«O Processo de Jesus» passou pelo Rivoli

Uma obra apologética, temporalmente marcada Numa organização da Paróquia do santíssima Sacramento, no Porto, com encenação de Júlio Couto e a interpretação de autores amadores, e com a acção dinâmica do pároco, Padre José Soares Jorge, foi (re)apresentada no Rivoli a obra de Diego Fabri O Processo de Jesus, ao longo de três sessões, cuja receita se destina à construção de uma casa de apoio social daquela paróquia, designada “Casa de Santa Marta”. Na primeira apresentação fizeram acto de presença os Bispos do Porto e de Lamego, o Bispo Auxiliar do Porto D. António Taipa, os vigários gerais da diocese, o director do Centro de Cultura Católica, entre outras personalidades. Para muitos foi a recordação de episódios antigos em torno da primeira representação desta peça no Porto, pelo então Teatro Nacional D. Maria II, onde pontificaram nomes como Palmira Bastos e Raul de Carvalho. O carácter inédito da construção e encenação da peça, com intervenções de actores surgidos do meio do público, perante um público pouco habituado a progressismos teatrais, foi mais evidente então do que hoje, quando o teatro já se concebe com maiores liberdades de encenação. 1. O Processo de Jesus, de Diego Fabri, é uma obra datada da década de 50 do século XX. É pois uma obra (como quase todas, poucas são as intemporais) marcada pelo tempo em que foi escrita. Reflecte as inquietações e as vivências da sua época e do espaço físico e cultural em que foi escrita. O período do pós-guerra, em Itália como na Europa, que saíra já há mais de uma década do período fascista, não apagara completamente a polémica em torno dos judeus e do judaísmo, debates emergente das teses absurdas de Hitler que conduziram aos campos de exterminação. Numa Itália de raízes cristãs e católicas, a questão do relacionamento entre as concepções cristãs e as concepções judaicas, o questionamento da relação de Cristo com os judeus e dos judeus com Cristo que era judeu, herdeiro da Promessa, nascido do povo da Aliança, e com o cristianismo, tinha que ser assumido, também na literatura, o tema sempre recorrente ao longo da história: quais as razões históricas e sócio-culturais e políticas que levaram à condenação de Jesus, pessoa que reconhecidamente tinha merecido a admiração das multidões e que “passara fazendo o bem”. Ressalve-se: as razões históricas, humanas, jurídicas, porque as razões teológicas, salvíficas, escatológicas, já desde a primeira pregação de Pedro tinham ficado esclarecidas: esse Jesus que vós condenastes Deus o ressuscitou dos mortos, e nós somos testemunhas de tudo isso (Actos do Apóstolos, cap. 2.º). Note-se que quem isto afirma é judeu como Jesus, era seu parente e recebeu a missão de confirmar na fé os seus irmãos. Esta é a dimensão essencial, a teológica, do processo de Jesus, que não é a mais visível na peça. Porém, como temos a inveterada tentação de reduzir tudo à simples explicação racional dos factos e à sua visibilidade imediata (em vez de procurarmos as suas raízes profundas e o seu sentido mais pleno), sempre queremos encontrar explicações “racionais” para os dados históricos. Ora muitas vezes as explicações racionais são as mais irracionais. 2. O Processo de Jesus, de Diego Fabri (1911-1980), dramaturgo que os críticos de influência marxista apelidavam de escritor burguês (contrapondo-lhe o seu contemporâneo mais jovem Dario Fo, esse sim escritor “popular”,”progressista”, autor de um teatro desmistificador das forças sociais), tornou-se uma das suas obras mais famosas e mais representadas, e que deu mesmo origem ao menos a um filme, o do espanhol José Luís Sáenz de. Heredia, que transpôs para obra fílmica O Processo a Jesus. Trata-se de uma drama construído ao estilo das novidades teatrais da época, quiçá influenciado pelas teses de B. Brecht sobre a função social e cultural do teatro que propugnavam um teatro com intervenção do público, um teatro participativo, “desconstruído”, de espaços móveis e intermutáveis (como aliás fizera já Gil Vicente, quatro séculos antes, como bem nota A. J. Saraiva). Drama dividido em dois quadros, cuja ligação é transmitida ao público pelas próprias personagens da obra. Estreou-se em 2 de Março de 1955 no Piccolo Teatro de Milão. O enredo da peça parte do projecto de um grupo familiar judaico que se reúne em sessões repetidas para tentar encontrar a verdadeira razão pela qual Jesus foi condenado à crucificação, esse rito condenatório e castigador da tradição romana, bárbaro e cruel, que não tinha tradição nas condenações ou castigos judaicos (entre os judeus, como agora ainda entre algumas tradições muçulmanas, o castigo homólogo era o apedrejamento, igualmente cruel e bárbaro – quiseram apedrejar a mulher adúltera, como apedrejaram o primeiro diácono da Igreja de Cristo, Estêvão, este por “blasfémia”. Cf. 7, 34 e sg). Não é um projecto novo nem literariamente original. Já o universal escritor russo Dostoievsky, seu contemporâneo (1821 – 1881), autor de obras como Crime e Castigo, ou Os Possessos ou Os Irmãos Karamazov, o escritor das profundezas da alma humana, da busca dos sentido da vida e da religiosidade imanente, fala de um célebre processo que teria tido lugar na Inglaterra no final do século XVIII, e que consisti, segundo parece, numa reprodução do julgamento a que foi submetido Jesus Cristo, realizado por homens de leis (advogados e juízes) daquela época. Esses juízes voltaram a condenar Cristo. Pode perguntar-se se foi um processo real, ou apenas uma ficção teatral. No entanto, já no século XX, um grupo de juízes anglo-saxões pôs em prática a mesma ideia e para dar maior realismo ao acontecimento e à acção suposta, realizaram o julgamento em Jerusalém, nos mesmos locais onde os factos originais terão acontecido. Nesta ocasião verificou-se a absolvição de Jesus. Parece que se conservam as actas deste julgamento, e que Diego Fabri se terá servido delas para trabalhar e organizar o seu O Processo de Jesus. 3. Está claro que a peça não é um tratado de exegese bíblica ou história, nem mito menos um tratado de teologia salvífica. Verifica-se no entanto que procura recolher e mesmo responder aos argumentos desenvolvidos pela crítica positivista: que os milagres foram sugestões, que os discípulos foram levados pela sedução pessoal ou projectos de ambição, ou pelas expectativas da restauração do reino de Israel. Surgem no entanto alguns dos dramas humanos mais profundos narrados no Evangelho: desde o mistério do nascimento, as dúvidas de José, a presença de Jesus no templo, o chamamento, as dúvidas e a traição dos apóstolos e o drama interior por eles vivido, particularmente os de Pedro e de Judas, a multiplicação dos pães, a conversão da mulher pecadora (por certo duvidosamente considerada como Maria, irmã de Lázaro), a cura do cego, a ressurreição de Lázaro, as motivações íntimas de cada um, a atracção do amor que transporta montanhas e determina as vidas… A primeira parte inscreve-se pois numa tentativa de interpretação dos dados evangélicos, e não traz novidade nem dramática nem temática. Transposição para o presente Mais interessante é a segunda parte: porque aqui o autor, recorrendo à intervenção de personagens colocadas na plateia, produz um questionamento através da presença de várias figuras sociais: um padre (inicialmente disfarçado), um jornalista, um filósofo, a mulher ou amante do filósofo. Os argumentos esgrimidos podem resumir-se assim: se a doutrina pregada por Jesus possui tanta grandeza e tanta força, por que razão os cristãos não transformam o mundo? Eis a antiga questão, que continua actual. Tudo se conclui na intervenção da velha que limpa o teatro, cuja tese se pode tam,bém resumir assim: eu não entendi nada do que estiveram a discutir; só sei que cá dentro do coração esta fé ou presença de Jesus me dá consolação e esperança… E beija as mãos de Maria. Outro dos dramas propostos é o drama interior dos próprios juízes: afinal o acusador também está marcado pela contradição entre a sua tradição e uma aproximação às palavras de Cristo. No fundo a atitude acusatória que desempenha é um reflexo da sua vida… Todos os acusadores profissionais são espelhos de si próprios. O final é uma absolvição pressentida. A encenação e a acção dos actores reflecte o que ela foi na sua intenção e na sua génese: um trabalho generoso, voluntário, dedicado, e feito com garbo e entusiasmo. Há personagens mais salientes, tanto pela acção como pela representação: o presidente do tribunal (Ernesto Campos), o acusador (…..), Judas – e haveria que interpretar a saliência dada na peça ao papel de Judas (….); o papel final da senhora da limpeza (…) acaba por ser determinante, pelo seu tom intimista e de sentimentalidade simples. Por isso uma das acusações ou lamentos que incidem sobre esta peça e o seu carácter apologético é o de assentar a sua tese nos aspectos pessoais e nas vivências sentimentais, mais que nos fundamentos lógicos, filosóficos ou teológicos do cristianismo, muito menos nos aspectos bíblicos ou salvíficos.

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