Nunca como hoje houve entre os humanos tanta mobilidade: povos da África, da Ásia e do leste da Europa partem em demanda de melhores condições de vida; o turismo deixou de ser uma prática de privilegiados e universalizou-se; diferentemente de como era há 50 anos, com enorme facilidade muda-se de nação, de cidade, de aldeia, de emprego, de forma de vida. Neste contexto vital, o exercício religioso da peregrinação poderia aparecer como característico dos nossos dias. Os sociólogos registam sinais de expansão desse fenómeno religioso, constatando que, em grupos mais ou menos pequenos, são cada vez mais os que se põem a caminho e desaparecem por uns dias. E tratam o fenómeno com muito cuidado, dizendo que cabe lá muita coisa, que se pode misturar a peregrinação com o turismo e que surgiu a categoria intermédia do turismo religioso. Dizem que há nisso uma radicalidade, uma espécie de «desporto» mais ou menos religioso: as pessoas são atraídas para uma experiência extra-ordinária, que provoque um choque de adrenalina. Mas acrescentam que o fenómeno surpreende um olhar mais racional. Seja como for, o peregrino deve saber dar sentido à sua peregrinação, independentemente do que os sociólogos pensam do fenómeno em geral. Certo é que ela não é de agora: desde os tempos bíblicos – com Abraão, Jacob, o Êxodo dos hebreus para a terra prometida, o regresso do Exílio, as peregrinações de Jesus a Jerusalém – foi sendo e está carregada de sentido humano e espiritual por uma longa tradição. É um símbolo da vida, uma imagem que interpreta e compreende a fundo a nossa vida. Quem faz o exercício sagrado da peregrinação proclama íntima e socialmente a sua condição de caminhante sobre a terra, na dureza e nas alegrias da vida; dá testemunho de sentir-se atraído por “um novo céu e uma nova terra”; declara-se insatisfeito com o já realizado e desejoso de subir mais na vida do espírito. A peregrinação amplia e enriquece com uma experiência de Deus mais intensa, festiva e emotiva, os limites da nossa habitual visão do mundo. Pessoas de várias culturas, etnias, línguas, idades e procedências, marcadas por múltiplas situações humanas de sofrimento e de esperança, convergem para um ponto comum, ao encontro do outro, para partilhar pedaços de vida e procurar na peregrinação algo que está para além do ordinário e finito da existência humana. Assim antecipam a humanidade ideal e a fraternidade universal, reunida no Espírito do único Deus. A peregrinação exprime simbolicamente a grandiosa realidade do povo de Deus, que se mobiliza na procura do Deus vivo. Num mundo informatizado, sob o signo do indiferentismo, do relativismo e do imprevisível, vem proporcionar a rocha firme para a construção sólida da interioridade, que confere harmonia e peso a todo o nosso ser. Em linha com o trecho do evangelho de Mt 7,24-29, o Cardeal Ratzinger, na missa de 18.4.05, imediatamente antes de os cardeais entrarem para o conclave, sustentava: Continuamente “surgem novas seitas, tornando verdades os truques dos humanos… É fundamental ter uma fé esclarecida, baseada no credo da Igreja, em vez de andar ao sabor de cada ventania ou de cada sopro. Quantos ventos de doutrina conhecemos ao longo dos últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento… A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi agitada por estas ondas – atirada de um lado para o outro: do marxismo ao liberalismo, até ao libertinismo, do colectivismo ao individualismo radical, do ateísmo a um vago misticismo religioso, do agnosticismo ao sincretismo”. E concluía: “a única coisa que permanece para a eternidade é tudo aquilo que de nobre semeamos na alma humana – o amor, o conhecimento, o gesto capaz de tocar o coração, a palavra que abre a alma à alegria do Senhor”. Neste alerta, a peregrinação eleva-se a desmentido do desmazelo relativamente aos valores imutáveis e inegociáveis, apontando especialmente para a total gratuidade do relacionamento com Deus, não negociável. Dando lastro à existência, a peregrinação é um tempo privilegiado do conhecimento próprio e dos nossos semelhantes; é oportunidade para a descoberta, o discernimento, a iluminação e a purificação interiores, sob o acolhimento e com o aval da Igreja. A peregrinação não deveria ser ocasião para a catequese moralizante, mas para a catequese do coração, sob o signo da contemplação, do gozo e da paz de espírito; não é propriamente uma solução para os problemas da vida, mas uma iniciação libertadora ao misterioso itinerário da alma para Deus. Assim, a peregrinação vem colmatar uma necessidade profunda da alma. Ela está impregnada de uma simbologia particular no cristianismo, pelo facto de a vida de Jesus emergir qual caminhada que, no monte Calvário, culmina no monte do perdão e da salvação universais, em que a morte é seguida e superada pela ressurreição. O peregrino cristão assume na sua vida a peculiar espiritualidade do evangelho de Lucas, que apresenta a mensagem e a obra de salvação de Jesus no âmbito de uma longa peregrinação do Mestre desde a Galileia até Jerusalém, anunciando a boa nova e realizando prodígios ao longo da caminhada e sugerindo que a salvação teve o seu ponto culminante e plenitude na morte e ressurreição em Jerusalém. Lucas vai cadenciando insistentemente cada episódio do ministério de Jesus com a frase “ia a caminho de Jerusalém”, como se essas reiteradas indicações ao leitor fossem marcos miliários que marcam o sentido e o alcance espiritual dessa longa caminhada. Para Lucas, Jerusalém, a cidade mais elevada de Israel e lugar tradicional obrigatório de peregrinação, simboliza a realização das mais altas aspirações do cristão. Por isso, também está cheia de simbolismo a caminhada dos discípulos de Emaús que Lucas descreve três dias depois da morte de Jesus. Ele dá o máximo relevo à transformação operada “pelo caminho” nos dois actores. É no caminho de Jerusalém para Emaús que encontram Jesus vivo e o reconhecem como tal, ficando a saber que, desde a sua morte, o verdadeiro Jesus não se pode reconhecer com os olhos da carne mas só com os da fé, “no partir do pão” eucarístico e na partilha do pão do amor fraterno, que pode consistir no “conversar sobre tudo o que tinha acontecido” (Lc 24,13-15). Aquela caminhada é na mente do narrador Lucas o suporte simbólico de outra caminhada, através das Escrituras, peregrinação interior necessária para que a fé iluminada com a presença misteriosa de Jesus abra o coração e a inteligência dos discípulos. A leitura das Sagradas Escrituras com a fé projecta luz no caminho, às vezes tenebroso, da vida. De facto, os dois de Emaús, ao regressarem a Jerusalém no fim da peregrinação estavam completamente transformados: de tristes passaram a ser felizes. Quando um cristão sobe como peregrino a um santuário deseja voltar de lá mais identificado com o mistério representado simbolicamente por esse lugar sagrado, onde a cruz, que lá nunca falta, está a apontar para a vida sem fim. Nos eventuais videntes que lá tiveram uma visão fundadora, Deus aparece e fala a cada peregrino, se o souber ver e ouvir. Até o sacrifício, que alguns fazem nesse peregrinar, se entende como algo que gratuitamente querem dar de si para chegar ao fim que se propõem e quase para consagrar a vida inteira a Deus. O símbolo da peregrinação também exprime a inelutável realidade da transitoriedade da vida e da relatividade das coisas com que o ser humano lida diariamente. Mais do que puro exercício de ascese que exige esforço, mortificação e penitência, a peregrinação ‘diz’ que o seguidor de Jesus Cristo não pode ‘prender-se’ a coisas passageiras e olhar para trás, porque o ‘atrás’ para ele já passou. Se olha para trás, para a tradição, é para iluminar o presente. De resto, a peregrinação é para o cristão a afirmação de que a vida humana é sempre diferente e não pode ser vivida tal e qual como no passado. A sua meta está sempre mais adiante, na realização sempre mais perfeita do itinerário traçado e vivido por aquele que se apresentou como “o Caminho” que na Verdade leva à Vida (Jo 14,6). Precisamente nesta tensão entre o ‘já andado’ e o ‘ainda não alcançado’ é que se situa o fascínio por não se contentar com o ‘já feito’ e por tender para o ‘mais adiante’ que está ao alcance do viandante. Dirigir-se em peregrinação a um lugar considerado como sagrado é, simbolicamente, demandar a terra prometida, a Jerusalém celeste, onde “não haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem fadigas, porque o mundo velho já passou” (Ap 21,1.4). Além disso, o símbolo da peregrinação subentende outra intenção: a de não dar importância ao supérfluo e de concentrar-se no essencial. Quem faz o exercício de peregrinação entende que a vida é breve e não há tempo para fazer tudo, muito menos o mal, mas só o bom e o melhor. Nem há autêntica peregrinação se o peregrinar físico não realiza uma peregrinação ao interior do meu ser e da minha vida, para perceber que sentido e que orientação lhe devo dar. Uma peregrinação é um retiro espiritual, um subir ao monte de Deus, como Moisés, Elias e Jesus, para aí contemplar a glória de Deus sob ‘a nuvem do não-saber’ mas do crer, para de Deus receber “as tábuas com as leis e os mandamentos” para a minha vida. Aí o peregrino fica a saber que hoje a lei para si é a “lei do Espírito” (Rm 8,2) e o mandamento novo do amor: “o que ama o próximo cumpriu a lei” (Rm 13,8). Quando se vê assim que a peregrinação tem sentido e dá sentido à vida, também fazem sentido as razões tradicionais da peregrinação: subir ao monte para rezar, como diz de Jesus o episódio da sua transfiguração (Lc 9,28-36), pedir perdão e adquirir a indulgência dos pecados e a bondade de Deus, haurir do tesouro da graça divina, que é tesouro espiritual da Igreja de Jesus Cristo, cuja essência reside no princípio da ‘comunhão dos santos’; é na abundância deste tesouro espiritual que a Igreja se apoia para conceder a indulgência do pecado, distribuindo aos fiéis as riquezas nele contidas, tendo em vista a remissão das culpas (não se trata de pagar dívidas nem de comprar o perdão, mas antes de receber de graça a salvação já adquirida de graça). Esta atitude de rezar e pedir perdão a Deus visa a conversão e mudança de vida em direcção à perfeição. Nós, portugueses, temos como padroeira aquela que é modelo perfeito de peregrina, Maria de Nazaré que foi a Belém dar à luz e dar ao mundo o Filho de Deus. Maria, para além de ter peregrinado fisicamente até à montanha e caminhado com Jesus no seu interior para levar a promessa da Vida ao seu semelhante, à parenta Isabel (Lc 1,39-56), foi peregrina na fé, na medida em que foi aprofundando o mistério de Jesus ao longo da sua vida. Maria é estrela e guia segura para cada peregrino caminhar em grupo em direcção a seu Filho.