espiritual». Por mim, prefiro dizer: os apóstolos tiveram inegavelmente a experiência de que ele estava vivo, lhes falava e podiam falar com ele. Jesus faz-se reconhecer pelos seus discípulos e torna conhecida a sua ressurreição dizendo-se a eles e dentro deles.” “Estamos no mistério de uma outra realidade, de uma outra dimensão, que não se situa fora do nosso tempo ou do nosso corpo, mas que também não se acha ao mesmo nível que o nosso tempo ou o nosso corpo. A ressurreição de Jesus é, de algum modo, a eternidade a entrar no tempo, ou o tempo a ascender à dimensão da eternidade.”

O Papa Bento XVI escreve assim no seu livro Jesus de Nazaré, parte II: “Essencial é o dado de que, com a ressurreição de Jesus, não foi revitalizado um indivíduo qualquer morto num determinado momento, mas se verificou um salto ontológico que toca o ser enquanto tal, foi inaugurada uma dimensão que nos interessa a todos e que criou, para todos nós, um novo âmbito da vida: o estar com Deus. A ressurreição descerra o espaço novo que abre a história para além de si mesma e cria o definitivo. É preciso não esquecer que ela não está simplesmente fora ou acima da história. A ressurreição de Jesus ultrapassa a história, mas deixou o seu rasto na história.”

Não esqueçamos que tudo já começou no Batismo. O Padre Vasco Pinto de Magalhães, em entrevista ao Padre Manuel Vilas Boas, no Podcast Vidas com História, diz assim: “Experimentamos a ressurreição em nós, desde já. A teologia diz-nos que começamos a ressuscitar no Batismo. Ressuscitamos cada vez que vencemos o egoísmo e trocamos o egoísmo pelo amor. O amor ressuscita-nos, dá-nos uma vida nova, ressurreição não é depois da morte, é depois do egoísmo. O egoísmo é que nos mata. A morte não mata. O egoísmo mata. Mata. Dá cabo de nós, dá cabo das relações, dá cabo do futuro, tira-nos a alegria. O egoísmo mata. Por isso a morte também não mata. A morte é transformação. Começamos a morrer no dia em que nascemos. E tudo faz sentido que não seja uma morte para nada. A morte é um processo de transformação. A ressurreição que Jesus veio anunciar é que vale a pena amar e morrer para alguma causa, porque isso é encontrar uma nova vida.”

Boa Páscoa.

Partilhar:
Scroll to Top