«O problema não é adoção. As famílias é que precisam de ajuda» – Sandra Anastácio

Centro de acolhimento, em Lisboa, dá colo, carinho e casa a bebés e crianças desprotegidas

Desde que abriu portas, há quase 24 anos, já acolheu mais de 400 crianças, dos 0 aos 3 anos, em situação de risco ou abandono. Em outubro inaugurou uma nova casa, já com capacidade para receber crianças mais velhas e a necessitar de cuidados de saúde.

Foto: Lusa

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Está a decorrer a campanha solidária ‘darcolo.ajudadeberco.pt’, que tem ajudado a “encher” a nova casa que se situa em Benfica. Este já vai ser um Natal diferente?

Infelizmente, ainda não. Acabamos a construção da casa, de facto, e inauguramo-la em outubro, mas é importante agora mobiliá-la. Há uma parte que já conseguimos fazer, a parte dos escritórios, que vai ser ocupada pelos adultos; desta vez, também gostaríamos muito que as crianças, para além da casa nova, também tivessem as coisas que vão usar, como as camas – e algumas destas camas são especiais, porque são camas-articuladas, para as crianças doentes. E que fossem coisas novas. Portanto, é essa a campanha que estamos a fazer, está a correr bem, mas ainda está longe de se conseguir mobilar a casa.

Estamos a fazer agora está força aqui, dos últimos dias do Natal, para ver se o Menino Jesus nos dá um aconchego maior e em janeiro, fevereiro, conseguimos estar todos na casa nova.

 

A ideia será ficar a funcionar em pleno já no arranque de 2022…

Sim. Também depende da licença da Câmara, que ainda não aconteceu, e da autorização de transferência da Segurança Social, mas eu estou otimista, acho que no primeiro trimestre estaremos na casa nova.

 

Com a nova casa vão dar resposta a uma realidade também nova, que é cuidar de crianças que sofrem de doenças crónicas ou agudas e precisam de cuidados de saúde. É um passo em frente e um grande desafio em relação ao que já faziam?

Na verdade, esta não é uma realidade nova, a Ajuda de Berço, ao longo dos anos, tem tido esta audácia de ficar com as crianças – costumamos dizer assim -, as crianças mais difíceis, as crianças que ninguém quer, aquelas que têm mais problemas de saúde, e que estão em situação de abandono.

Acontece que, ao longo destes 23 anos, nós não temos conseguido ter tanta resposta para este tipo de crianças. Temos, nas nossas casas, sempre duas, três crianças nestas circunstâncias, porque são aquelas a quem nós, com a equipa que temos e com as casas que existiam até agora, conseguiríamos dar uma resposta de qualidade.

Esta casa vai permitir acolher 15 crianças com estas caraterísticas. O desafio é este, dar uma resposta mais eficaz, mais qualitativa e quantitativa a crianças com estas caraterísticas.

 

Esta casa era um sonho antigo da vossa instituição. Há quanto tempo é que perceberam que tinham de dar resposta a estes casos? Recebiam pedidos nesse sentido?

Sim, porque uma casa que tem a missão que tem e que tem os valores que tem – quando nos fundamos, em 1998, tínhamos por base esta máxima da Madre Teresa de Calcutá, ficar com as crianças que ninguém queria.

Infelizmente, as crianças que ninguém quer são estas, que estão mais frágeis, mais vulneráveis, e que têm mais problemas de saúde.

 

As crianças ficam mais desprotegidas à medida que crescem? Há menos soluções para essas faixas etárias?

É um facto, nós temos muito medo da bagagem que as crianças trazem. Quer dizer, as pessoas têm a ilusão de que quando adotam uma criança bebé, que ela não tem bagagem e tem na mesma

Uma criança com seis, sete, oito anos já tem uma bagagem mais pesada – de abandono ou de maus-tratos , mas sobretudo de abandono, da ferida de abandono – e isso é uma coisa que nós assusta a todos, muito. Mas eu gosto sempre de ver as coisas ao contrário: quem quer fazer a diferença na vida de uma criança, é nestas crianças que estão mais desprotegidas e vulneráveis. São o verdadeiro desafio e as que precisam mais do nosso amor e da nossa atenção.

 

Foto: Agência ECCLESIA

Está prevista para esta nova valência a colaboração de técnicos de saúde, como médicos, enfermeiros e terapeutas. Isso já está assegurado?

Estão assegurados dois ou três técnicos da área da enfermagem e terapeutas. Médicos não encontramos necessidade disso, porque estas crianças – as que já estão na Ajuda de Berço e as que vamos querer acolher – são crianças que, numa situação normal, viveriam numa casa de família. A Ajuda de Berço é exatamente a mesma coisa, não é um hospital, elas não precisam de estar internadas nem de cuidados hospitalares – quando forem precisos, recorre-se a esse tipo de instituições.

Dou sempre o exemplo da diabetes, que é uma doença com alguns cuidados, mas que não são cuidados de enfermagem. São alguns cuidados de saúde, que nestas crianças em situação de abandono, comprometem a sua integração numa família, ou de adoção ou na família de origem, que devido a todas as vulnerabilidades, não consegue fazer face à prestação de cuidados de que a diabetes precisa.

Esta é uma situação muito comum, mas posso falar também da paralisia cerebral: estas crianças podem, perfeitamente, viver numa casa de família, se for possível, nas famílias biológicas ou nas famílias de adoção.

 

A nova casa vai receber os bebés que estão no centro de acolhimento da Avenida de Ceuta, e ter esta nova valência, para crianças mais velhas. Qual é a capacidade?

A casa tem capacidade para 35 crianças e o nosso objetivo é transferir os 20 bebés que estão na casa da Avenida de Ceuta, porque já não apresenta condições dignas para acolher crianças – está muito estragada, é uma casa com 23 anos, na altura não havia as exigências que hoje há, no que diz respeito às infraestruturas de acolhimento de crianças. Depois, tem uma valência com 15 vagas para estas crianças.

 

Têm, ainda, a nova casa de Monsanto. Ao todo quantas crianças acolhem nas várias casas, neste momento?

Em Monsanto estão 20 crianças e este acolhimento também irá manter-se, são crianças mais crescidas. A partir dos 3 anos, até aos 14. Nós, atualmente, temos as crianças misturadas entre os dois centros de acolhimento; de futuro pretendemos é ter, na casa nova, os bebés que transitam da Avenida de Ceuta para Benfica, com a valência das 15 crianças com doença crónica, em situação de abandono; e, em Monsanto, crianças mais crescidas, sem problemas de saúde e que esteja a ser estudado o seu projeto de vida – ou integração na família biológica ou encaminhamento para adoção.

 

As crianças que recebem são encaminhadas pelos tribunais ou segurança social. São sempre situações muito complicadas?

Sim. As crianças que entram na Ajuda de Berço e em qualquer centro de acolhimento temporário, em qualquer casa de acolhimento residencial, a designação de hoje em dia, são crianças que têm um processo judicial em tribunal de família e de menores. É este que decreta a retirada da criança, quase sempre para que seja estudada a família e ajudada. Depois de provada na Justiça a incapacidade da família, é decretada a integração numa família de adoção ou numa família de acolhimento.

A admissão das crianças na Ajuda de Berço é feita sempre através da Segurança Social, da gestão de vagas – assim se chama o serviço.

 

Nestes mais de 20 anos já acolheram mais de 400 crianças, dos 0 aos 3 anos, um período fundamental para o desenvolvimento, muitas estão já na idade adulta. Mantêm contacto? Há algum caso de sucesso que queira aqui lembrar?

Sim, há muitos casos de sucesso, mantemos contacto com algumas, embora diga sempre que manter contacto com as crianças, se isso não for para elas, não fazemos questão que aconteça. Tem de fazer sentido para as crianças. Agora, dá-nos muita alegria, como nesta altura do Natal, ver crianças que vêm à Missa ou simplesmente desejar-nos um Bom Natal, passam só para fazer uma visita, lembrar o quarto onde cresceram, isso é sempre muito compensador. É sinal de que o tempo que estiveram aqui, embora não tenha sido por bons motivos, lhes deixou, no mínimo, boas memórias dos cuidados que aqui tiveram. De facto, isso muito satisfatório.

 

Portugal foi um de 9 países europeus onde decorreu este ano a campanha ‘Primeiros anos, a nossa prioridade’ (First Years First Priority), e no caso português um dos problemas detetados foi o elevado número de crianças institucionalizadas, nomeadamente bebés. Isto revela que o poder político não tem olhado como devia para esta questão, não agilizando por exemplo os processos de adoção? O que é que está a falhar em sua opinião?

Eu acho que o problema não está nos processos de adoção, o problema está nas dificuldades das famílias. De facto, a maior parte das crianças que estão institucionalizadas não são encaminhadas para adoção, as famílias é que precisam de ajuda.

A crise económica que atravessamos, há décadas – porque não podemos dizer que isto é fruto da pandemia de Covid-19, não é, há décadas que Portugal atravessa uma profunda crise económica e de habitabilidade, de trabalho. As pessoas com filhos não conseguem fazer face às dificuldades. Associa-se quase sempre a isto: a algumas adições, alguns problemas de saúde mental. E enquanto nós não formos à base do problema, que são as famílias, a saúde, a habitação, o trabalho, vamos ter sempre crianças a sofrer, em Portugal ou no resto do mundo.

Isto, para mim, é que é o verdadeiro problema, não é a adoção, esta surge depois, quando as crianças já não têm família biológica capaz de tratar delas. Ora, nós temos de ir à família biológica.

 

É consensual que nos primeiros anos se joga o futuro. A ‘Ajuda de Berço’ tem tido as ajudas necessárias para dar resposta adequada às crianças que acolhe?

Sem dúvida. A Ajuda de Berço depende há 23 anos da sociedade civil e o povo português tem sido de uma generosidade enorme – na verdade, a generosidade é para as crianças que a Ajuda de Berço acolhe, é assim que a coisa fica bem dita. E somos um povo muito solidário, muito preocupado com o próximo, esta é uma verdade irrefutável, para mim. O bom seria que não fosse necessário nada disto…

 

Há discussão na sociedade portuguesa sobre a melhor forma de enquadrar as crianças nas situações de risco – se a via da institucionalização ainda é a melhor resposta, ou se se deve apostar no enquadramento familiar. Que apoios concretos faltam às famílias?

Saúde, habitação e trabalho. São estas três variáveis. Temos problemas sérios de saúde mental, problemas seríssimos, e finalmente, graças à pandemia, começamos a olhar para a saúde mental das pessoas, em particular, das famílias, em conjunto, e das instituições. Sem isto, não há nada.

Depois, vem a falta de trabalho e as duas coisas estão ligadas; e a falta de habitação, a maior das pessoas em Portugal precisa de recorrer a este apoio institucional é porque não tem uma casa.

 

A ideia será sempre que o foco da questão esteja no trabalho com as famílias de origem…

Sem dúvida. Não podemos olhar para as crianças – como não podemos olhar para os idosos, para os sem-abrigo – sem a família. E o problema é que nós nunca olhamos para a família. Nós olhamos para o problema de uma criança abandonada, uma criança negligenciada, mas esta criança vem de uma família, representa uma família. E eu gosto muito de dizer que quando falo de 425 crianças que a Ajuda de Berço já acolheu, na verdade estou a falar de 425 famílias onde a Ajuda de Berço interveio. E isto é muito sério, quando falamos nestes termos.

 

Foto: Agência ECCLESIA

A ‘Ajuda de Berço’ funciona como família de acolhimento?

A Ajuda de Berço pretende que as crianças se sintam numa casa de família. Mas a Ajuda de Berço não é uma família, é uma casa de acolhimento residencial, que defende e promove um ambiente familiar.

 

Já afirmou que ‘ninguém é mãe de substituição’, e assume-se como cuidadora. É uma grande responsabilidade?

É, é a responsabilidade maior de todas: naquele tempo provisório da vida de uma criança, temos de cuidar dela, como se mãe fôssemos, mas garantindo àquela criança que a mãe ainda está para vir ou que a mãe vai estar pronta daqui a um tempo (14:50). E a responsabilidade de todos nós, da Ajuda de Berço, das instituições que trabalham em articulação com a Ajuda de Berço, é olhar para esta mãe que, neste momento, não o consegue ser – estou a falar da mãe, mas estou a falar também do pai, os avós, os tios, até a família alargada, porque muitas destas crianças podem ser apoiadas por essa família alargada. A Ajuda de Berço e os cuidadores da Ajuda de Berço são só isto, cuidadores que têm de ser muito competentes, muito cautelosos e muito exigentes no trabalho que fazem.

 

E que no Natal procuram levar colo e afeto a estas crianças desprotegidas…

Eu digo sempre que o Natal na Ajuda de Berço é todos os dias, o Natal para nós só se torna diferente, este mês de dezembro, porque as pessoas olham mais para nós e são mais solidárias para com as crianças. O Natal na Ajuda de Berço faz-se todos os dias, o presépio está ali presente sempre: a fragilidade, a vulnerabilidade, a pobreza e a disponibilidade de quem abraça estes Meninos Jesus que chegam à Ajuda de Berço.

 

A instituição trabalha em parceria e articulação com outras instituições que ajudam a reerguer as famílias. Há boa colaboração a este nível?

Sem dúvida, quem faz as instituições são as pessoas. Hoje em dia, a intervenção técnica já tem um nível de exigência bastante bom e, portanto, há um foco muito importante na articulação entre estas instituições. Essa é uma exigência que nós, técnicos, nunca podemos deixar cair. Não basta que a Ajuda de Berço faça um bom trabalho, é preciso que a Segurança Social faça um bom trabalho, uma associação de apoio às mães, aos pais, aos sem-abrigo, aos toxicodependentes, porque são apoios fundamentais para estas famílias. A comunicação aqui, as mãos dadas, são muito importantes; o problema é quando alguma destas instituições fica mais preocupada consigo própria, com o seu umbigo, o seu sucesso, e se esquece da articulação.

 

Já falamos da campanha ‘dar colo’, destinada a equipar a nova casa da Ajuda de Berço, e que pode ser acompanhada nas redes sociais. Como é que se pode apoiar a instituição?

Desde já, através destas campanhas nas redes sociais, que no fundo é um contributo em dinheiro. Depois, espero que brevemente possamos receber outra vez voluntários e o voluntariado é uma forma de ajudar. E quem não tem capacidade de poder ajudar, pode divulgar a campanha. Também se pode ajudar, fornecendo a lista de produtos que nos vão fazendo falta, que vamos sempre divulgando. Se as pessoas estiverem atentas às nossas redes sociais – e hoje quase todos temos acesso a elas – é muito fácil perceber a forma de ajudar.

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Agência ECCLESIA

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