O quinto Evangelho

«A Paxão de Cristo» segundo Mel Gibson A nova obra de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”, promete vir a dar muito que falar entre os portugueses. Ontem, numa projecção privada que decorreu na UCP, a Agência ECCLESIA pôde comprovar que a maior parte das personalidades presentes ficou sensibilizada com o que viu, olhando para o filme como uma provocação. D. José Alves, um dos bispos auxiliares de Lisboa presentes nesta projecção, falou do filme como um drama, “mas com sentido profundo, uma meditação sobre Cristo e a vida actual”. O prelado considerou o filme muito duro, com muita violência, mas explica que esta é “espiritualizada, eleva-nos para Deus”. Carlos Azevedo, especialista em História Religiosa e vice-reitor da UCP, vinca que este é um filme que provoca comoção “disponibilizando-nos para olharmos o drama da dor e da vida”. A crueza da obra, referida por vários espectadores, é desculpada por este especialista e sacerdote católico: “o mundo contemporâneo precisa de questionar-se e confrontar-se com o sofrimento, sem ilusões, e este filme é uma forma chocante de nos provocar”. Manuel Braga da Cruz fala numa obra muito “impressiva”, assegurando que nem os que estão habituados à narração escrita das últimas horas de Jesus foge aos efeitos do filme. “Esta é uma descrição de imagem, que fere muito mais e deixa marcas mais profundas na nossa sensibilidade, na consciência de cada uma. Acho que este é um filme profundamente religioso e, por isso, mesmo, a sua mensagem é religiosa”, esclarece. Pedro Lynce, antigo ministro do Ensino Superior, diz que estamos na presença de um “filme belíssimo”. “Vai-nos obrigar a uma reflexão muito profunda sobre o que, numa sociedade com uma dinâmica completamente diferente, a Paixão de Cristo oferece aos dias de hoje”, assegura. VIOLENTO? Apesar de ninguém saber ao certo como foi a Paixão de Cristo e de, como referem os especialistas, as narrativas evangélicas serem mais do que meras crónicas, ultrapassando a preocupação historicista, a verdade é que a crucifixão é entendida nos primeiros livros da Bíblia como algo terrível, uma maldição. O biblista Joaquim Carreira das Neves, um dos intervenientes no debate que se seguiu à exibição do filme, lembrou que, ao ser condenado por blasfémia, Jesus “tinha de ser erradicado de entre o povo, por ser um perigo para a nação e a religião”. A crucifixão era um caminho, dos mais violentos, para calar o blasfemo. A aposta nas cenas do sofrimento físico de Jesus, um risco assumido por Gibson, acaba por ser a grande novidade do filme. Ao grande derramamento de sangue, que alguns consideram excessivo, corresponde um mínimo de indiferença: poucos são os que conseguem deixar de envolver-se com o que estão a ver. “Não sei se a linguagem será devidamente descodificada na sociedade moderna: o realizador aceitou o extremo paroxismo da violência e as gerações de hoje rejeitam esse tipo de linguagem”, avança o Pe. Policarpo Lopes, sociólogo. Para o espectador, a quantidade de violência infligida à personagem de Jesus Cristo parece humanamente insuportável e funciona, muitas vezes, como um “ruído”. Mesmo assim, Maria José Nogueira Pinto lamenta que se critique tanto a violência existente no filme – “uma crucifixão é assim mesmo” – e lembra aos cristãos que apesar de terem lido muito sobre a Paixão de Jesus, nenhum deles esteve lá para constatar da violência utilizada sobre ele. “A grande chave deste filme é a humanidade da Divindade, ou seja, acreditarmos que o Filho de Deus viveu uma paixão violentíssima com toda a sua humanidade, com a violência e o sangue, com o barulho dos ossos a quebrar. Ele viveu tudo isso”, vinca. Mário Lages, sociólogo e professor na UCP, confessa que “este é um filme duro”, mas defende que a violência apresentada é perfeitamente compreensível “dada a crueza do tempo”. Também ele considera que numa sociedade de brandos costumes “custa muito a compreender uma situação como esta, que acontecia nos tempos antigos”. A intenção confessa de Mel Gibson era proporcionar ao espectador a oportunidade de viver por dentro a Paixão de Cristo e não a de fazer um filme que fosse uma “experiência de realizador”. A violência impressiona, sim, por ser descarregada sobre Jesus e não sobre figurantes anónimos e porque a personagem castigada e torturada nada faz ppara retaliar. Este é o maior choque. Maria de Jesus Barroso revela que “o filme é muito difícil de aguentar, mas esta é a verdade histórica”. E alinha pelo diapasão do realizador: “esta violência pode fazer despertar nas pessoas certos actos muito especiais de amor ao próximo, porque apesar da brutalidade com que é tratado, Jesus mais não faz do que pregar o amor ao próximo, não há nenhum vestígio de ódio no seu coração”. ANTI-SEMITISMO A polémica que serve de embrulho a este filme tem a ver, sobretudo, com as acusações de estar a fomentar o anti-semitismo. Para o Pe. Policarpo Lopes, “a reacção depende da situação, da história e da trajectória de quem vai ver o filme, porque, em termos de polémica anti-semita, não consegui encontrar no filme qualquer fundamento para essa reacção”. A mesma ideia é defendida por Carlos Azevedo, para quem a origem destas acusações ultrapassa o âmbito estritamente religioso: “elas são tipicamente americanas, questões de Hollywood mais do que do próprio filme”. “Não vejo que a obra traga qualquer conotação mais carregada do que o escrito no Evangelho”, assegura. É aqui, aliás, que reside o cerne da questão para João César das Neves. “Os Judeus acham o filme anti-semita porque, no fundo, estão convencidos que os Evangelhos são anti-semitas”, atira. O Departamento para as Relações Ecuménicas e Diálogo InterReligioso do Patriarcado de Lisboa fez questão de esclarecer, em comunicado oficial, que a polémica que tem envolvido o filme não deve sugerir “a existência de alguma tensão entre as comunidades judaica e cristã”. “Queremos, nesta altura, sublinhar as boas relações e a colaboração hoje existente entre ambas as tradições religiosas, tanto ao nível mundial como na cidade de Lisboa”, refere este organismo. Porquê, então, tanto melindre em torno do filme? “As pessoas, se estiverem profundamente marcadas pela experiência de anti-semitismo, olham para o filme nessa lógica, mas penso que é mais um predisposição psicológica da parte do receptor do que da parte do emissor”, assegura Policarpo Lopes. “O anti-semitismo não vem de questões religiosas, mas exclusivamente de questões culturais e históricas; acontece que as gerações actuais já não têm essa experiência e não vejo como irá despertar qualquer tipo de perseguição aos povo judeu a partir desta obra”, acrescenta. O Concílio Vaticano II afirmou, a respeito da morte de Jesus, que “o mal praticado na sua paixão não pode ser atribuído indiscriminadamente a todos os judeus que viviam então, nem aos judeus dos nossos tempos”. Além disso, a Igreja Católica condenou publicamente todos os ódios, perseguições e manifestações de anti-semitismo “efectuadas em qualquer altura e por quaisquer pessoas contra os judeus”. A vida de Jesus já foi adaptada ao cinema por várias vezes, mormente por Pier Paolo Pasolini e Franco Zeffirelli. Conforme recordou João César das Neves, nenhum deles obteve consensos, nem escapou à polémica anti-semita. Na lógica de quem protesta, todas as Paixões de Cristo do cinema são anti-semitas, tal como os próprios Evangelhos. “Contudo, nunca como nesta obra foi tão nítida a consciência de que Jesus era judeu”, assegurou. Maria reza a liturgia judaica, não há lugar para os Cristos de cabelo louro e olhos azuis. O difícil de perceber seria, provavelmente, se o filme gerasse contestação entre os australianos, os cidadãos da UE ou de qualquer outro povo que não estivesse envolvido na narrativa evangélica. Só no deliciosamente louco “A Vida de Brian”, dos Monty Python, há também galeses e suecos na Palestina, e não apenas judeus e romanos. “Se houvesse sucessores do Império Romano, também eles se iriam sentir ofendidos”, assume Carlos Azevedo. Não consta que os italianos se teham manifestado contra o filme. CULTO DA DOR Maria José Nogueira Pinto disse que este filme é, em última análise, uma “Via Sacra”. De facto, associar as imagens da obra de Gibson às devoções populares da Semana Santa é quase inevitável. Vários dos convidados da UCP lembraram as celebrações na nossa vizinha Espanha, marcadas por estes aspectos doloristas e fatalistas. “Penso que o filme acentua essa dimensão da tradição cristã, olhando mais para a dor, a Paixão, do que para a mensagem de amor que Jesus trouxe a todos”, acusa o Pe. Armindo Vaz, especialista em Sagrada Escritura e professor na UCP. Joaquim Carreira das Neves explicou que as influências de Gibson passam por dados da grande tradição católica, destacando a figura de Maria, e por outros de tradições particulares. “Há aqui um grande destaque para o conceito de satisfação, em que se aplicam a Deus conceitos do Direito: Ele tinha de ser ressarcido pelos pecados dos homens e só alguém perfeito e sem pecado serviria como moeda de troca”, elucidou. O biblista criticou ainda a opção de Gibson por uma visão “martirial”, que fomenta o “culto” do sangue, explicando que prefere uma “visão da conversão” sobre a vida de Jesus. As narrativas evangélicas não são particularmente ricas em detalhes, pelo que o realizador teve de recorrer várias vezes a fontes não-evangélicas e mesmo à sua imaginação. Essas aventuras deram origem a alguns dos momentos mais contestados do filme. Segundo o Pe. Policarpo Lopes, “o filme é a reprodução de um imaginário colectivo cristão na sua linguagem mais fundamentalista”. De facto, a agonia detalhada e ensanguentada que Gibson apresentaentronca na tradição das pinturas da Paixão medievais, de onde se destaca o Cristo de Grunewald. Consciente de todas estas críticas, João César das Neves vincou que há um motivo maior do que todos os outros para que a obra seja polémica: “é uma manifestação de Fé”.

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