“O salário mínimo abrange cada vez mais grupos de qualificação superiores” – Coordenador nacional da LOC/MTC

Américo Monteiro foi eleito coordenador da Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos em junho de 2019. A pandemia foi uma situação que não esperava encontrar, lembrando que os trabalhadores precisam de organizações como a LOC nestas circunstâncias.

Foto: Miguel Rato/RR

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
Fotos Miguel Rato (Renascença)

A mensagem do Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos (MMTC) para o 1º de Maio tem a pandemia como pano de fundo e fala de um retrocesso ao nível dos direitos fundamentais dos trabalhadores: refere o aumento do desemprego e da precariedade, a perda de benefícios sociais e a falta de habitação digna, e como tudo isso afeta as famílias. Podemos dizer que a pandemia agravou, e muito, as situações que antes já eram uma preocupação?

A pandemia é o nosso grande problema e o nosso grande tema. Marca a vida de todos, e às vezes em definitivo. A questão que se põe, mais grave, é que nos apercebemos que, de facto, em termos dos trabalhadores e das condições de trabalho, estamos em decréscimo, em perda. As próprias relações nas empresas projetam esse receio e medo: não sabemos se vamos ter trabalho, por certo vamos ter de reduzir postos de trabalho; nas mercadorias, os preços alteraram-se e vamos ter de ver a questão dos salários, houve quem perdesse mesmo salários com esta situação, e isso repercute-se na vida dos trabalhadores.

É um desafio grande que se põe ao entendimento, à reflexão o mais clara possível sobre a situação que nos espera, porque uma coisa é o que já passou, outra coisa é o receio do que nos espera.

 

E o que nos espera pode ser pior do que aquilo que já passou, sendo também mais difícil lutar pelos direitos dos trabalhadores?

Pessoalmente tenho muito receio pelo isolamento que esta situação está a causar aos trabalhadores. O país tem uma percentagem muito alta de micro, pequenas e médias empresas e isso isolou mais os trabalhadores, os receios sobrepuseram-se, há consequências familiares que surgiram na vida das pessoas. Há algumas medidas atenuantes da situação, os apoios que houve, o ‘layoff’, etc…

Projetam-se problemas mais graves a curto e médio prazo, porque se alguns setores saíram de uma forma equilibrada e não terão problemas de maior, outros vão ter problemas, porque passam a circular menos os produtos, os negócios passam a ser produzidos mais localmente. Nós, que dependíamos muito da exportação, temos agora esse problema a enfrentar. E a questão do turismo e dos pequenos negócios de hotelaria e restauração, receamos muito o que pode vir a acontecer, porque as perspetivas não são boas. Alguns hábitos alteraram-se e isso vai ter repercussões nessa área de negócio e nos empregos dos trabalhadores.

 

Foto: Miguel Rato/RR

O desemprego é a parte mais visível da crise económica causada pela pandemia, mas um estudo recente mostrou que há um quinto de portugueses a viver na pobreza, e destes, muitos até têm trabalho. É urgente uma revalorização salarial em Portugal?

É urgente e não se compreende que não seja feita com mais frequência. Sabemos que há entraves na negociação coletiva. Os sindicatos queixam-se, e com razão, que não se consegue a negociação contratual em condições iguais, porque há defesas do lado das empresas.

O salário mínimo até tem crescido a um ritmo razoável para o nível que teve em determinada altura, mas a contratação coletiva e a qualificação dos profissionais não avança ao mesmo nível. Nas empresas o salário mínimo abrange cada vez mais trabalhadores, mais grupos de qualificação superiores e isso, primeiro desmotiva os trabalhadores, depois provoca essa grande questão, que é: como é que um trabalhador com o salário mínimo, às vezes com dependentes na família a seu cargo, vai conseguir ter uma vida digna e equilibrada em termos de rendimentos que consegue auferir? É um desafio grande.

As empresas – ou os seus representantes, em termos das associações patronais – deveriam ter a perceção de que prejudicam o próprio negócio, na medida em que os trabalhadores não estão satisfeitos, se uma pessoa entra a ganhar o salário mínimo nacional, segue um percurso de qualificação, e na empresa há pessoas que terminam o seu percurso profissional de 40 anos de trabalho sempre a ganhar o salário mínimo nacional, ou muito próximo. Sabemos que isso acontece, por exemplo, com as costureiras e com outros setores industriais semelhantes e é um grande desconforto para o trabalhador, provoca-lhe carências grandes. Se tem um filho para estudar ou família com algum tipo de necessidade, se tem mais uma pessoa a cargo, se um familiar perde o emprego, caem imediatamente na pobreza por não terem o necessário para sobreviver.

 

Poderá ser um problema que se agrava ainda mais diante da situação de muitas empresas na atualidade, onde a palavra de ordem é “salvar” os postos de trabalho?

Agrava-se, na medida em que não se prevê a melhoria das condições para a contratação coletiva, em que grupos diferentes de qualificação podem ter salários um bocadinho melhorados. A ideia é essa, no nosso sistema de organização de trabalho. Como isso não acontece, mesmo em situação de crise, que é grave, e também económica, o salário mínimo nacional vai sendo atualizado, mas se os outros salários não evoluem, este desafio é enorme e tem consequências graves para os trabalhadores e para as suas famílias.

 

Acentuando, nomeadamente, a precariedade…

Que é um problema que se visualizou melhor com a entrada nesta crise sanitária e económica, consequentemente, porque muitos trabalhadores em várias áreas tiveram de ir para casa, por não se poder trabalhar, pelo confinamento que existiu, e encontraram-se sem qualquer apoio, porque não tinham trabalho fixo com direitos. Aconteceu muito, nomeadamente na cultura, mas noutras áreas, em que os trabalhadores não tinham forma de recorrer a qualquer subsídio. Criaram-se algumas alternativas e possibilidades de acesso, mas que não resolveram o essencial, porque são valores irrisórios para quem tinha de pagar arrendamentos, por estarem deslocados noutra cidade, etc. Isto permitiu detetar que, de facto, a questão da precariedade existia num grau muito superior àquilo que normalmente admitíamos como existindo.

 

Foram fragilidades que a pandemia destapou?

Exatamente.

 

E agora é preciso agir?

É preciso agir. Sabemos que em termos do Estado houve a tentativa de legalizar muitos dos precários – que não se compreende muito bem, mas que o Estado também tem em grande quantidade -, e percebe-se agora, a esta distância, que só se resolveu uma parte reduzida do problema que existia.

Ficamos preocupados quando num setor como o da saúde, cada vez que o pico da pandemia decresce há trabalhadores que são dispensados, porque já não são necessários com tanta premência. É preciso encontrar uma solução para isso. Hoje percebemos, com esta crise toda, que o setor público da saúde é uma área fundamental para um país equilibrado quando é preciso assistir a sua população, nomeadamente os mais carenciados.

 

Não pode ser um setor precário a nível do trabalho?

Não pode ser e tem de se repensar bem. Diferentes governos desinvestiram nesta área, os próprios Centros de Saúde que se foram encerrando em zonas mais remotas do país, há que repensar isso tudo. É necessário organizarmo-nos de outra forma.

 

Foto: Miguel Rato/RR

A pandemia mudou muita coisa, até a forma como trabalhamos, e colocou-se a questão do teletrabalho. Há um decreto do governo que vai ser ainda discutido no parlamento, e poderá sofrer alterações, mas do que já conhece, qual é a sua opinião sobre esta matéria?

A LOC/MTC promoveu o ano passado, a 7 de outubro, Dia do Trabalho Digno, uma videoconferência bastante participada, com bons técnicos a abordar esta questão, dizendo que pode haver teletrabalho, mas tem de ser trabalho digno. A questão não é o sermos contra o teletrabalho, mas que haja condições dignas e que não venha sobrecarregar e criar complicações à vida do trabalhador.

 

Ao fim de mais de um ano de pandemia isso ainda não está assegurado?

Em Portugal, não. Não sei se noutros países isso já está bem resolvido, mas tem tido uma evolução mais rápida do que em Portugal, onde estão agora a ser apresentadas várias propostas de decreto-lei para organizar alguns dos aspetos do teletrabalho.

As coisas ainda estão muito verdes, e receio que estejamos focados naquilo que causa despesa ao trabalhador, nas condições de trabalho físicas, em casa. Mas, eu acho que a questão do teletrabalho é muito mais do que isso: é a falta de sociabilidade, a questão de se levar os problemas do trabalho para casa, e também as condições físicas e psíquicas do trabalhador.

Acho que já devia estar aí uma grande parangona há muito tempo: ‘não mais do que 6 horas de trabalho à frente do ecrã em sua casa’, e especialmente nesta altura, porque fomos obrigados a ir para casa. Quando já não for obrigatório ir para casa trabalhar, então poderá melhorar-se outro tipo de relações de trabalho, de negociação e de condições. Mas, a condição física, a saúde e a segurança no trabalho piorou com o facto de as pessoas estarem em casa porque, no fundo, limitaram muito mais o seu espaço de ação física. Tudo isso devia estar em equação, e parece-me que não está. Está mais a questão económica, que também é importante, mas que pode não resolver o essencial destas questões do teletrabalho.

 

Em discussão está também a obrigatoriedade, ou não, do teletrabalho até ao fim do ano nos concelhos onde a pandemia assim o exija. Qual é a sua opinião sobre essa obrigatoriedade?

Neste caso, como é para combater a pandemia, sendo com equilíbrio, estou perfeitamente de acordo.

Sei de pessoas que estão muito satisfeitas por terem tido essa opção de trabalhar a partir de casa, mesmo que as condições não sejam as melhores, mas dá-lhes uma maior segurança que não contavam antes. Mas, também sei de pessoas que lhes causa grande transtorno estarem a trabalhar a partir de casa, porque não têm condições: é o cuidar dos filhos, é o trabalho que é exigente.

Há muitas coisas que terão de ser discutidas e aprofundadas: a questão da privacidade, saber até onde pode ir a intromissão da empresa, ou da entidade que contrata, e o trabalhador se poder defender, o direito a desligar do trabalho.

Eu vejo, nas minhas responsabilidades profissionais, com um pequeno descuido e lá estamos a ligar às pessoas fora de horas. Temos de nos consciencializar de que isso não é correto. É uma exigência para quem tem negócios, para empregadores e também para o trabalhador. E quando o trabalhador não tem condições para o exigir, temos de as criar.

 

E sobre o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, onde se propõe que trabalhadores em layoff ou de empresas em crise, possam ser colocados temporariamente noutras com falta de pessoal. Qual é a sua opinião?

Na cultura portuguesa, e não só, há muito o hábito de culpar o trabalhador pela sua situação. Culpamos os pobres porque são pobres, os trabalhadores porque não são trabalhadores, com as suas funções, e acusados de subsídio-dependentes.

Eu acho que o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho está um pouco aquém do que era necessário abordar. O tempo pareceu-nos um pouco limitado para a reflexão, e receamos que possa abrir portas que não vêm valorizar o trabalho e os trabalhadores, nem dar-lhes melhores condições de vida, de rendimento, motivação. É um desafio que se põe com alguma premência: a continuidade da reflexão daquilo que se quis dar por concluído. É necessário ir mais ao fundo dessas questões.

Já não é o primeiro Livro Verde sobre o trabalho, não sabemos se irá dar num Livro Branco, para se aplicar ou não… Ainda há muito a discutir e devíamos ter esse tempo para mais gente se pronunciar sobre o assunto e fazer propostas.

 

Foto: Miguel Rato/RR

Na defesa dos direitos dos trabalhadores…

Claro! Achamos que está muito vago nesse assunto importante de ser um trabalho digno e protegido, como é necessário.

 

Que espectativas tem em relação à Cimeira Social Europeia, que vai decorrer no Porto? O que é que seria um bom resultado, do ponto de vista da LOC?

Eu tenho o privilégio de saber como é que as coisas estão a ser organizadas: segundo me parece, as confederações sindicais nacionais não vão ter direito à palavra, serão representadas pela respetiva Confederação Europeia e os tempos são muito apertados para a discussão.

Penso que é para servir a imagem da União Europeia. Se ficar por aí, vai ser escasso. Claro que vão sair algumas medidas que não serão para piorar a vida dos trabalhadores. Mas, sabemos que esta questão social europeia vem para contrapor à questão de ser uma união só a pensar no económico. E sabemos que dentro dessa União Europeia há muitos lobbies, a puxar cada um para o seu lado. Este, do social, tem hoje um pouco mais de influência e poderão sair medidas interessantes. Mas, a União Europeia continua a ter muito de imagem, que depois não se repercute na reflexão e participação que era necessária dentro da própria UE.

Na Cimeira Social tenho receio do ‘show off’… Pode surgir uma ou outra medida interessante, mas não tanto como era necessário nesta Europa, ao nível da migração, das condições do trabalho, de vários setores das diferentes sociedades europeias que estão afastados, ou impedidos de chegar a um bolo que deveria ser mais bem dividido por todos. Não quer dizer que não venham a surgir medidas importantes para a Europa que somos hoje, e em termos de uma Europa social, que é o que defendemos.

 

É coordenador da LOC desde junho de 2019. Esta crise sanitária veio condicionar o vosso trabalho? Tornou-o também mais urgente e mais presente junto dos trabalhadores?

Nunca os trabalhadores precisaram tanto de organizações como a LOC/MTC e outras que são fundamentais para uma sociedade participativa, cidadã e, no nosso caso, uma sociedade que vai buscar as preocupações do mundo e reflete-as a partir dos valores católicos e da própria Igreja.

Eu, quando assumi estas funções, não estava nada a contar com uma coisa destas, com a pandemia! É terrível… Alguns colegas têm-me dito: “não me queria ver no teu papel”. Ficámos todos muito mais isolados e algumas pessoas podem não resistir a estas situações.

Durante o mês de abril reunimos com todas as direções diocesanas. Estamos em fase conclusiva, faltam apenas três dioceses, e temos conseguido apercebermo-nos da realidade das dioceses em termos laborais e também dos nossos dirigentes, militantes e grupos.

 

E que diagnóstico é possível fazer?

Vivemos situações muito complicadas… Um movimento como a LOC vive da proximidade, do afeto, do encontro para revisão de vida. Claro que evoluímos o que não imaginávamos nas ligações pela internet, videoconferências em diferentes sistemas. Mas isso não resolve o nosso problema que é o afetivo, a proximidade, o darmos as mãos, o rezarmos juntos para sermos mais fortes no que é preciso fazer.

Movimentos como a LOC sofrem um grande problema, até em termos económicos. Todo o tipo de atividades que costumávamos realizar para a participação das pessoas, comunidades e paróquias, que davam pequenos contributos, nomeadamente no mês de maio, o mês da solidariedade, não podemos solicitar esse apoio e organizar atividades de formação e comunhão, onde as pessoas deixavam pequenos contributos financeiros que, apesar de muitos pequenos, dava para irmos existindo com melhores condições.

 

Como vai viver este 1º de Maio e que oportunidade constitui para os trabalhadores afirmarem os seus direitos?

Estamos um bocadinho melhor do que há um ano. Normalmente integramo-nos nas festas, nas manifestações e concentrações dos trabalhadores, sem distinção, que se organizam pelo país. É um tempo de festa, de desafio e de consciencialização daquilo porque ainda falta lutar.

O que apelamos às pessoas é que, quem se sentir bem, pode participar com todos os cuidados e manifestar, dessa forma, aquilo que é importante, que é lutar pelos trabalhadores. Sem que se forcem a eles próprios, porque cada um tem de ter a sua consciência, sem atacar aqueles que o fazem. Há que reconhecer esse direito, e mesmo que alguns corram algum risco, é conscientemente que o fazem.

Sabemos que os tempos do mundo do trabalho são complicados e se os trabalhadores não manifestam esta solidariedade e disponibilidade para defender o que é importante defender, aproveitam-se mais ainda da situação que vivemos para explorarem mais profundamente o trabalhador. E é importante dar a atenção a isso e a questões como o ambiente, os ecossistemas, o cuidar das nossas águas, as energias alternativas… Os trabalhadores têm de pensar nessas coisas para que as suas empresas evoluam e o futuro seja mais garantido do que aquilo que todos receamos em relação ao clima. O Papa Francisco alerta-nos com frequência: as coisas não estão bem e é preciso dar-lhes atenção!

 

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Agência ECCLESIA

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