O que nos está a ser dito

José Tolentino Mendonça

A bússola serve para indicar o Norte. A existência de um Norte estabelece uma orientação, um tracejado com o qual passamos a contar. Pode acontecer ao viajante, quando retira a bússola do seu bolso, que esta tenha deixado de funcionar. Mas nesse caso, o viajante sabe que o problema é da bússola e não lhe passa pela cabeça colocar em causa a existência do Norte. Tomemos agora a bússola como metáfora da relação que mantemos com o sentido. Houve, de facto, um tempo em que as fontes de sentido (religiosas, políticas e éticas…) exerciam uma atração capaz de polarizar e de assegurar todas as procuras. Essas fontes tinham o magnetismo assertivo da agulha de uma bússola e as respostas que davam pareciam simples, naturais e inquestionáveis.

Mas mudanças e ruturas culturais aconteceram. E deu-se uma passagem que podemos descrever assim: na orientação das nossas viagens deixámos de recorrer à bússola e passamos a utilizar o radar. Isto significa o quê? Significa que não estamos mais ligados a uma direção precisa. É verdade que o radar vai em busca do seu alvo, mas essa busca implica agora uma abertura indiscriminada, plural, móvel. Com a bússola era-nos claramente apontado um Norte, e só uma direção: o radar vem potenciar e complexificar a procura. Diversificam-se os sinais e multiplicam-se igualmente os caminhos.

As vias da procura espiritual deixaram de ter sentido único.

Hoje estamos perante uma ulterior mudança, porque mais do que investirmos na procura de sinais aqui e ali, garantimos agora sobretudo a possibilidade de recebê-los. Se antes o radar estava à procura de um sinal, hoje somos nós a procurar um canal de acesso através do qual os dados possam passar, sem no entanto termos nós necessariamente de fazer a procura. Quando um dado fica disponível (um e-mail, por exemplo), recebemo-los de forma automática porque temos aberto um canal de receção. O problema atual não é, portanto, encontrar a mensagem de sentido mas descodificá-la. Os tempos estão a mudar. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O que nos está a ser dito? – é a pergunta necessária. O que é que esta avalanche cultural nos revela? De facto, a grande crise, a mais aguda, não é sequer a dos acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia, sobrepõe-se um problema maior: a crise da interpretação. Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos.

José Tolentino Mendonça

 

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