O que é hoje a Doutrina Social da Igreja?

Conferência de Jean-Yves Calvez no Congresso Diocesano de Doutrina Social da Igreja no Porto A Doutrina Social da Igreja ontem O que é hoje a doutrina social da Igreja? Para me fazer compreender, é necessário, penso, falar um pouco, primeiro, da doutrina social da Igreja, ontem. Que foi ela então ontem, começando em 1891 com a Rerum Novarum do Papa Leão XIII? Um grande protesto, é necessário dizer, contra a economia exploradora do operário do século XIX (lembrado por João Paulo II na sua encíclica sobre o trabalho, Laborem Exercens, em 1981). Na mesma época, um ensinamento muito completo sobre o trabalho, a propriedade, a função do Estado na Economia, o direito de associação, especialmente dos operários, e tudo isto se tornou a base dum poderoso esforço de reforma social, em particular da criação duma legislação protectora em favor dos trabalhadores e, simultaneamente, de todo um esforço de formação (de estudo e reflexão) de círculos de toda a ordem de pessoas do mundo operário (patronal também). Para o sindicalismo cristão, para a acção católica operária, mesmo para a acção católica no seu conjunto, a Rerum Novarum constituiu uma verdadeira “carta”. A ela se juntou, a partir de 1931, Quadragesimo Anno de Pio XI, visando o conjunto do sistema económico fundado sobre a concorrência, não livre, mas sem freio, sem regras, violento, por consequência. E caminha-se assim, mais ou menos até ao pós-guerra, insistindo então sobre a reforma da empresa, que deve ser uma verdadeira comunidade de todos aqueles que nela têm um destino, um stake duma espécie ou de outra, proprietários do capital, dirigentes, trabalhadores, consumidores. Tudo isto culmina com João XXIII, numa fortíssima recomendação de estudar e naturalmente de aplicar a doutrina social da Igreja (chama-se-lhe então doutrina e não ensinamento): “a doutrina social da Igreja Católica, tem, sem dúvida, um valor permanente, dizia João XXIII (… ) Hoje, mais do que nunca, é necessário, simultaneamente, que este ensino seja conhecido e aprofundado, e que ele seja levado à prática (…). Nós chamamos a esta tarefa todos os irmãos (os Bispos) e os nossos filhos do mundo inteiro e, com eles, todos os homens de boa vontade… Trata-se duma parte integrante do ensinamento da Igreja sobre a vida humana (…) Pedimos que ela seja ensinada como matéria obrigatória em todas as escolas católicas em todos os graus e sobretudo nos seminários. Desejamos também que ela figure nos programas de formação religiosa das paróquias e das associações de apostolado dos leigos e que seja propagada por todos os meios modernos de difusão, jornais, revistas, livros, rádio, televisão… E que cada um coloque todos os seus esforços a fazer captar o seu valor para os outros.” Estamos em 1961, nunca se tinha dito tanto…Não se tinha, sem dúvida menos feito, podemos dizer, creio, se comparamos o que se seguiu ao que se passava antes de 1960: havia como que uma certa usura. Não houve, creio, verdadeira sequência depois, salvo numa parte do mundo pobre, mas também num certo grau no mundo rico, no momento do Concílio e da encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI (1967) quando a Igreja se investiu de maneira forte, espectacular mesmo, na causa do desenvolvimento; isso durou uma quinzena de anos, mais ou menos até à Soilicitudo Rei Socialis de João Paulo II em 1988, fazendo um balanço, vinte anos depois, da Populorum Progresssio. No fim do século XX, menos paixão, um certo recuo Fomos, bem depressa invadidos, a partir de então, pela problemática do “pós-queda do muro”,ou do “pós-comunismo”. Vemo-lo com Centesimus Annus de João Paulo II, toda inteira marcada por este acontecimento, em 1991. Mas será necessário confessar que isso apaixonou menos, porque o Papa não se coloca mais (como outrora um Leão XIII e um Pio XI também) como denunciador duma vasta injustiça, mas ele compõe, se bem que de maneira crítica, com o que se impõe então, uma economia liberal, um momento ao menos triunfante. Ele cessa, pode-se dizer, de propor uma alternativa completa. É João Paulo II que diz, na Sollicitudo Rei Socialis , três anos antes da Centesimus Annus: “A Igreja não tem soluções técnicas que possa oferecer face ao problema do subdesenvolvimento enquanto tal (…), ela não propõe sistemas ou programas económicos e políticos, nem manifesta preferência por uns ou por outros, contanto que a dignidade do homem seja respeitada (…) Ela tem uma palavra a dizer, como há vinte anos (tempo da Populorum Progressio), e (terá) ainda no futuro (mas, porque um mas revem imediatamente) a doutrina social da Igreja não é uma terceira via entre o capitalismo liberal e o colectivismo marxista, nem uma outra possibilidade entre as soluções menos radicalmente marcadas. (Ela é qualquer coisa de outro que isto). Ela não é sequer uma ideologia (…) É uma reflexão… à luz da fé e da tradição eclesial (…) é teologia, particularmente teologia moral” (SRS 41). Ora, é verdade, evidentemente, tudo isto e por outro lado, o Papa João Paulo II tinha vigorosamente defendido a doutrina social da Igreja em face da teologia da libertação que a contestava em 1979, em Puebla. O que não impede que as reservas que parece ter feito assim, tiveram um efeito sobretudo desmobilizador da doutrina social católica e estamos ainda, sem dúvida, ainda um pouco aí. E é pena, penso, porque é necessário, todavia, reflectir profundamente, apoiando-se sobre verdadeiras cartas e instrumentos de estudo, suficientemente concretas, para que sejamos capazes de nos orientarmos, como cristãos, na vida social, que não é uma zona secundária da vida, ao lado duma vida espiritual pessoal que seria quase tudo, e é bem necessário traduzir esta reflexão em certas propostas (planos, programas, projectos…). O Compendium Recentemente, foi publicado o Compendium de Doutrina Social da Igreja, preparado pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz. Está bem feito, recolhe de maneira completa quase todos os ensinamentos e não somente económicos, mas ainda políticos e internacionais, tem o grande mérito de insistir fortemente sobre o Trabalho, antes das trocas económicas, tomando, neste aspecto, na prática, a direcção contrária do ensino corrente das escolas de comércio, muito pragmáticas e pouco humanistas. Entretanto não contesta muito vigorosamente a economia reinante, ainda que note alguns dos seus defeitos, inclusive o aumento das disparidades entre ricos e pobres que permite. Mais ou menos dois anos após a sua publicação, não criou um sulco muito profundo! Disse, mais de uma vez, pela minha parte, que é indispensável reabrir o “dossier” do capitalismo como tal (o que não é o liberalismo) – dum sistema em que um pequeno número controla, orienta e decide, em presença dum muito grande número daqueles que não têm senão o seu trabalho a trazer à vida económica, trabalho sempre precário, esse mesmo se é bem remunerado, e nunca decidindo (sofrendo, ao contrário as decisões). Simultaneamente, seria necessário colocar-se em medida de controlar o que é operação financeira puramente especulativa. Não é simples, seguramente, mas será bem necessário colocar na finança meios de descriminar entre o que é legítimo e o que não é. Enfrentando estas questões, colocar-nos-íamos, sem dúvida em situação de contestação, como mandaria o Evangelho face a um mundo de dominação dos fortes, dos poderosos, até dos hábeis sem escrúpulos. Não o somos de forma alguma, actualmente. Abrem-se, entretanto, novos campos É verdade que nem tudo é, talvez, mau num certo recuo da doutrina social, socio-económica, no sentido tradicional. Porque, excepto estas questões do capitalismo e das operações financeiras fora de todas as regras, não há talvez muito a inovar neste domínio. Ao contrário, existe na própria doutrina social, novos aspectos que indicam novos problemas a propósito dos quais o Cristianismo não é supérfluo de maneira nenhuma: e é isso, na minha opinião, que é necessário sobretudo desenvolver e aprofundar, hoje, com a participação de todos. Penso, em primeiro lugar, na resistência da Igreja face a concessões demasiado fáceis em matéria de guerra, de intervenções militares, de armamento nuclear. João Paulo II resistiu, nestes últimos anos, sobretudo perante duas coisas, de maneira obstinada: o desprezo do direito internacional, mesmo imperfeito, existente hoje com as Nações Unidas (desprezo do direito internacional e unilateralidade); segundo, a pretensão dum direito de intervir militarmente de maneira preventiva, num sentido muito largo do termo. E João Paulo II foi acompanhado, neste aspecto, não por todos os católicos certamente, mas corajosamente pelo conjunto dos bispos dos Estados Unidos (assim como do resto do mundo). Ele foi capaz, também de manter, para quem observasse bem as coisas, a ideia de que o mundo cristão não é inimigo do Islão ou do mundo muçulmano, qualquer que seja a reserva que se possa ter perante a maneira como são por vezes tratados os cristãos no mundo muçulmano. Penso, em seguida nas tomadas de posição da Igreja em matéria de migração e de tratamento dos migrantes. A Igreja não pensa que seja fácil organizar as migrações tendo em conta todos os aspectos das situações concretas, mas mantém firmemente certos princípios, expressos claramente por João XXIII na Pacem in Terris em 1963 e muitas vezes recordados depois: por um lado o refugiado político, uma pessoa a quem são recusadas no seu país as liberdades elementares, deve ser acolhido. Por outro lado, mais largamente, cito, “é um direito inerente à pessoa humana a faculdade de se deslocar para tal ou tal país onde espera encontrar condições de vida mais favoráveis para si e sua família; incumbe, por isso, aos governos, acolher os emigrantes e, na medida compatível com o bem real do seu povo, encorajar os que desejam integrar-se na comunidade humana “(Pacem in Terris 103-108). Está evidentemente em relação com o princípio geral de que os bens da terra são para todos os homens. E penso, simultaneamente, também em coisas que abordou, agora de maneira muito nova o Compendium de que falava há instantes. Trata longamente de questões que chamamos ecológicas ou de ambiente, do clima, entre outras,”um bem que é necessário proteger” e neste contexto, enuncia este importante princípio:”será necessário que seja dada uma atenção particular à questão complexa dizendo respeito aos recursos energéticos: os que não são renováveis, de que se servem os países altamente industrializados e os de industrialização recente, devem ser colocadas ao serviço de toda a humanidade”(nº470). Haverá muitas coisas novas a conceber em tais direcções, sabendo que, num mundo que não era ainda densamente ocupado pôde viver-se, mais ou menos com um sistema de “primeiro ocupante”, ou de ocupante simplesmente, mesmo que fosse por efeito de guerras e de aventuras de todo o género, sem relação com a justiça das repartições. Não é mais possível hoje, quando sobretudo populações numerosas vivem, ou apenas sobrevivem em terras áridas, afastadas, ainda para mais, de qualquer costa; lá é quase impossível encontrar meios de produzir mesmo com um trabalho assíduo. Será justo, por outro lado, que se tenha o monopólio de recursos energéticos consideráveis pela simples razão que se tem a sorte de estar a habitar lá onde estão concentrados? Há muito tempo (sobretudo depois de Pio XII, na segunda guerra mundial) que a Igreja diz que os bens da terra são destinados ao uso de todos, mas torna-se necessário que façamos propostas sobre o como quando tudo se torna mais escasso. E tenho consciência da amplitude do campo aberto, mas não há mais nenhuma alternativa a este esforço, quando a perspectiva é duma população humana de oito a dez biliões, dentro de alguns decénios. Podemos atender ao facto que uma primeira etapa foi alcançada, há alguns anos, quando se assinou o novo direito do mar consagrando uma propriedade internacional, devendo ser gerida por uma autoridade internacional, quanto aos “nódulos” polimetálicos espalhados pelo fundo dos oceanos. Começamos evidentemente, por tudo o que permanece, neste momento, de exploração problemática: é apesar de tudo significativo, trata-se duma primeira de principio capital, não podemos dizer mais que é um absurdo o colocar em tutela ou em propriedade internacional. A doutrina social da Igreja, mesmo se ela tem de se aplicar sempre a muitas coisas da ordem interna das nações, moveu-se, ultimamente na direcção sobretudo de questões internacionais, mas que não são, nem por isso, muito longínquas: uma justiça de razoável igualdade é a colocar em marcha nestes domínios. Não pode ser senão o facto de autoridades poderosas e imparciais, e pode acontecer que acreditemos cada vez menos, neste momento, na ideia duma autoridade mundial: percebe-se que ela se arrisca a ser controlada unilateralmente pelo facto da existência duma enorme potência hegemónica. Não existe, porém, outro meio de fazer face à situação senão voltar ao ponto de vista que enunciava já o Papa João XXIII em 1963: a ordem moral obriga-nos a estabelecer autoridades eficazes, ao nível onde se põem os problemas do bem comum. É, em muitas matérias hoje, ao nível do mundo inteiro. É novo mas temos de lhe fazer face absolutamente. Conclusão A doutrina social da Igreja, sem abandonar o terreno da organização económica e social, o da relação entre capital e trabalho, desenvolve-se agora, cada vez mais, nos domínios do acesso de todos os homens aos bens mais importantes e mais raros e no da abertura do mundo às populações em grande necessidade, quando recusamos ainda o mais que podemos, em plena política que se diz liberal, a livre circulação das pessoas. Importa, seguramente, que a autoridade da Igreja elabore novas e mais completas sínteses a este respeito. Mas importa agora que a Igreja toda inteira, todos os cristãos, reflictam nas formulações do novo direito, hoje indispensável para que a justiça se instale a estes níveis. É necessário que estes problemas sejam objecto de estudo aprofundado, de reflexão, de discussão, sem se dizer, como o fazemos demasiadas vezes ainda: eles são complicados, demasiado complicados para serem algum dia resolvidos. Não podemos, de facto, dizer nunca isso, sobre questões que estão na realidade às nossas portas. Deixem-me pronunciar uma vez ainda estas palavras: migrações, fontes energéticas não renováveis, intervenções militares, stocks de armas nucleares. Deixai-me, de resto, ajuntar também: capitalismo desigual, especulação financeira desordenada. E reparem que a Igreja começou ao menos a chamar a nossa atenção nestas direcções: doutrina social hoje, portanto.

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Agência ECCLESIA

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