Padre Manuel Ribeiro, Diocese de Bragança-Miranda
Esta pergunta é o resultado de uma caminhada com os crismandos da minha amada Paróquia e que tive a felicidade e a graça de os poder acompanhar nesta belíssima e inaudita viagem pelos trilhos da Fé. Naturalmente, a questão da oração e de que tudo isto significa impôs-se-nos. Daí a pergunta: o que significa rezar? Telegraficamente, rezar é viver diante de Deus. E, como tal, rezar não é um acto, mas uma atitude. Por outras palavras, quando eu tomo uma decisão, quando tomo uma atitude sobre determinada coisa ou me proponho a determinado objectivo, a assunção dessa atitude determinará a existência de um conjunto de actos que irão fundamentar e justificar a mesma.
Assim compreendemos que a condição primeira da oração é a confiança. Quando confiamos, quando nos entregamos e nos lançamos para Deus, quando damos este ‘salto no escuro’, aí sentiremos o verdadeiro sentido da confiança como porta da Fé. E da confiança brota, inexoravelmente, a relação e o diálogo. Por isso, a oração tem uma dimensão performativa, relacional, dualógica e dialógica.
Gostava que pudéssemos viajar pelo mar da Sagrada Escritura e ir até ao primeiro Livro de Samuel, capítulo 1, versículos 1-21. Aqui seremos surpreendidos pela ‘lição’ de Ana. Ana, uma mulher sofrida pela sua impossibilidade de ser mãe, que vive a angústia de uma vida sem vida, que é menosprezada pela sua própria família e tribo, ensina-nos como rezar. Na sua angústia, ela oferece-se, na sua tristeza, ela consagra-se e promete dar o melhor. Mas qual melhor? Aquilo que ela pede, isto é, um filho varão. E sabeis? Ela é escutada e atendida, e cumprirá a sua promessa, dando a Deus o que d’Ele recebeu: o seu filho Samuel (que significa “eu pedia a Deus”).
Outro episódio bíblico extramente belo é o do Evangelho de Marcos, capítulo 1, versículos 40-42, quando um leproso se aproxima de Jesus é lhe suplica: “Se quiseres, podes curar-me”. O mais curioso deste episódio bíblico é a atitude deste homem que agonia com a lepra. É importante recordar que um doente com lepra estava impedido de se aproximar das pessoas, havendo até espaços consignados para estes enfermos. Na maioria das ocasiões, a lepra significava o fim da vida social, relacional, familiar e, até, religiosa pela sua impossibilidade de ir ao Templo.
Ora, imagine o estimado leitor a coragem deste homem em se aproximar de Jesus. Vamos reler o episódio bíblico e ver a beleza narrativa deste Evangelho: “Naquele tempo, veio ter com Jesus um leproso. Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe: «Se quiseres, podes curar-me». Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse: «Quero: fica limpo». No mesmo instante o deixou a lepra e ele ficou limpo.” Fico fascinado como esta perícope nos acaba por ensinar a rezar. Vejam, em primeiro, a atitude do leproso é de alguém que não teme Jesus, que não tem nada a perder e, por isso, avança decidida e confiadamente. Em segundo, a sua postura corporal manifesta a consciência transcendental de Jesus ao prostrar-se de joelhos e ao suplicar. Aliás, não é assim que nos devemos apresentar perante Deus Nosso Senhor? Em terceiro, reparem na humildade do seu pedido: «Se quiseres, podes curar-me». ‘Se quiseres’ não é exigir, não é negociar, não é reclamar. Antes, é expressão daquele que se reconhece carente e eternamente dependente de Deus, aquele que só é se for n’Ele, por Ele e com Ele. E remata: ‘podes curar-me’. O mesmo é dizer: “Senhor, tu podes tudo; Tu és o meu tudo”. Que encanto o testemunho que este leproso nos dá! Na verdade, um homem sem Deus é um homem desarrumado, sem rumo. Em quarto, e último, repare na reacção tão ternurenta de Jesus: “Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse: «Quero: fica limpo»”. Jesus mostra-nos o quanto Deus nos ama, o quanto Ele nos escuta e como Ele quer que lhe dirijamos a palavra. Mais, Jesus não tem nojo, ou asco, ou repulsa pelo leproso (quantos de nós não teríamos, não é?). Pelo contrário, Jesus toca-lhe, acolhe-o e afirma: «Quero: fica limpo»! No entanto, Jesus adverte o leproso: “Não digas nada a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou, para lhes servir de testemunho” (Mc 1, 41). Porque é que Jesus lhe faz este pedido? Entendamos que no tempo de Jesus a lepra era a mesma coisa que a morte, grosso modo. Portanto, curar um leproso era tão difícil como ressuscitar um morto! Os sacerdotes tinham a função de “declarar puro” um leproso que tivesse sarado e curado, mas não tinham o poder de “torná-lo puro”, isto é, de curá-lo, uma vez que a cura de um leproso era uma obra exclusiva de Deus. Assim compreendemos que Jesus, com este pedido, procura testificar a sua própria identidade e a sua própria missão, isto é, revelar ao povo de Deus, a Israel, que Ele é o Messias esperado, o Filho eterno de Deus que vem para todos curar e a todos salvar. Como é encantador a pedagogia da Fé!
Posto isto, compreendemos que a oração é o exercício constante da lembrança de Deus. É como se a presença de Deus fosse como que uma música de fundo, tal e qual como quando estamos num restaurante ou num bar. Sem nos apercebermos muito dela, ela ali está, serena, a acompanhar-nos e a envolver-nos. No entanto, esta lembrança da presença de Deus exige que saibamos disciplinar a nossa vida a fim de termos este tempo a sós com o Senhor, este tempo que gera presença, relação e missão. E aos poucos vamos sentindo a acção de Deus a mexer e a remexer na nossa própria vida, até ao ponto, sem sabermos muito como, de começar a ter os mesmos sentimentos de Deus.
Santo Agostinho, na sua indiscritível sagacidade, afirmava que “a tua oração é o teu desejo”, isto é, se tu O desejas o dia inteiro, então tu rezas o dia inteiro. Tão simples, não é?! Já o falecido e saudoso D. Henrique Soares (bispo da Diocese de Palmares, Brasil) ia mais longe ao garantir que “quem não reza é ateu”. Fica, portanto, a pergunta: o que significa rezar?