Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Penso ter percebido um pouco melhor a razão de tantas pessoas se queixarem da falta de tempo: o tempo que lhes falta não existe.
«Chegar a Deus ou à Felicidade pelos meus atalhos, mais depressa e sem ter de dar contas a ninguém foi, e é a primeira tentação em que facilmente se cai.» (Vasco Pinto de Magalhães, s.j., “Só avança quem descansa, Tenacitas, 6ªEd., 2017)
Quando os cientistas quiseram medir, pela primeira vez na história, uma velocidade precisavam de duas coisas, o espaço percorrido e o tempo que demorou a percorrer. Mas como contabilizar esse tempo? Foi graças à ciência moderna que surgiu o tempo cronológico, que vem da palavra grega chronos, um tempo sequencial, medido, logo, fomos nós que inventámos o dia, a hora, o segundo, e usamos este tempo para sincronizar os nossos ritmos. Na prática, é uma invenção nossa. Não existe.
Porém, ver as horas e estar sistematicamente a orientar a nossa vida pelo relógio, significa sermos controlados por algo que não existe! Talvez por esse motivo vivamos o drama da falta de tempo. Estamos fora do tempo e corremos atrás do que não existe, ou à frente do tempo que não existe, fugindo dele. Vivemos a correr para não perder o comboio do tempo cronológico por nós criado. Como lidar com este drama?
Reencontrar outro tempo.
Alan Lightman é um físico divulgador de ciência que realiza trabalho humanitário em zonas remotas onde não existem muitos dos confortos da vida tecnológica moderna. Há alguns anos encontrava-se numa pequena aldeia do Camboja, Tramung Chrum, onde não há rede de electricidade ou água.
Os bolbos de luz são alimentados por baterias de carros, a comida é cozinhada em fogueiras, e os habitantes vivem do arroz que cultivam, melancias e pepinos. A vida na aldeia é calma, começando com o nascer do sol e terminando pouco depois deste se pôr. Como não produzem todos os mantimentos que precisam, as mulheres percorrem 16km de bicicleta para ir ao mercado da cidade grande mais próxima.
Um dia, Alan Lightman resolveu perguntar a uma destas mulheres quanto tempo levava a fazer aquela viagem, ao que ela respondeu – ”nunca tinha pensado nisso.” – Prezamos cada minuto do nosso tempo, mas aquela mulher não demonstrou o mínimo interesse pelo nosso estimado tempo cronológico.
Os nossos dias estão tão contados e fragmentados ao minuto que não existem espaços livres. Vivemos no sufoco de tanta coisa que temos para fazer, que parece estarmos presos ao tempo que inventámos e não existe, e ainda sentimos que o desperdiçamos. Que tempo vivem as pessoas daquela aldeia?
«Eles não vivem num mundo de tempo, mas de espaço. E o facto em si de criar mais espaço, cria vastidão. A reflexão, contemplação, exame de consciência, vaguear livre nos pensamentos, e as ideias, desabrocham naturalmente nesse espaço. (…) Os ritmos físicos e mentais do dia são marcados por eventos, não pelas horas e minutos registados em relógios mecânicos ou digitais.» (Alan Lightman, “In Praise of Wasting Time”, TED Books, 2018)
Os habitantes de Tramung Chrum vivem num tempo que se vive mais do que o tempo cronológico, e pouco nos damos conta dele. Vivem no tempo kairológico, criado pelos eventos, oportunidades e memórias. Tempo mais para ser do que fazer.
O tempo cronológico é o quantitativo e sequencial que inventámos. O tempo kairológico é o que nos dá uma consciência viva do futuro que a nós chega, e experimentamos no presente, para pertencer ao passado que reavaliamos através da nossa memória.
No tempo cronológico somos nós que nos movemos com o tempo, quer queiramos, quer não. Por isso, atrasamo-nos, estamos fora do tempo e daí sentirmos a falta dele. No tempo kairológico é o tempo que passa por nós, são o tempo e momento certo que não exige planeamento, mas preparação. E essa preparação envolve a sabedoria das lições do passado para acolher bem o futuro.
Vivermos cada vez mais o tempo kairológico implica uma abertura ao passado e ao futuro que queremos viver intensamente em cada experiência no presente. Não conhecemos o futuro no tempo kairológico. Sabemos apenas que um dia chegará ao nosso presente se estivermos atentos.
Diz o filósofo Richard Gault que a nossa sensibilidade ao tempo kairológico está atrofiada pela excessiva vivência do tempo cronológico. Assim, é preciso cultivar três aspectos para desatrofiar essa vivência: fé, concentração e imaginação.
«Fé para esquecer os cronómetros (…)
concentração no presente onde estamos presentes, estar no tempo, em vez de vaguear fora dele (…)
imaginação porque esta é a faculdade misteriosa e mal-compreendida pela qual experimentamos as mensagens do tempo.» (Richard Gault, “In and Out of Time, Environmental Values 4 (1995): 149-66)