O símbolo de Nuno Álvares

Guilherme d’Oliveira Martins diz que é «tempo de olhar a figura, em si, para além de equívocos e de aproveitamentos» em volta da canonização À primeira vista há quem manifeste perplexidade. Porquê falar de Nuno Álvares Pereira em pleno século XXI, e ainda por cima como referência religiosa? Porquê homenageá-lo como referência cristã? A dúvida tem, no entanto, muito menos a ver com a personagem histórica e com o seu significado, do que com a sua escolha em diversos momentos (cuja recordação está viva) em nome de uma relação equívoca entre o Estado e a Igreja ou de uma relação na qual havia quem desejasse que as fronteiras não fossem nítidas – como em tempos da pré-história da liberdade religiosa, distantes de uma laicidade serena e criadora. É, pois, tempo de olhar a figura, em si, para além de equívocos e de aproveitamentos. Não há, assim, razão para associá-la a um nacionalismo desajustado dos sinais dos tempos de hoje, nem para a ligar a um patriotismo fechado e retrógrado, que Nuno Álvares Pereira nunca assumiu. É que aquilo que muitas vezes vem à memória não é a memória autêntica do herói e do santo, mas são as referências mais recentes de um tempo em que o Condestável foi usado como bandeira de causas de isolamento e de auto-comprazimento nacional… Basta a leitura atenta da biografia de Nuno Álvares Pereira para se perceber que a figura é das mais ricas da história portuguesa. Leia-se Fernão Lopes, o cronista anónimo do Condestabre, Camões, Garrett, Oliveira Martins, Jaime Cortesão e Fernando Pessoa – aí encontramos o gentil homem de horizontes abertos e sentido de futuro, o homem das alvoradas, Nuno Madruga, como ficou conhecido. Numa atitude de grande coragem moral e cívica, defendeu a causa do Mestre de Aviz, contra a sua própria família, em nome de uma legitimidade nova. Foi um homem que viu adiante do seu tempo, moderno na nossa acepção. Foi um dos protagonistas decisivos no acelerar do fim do tempo medievo em Portugal. Leitor e entusiasta dos textos do ciclo bretão, admirador de Camelot, a corte do rei Artur, e seguidor do mais puro dos cavaleiros dessa Távola Redonda, Galaaz, D. Nuno tornou-se símbolo da liberdade e independência de espírito. Na crise de 1383-85 esteve ao lado da causa que faria vencimento nas Cortes Gerais de Coimbra. E, saindo do movimento que implantaria a dinastia joanina, como o mais influente da nova nobreza, logo definiu para si um estatuto de pobreza e de total entrega religiosa, tornando-se fundador do Convento do Carmo, Frei Nuno de Santa Maria, e desejando ser um entre os muitos pobres de Lisboa, empenhado na sua defesa. O herói de ontem, no domínio militar (onde foi o mais brilhante executor dos mais avançados métodos de acção do momento), tornar-se-ia herói de outro tipo no final da vida, ocupado na causa de ajudar os mais pobres e desprotegidos. Na História portuguesa, tão cheia de referências históricas, Nuno Álvares Pereira é um símbolo singular. Representa a vontade de ser autónomo, independente e emancipado. E quando seguiu um caminho diferente dos seus pares da velha nobreza fê-lo com sentido prático e profético, a olhar para diante. Significa a exigência de ser justo e compreensivo dos outros, numa marca em que a santidade é também cidadania e liga-se ao humanismo universalista, que Jaime Cortesão encontrou como característica perene da presença dos portugueses no mundo. Afirma a perspectiva moderna da legitimidade dos povos com o culto dos valores de uma espiritualidade aberta e desempoeirada, que a leitura da sua biografia bem demonstra, ao invés de certos anacronismos cultivados serodiamente. Cortesão diz-nos que “a Nação só atingiu a maioridade política e a plena expressão nacional com a ‘revolução democrática’ do século XIV, conforme lhe chamou Oliveira Martins, e o triunfo da encorporação das classes populares na vida política”. Ora, esta ordem, para ser implantada, precisou de legistas e de militares, de aristocratas e de burgueses, de leigos e religiosos, do Estado e dos concelhos – e Nuno Álvares Pereira esteve no coração dessa passagem e dessa construção. E o certo é que teve a sabedoria para ser, a um tempo, um dos decisivos criadores da nova sociedade, mantendo intacto o território que D. Dinis fizera definir em Alcanizes, concedendo às diversas ordens do reino, como era timbre da melhor legitimidade desse tempo, as condições para que a Nação continuasse independente, em nome da liberdade e da emancipação, sendo ainda um mestre espiritual a ensinar que o amor e a justiça têm de se viver em estreita ligação. Compreende-se, pois, que, pouco depois da beatificação, na homenagem que a Primeira República fez aos heróis desconhecidos da guerra mundial, o Presidente António José de Almeida tenha qualificado Nuno Álvares como “companheiro de Portugal”. Guilherme d’Oliveira Martins

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Agência ECCLESIA

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