Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa
Uma conquista da civilização
1. Verdadeira conquista de uma civilização assente no primado da pessoa e dos seus direitos fundamentais – assim nos parece dever ser considerado o reconhecimento do direito à objeção de consciência.
Esse reconhecimento é um corolário do respeito pela liberdade de consciência. Esta está estreitamente ligada à liberdade religiosa, mas não se confunde com ela e diz respeito a pessoas crentes e não crentes. A liberdade de consciência é reconhecida pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (no seu artigo 18.º). O direito à objeção de consciência é reconhecido em termos amplos na Constituição da República Portuguesa (no seu artigo 41.º, n.º 6), a qual se reveste, neste aspeto e no confronto com as Constituições de outros países, de notável pioneirismo.
Por isso, é com preocupação que assistimos a ameaças que podem representar um verdadeiro retrocesso dessa conquista da civilização. É, então, oportuno clarificar o alcance e sublinhar o valor e importância desse direito.
2. O direito à objeção de consciência está consagrado no artigo 41.º, n.º 6, da Constituição portuguesa: «é garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei». Trata-se de um corolário da liberdade de consciência, religião e culto, a qual se caracteriza como «inviolável» no n.º 1 do mesmo artigo. O exercício desse direito pode decorrer de convicções religiosas, mas mais amplamente de ditames de consciência, não necessariamente ligados a essas convicções. E pode ser também considerado um corolário do respeito pela integridade moral das pessoas, que o artigo 25.º, n.º 1, do mesmo diploma também define como «inviolável».
3. Estatui, por seu turno, o artigo 12.º, n.º 1, da Lei da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho): «A liberdade de consciência compreende o direito de objetar ao cumprimento de leis que contrariem os ditames impreteríveis da própria consciência, dentro dos limites dos direitos e deveres impostos pela Constituição e nos termos da lei que eventualmente regular o exercício da objeção de consciência». E o n.º 2 desse artigo: «Consideram-se impreteríveis aqueles ditames de consciência cuja violação implica uma ofensa grave à integridade moral que torne inexigível outro comportamento».
4. Como concretização desse direito de ordem geral, várias leis vigentes entre nós reconhecem-no em âmbitos específicos: o serviço militar (artigo 276.º, n.º 4, da Constituição e Lei n.º 6/85, de 4 de maio), o aborto (artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril), a procriação medicamente assistida (artigo 11.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho) e o testamento vital (artigo 9.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho). Também o reconhece, no seu artigo 21.º, a Lei n.º 22/2023, de 25 de maio, relativa à eutanásia e ao suicídio assistido[1].
O peso e a importância do direito à objeção de consciência
5. Sobre o direito de objeção de consciência, afirma, no seu n.º 399, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (citando a encíclica Evangelium Vitae, de São João Paulo II): «O cidadão não está obrigado em consciência a seguir as prescrições das autoridades civis se forem contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho. As leis injustas põem os homens moralmente retos frente a dramáticos problemas de consciência: quando são chamados a colaborar em ações moralmente más, têm a obrigação de se recusarem. Além de ser um dever moral, esta recusa é também um direito humano basilar que, precisamente por isso, a própria lei civil deve reconhecer e proteger: “Quem recorre à objeção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e profissional”».
6. Uma clara e profunda visão da consciência é-nos dada pela Constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II: «No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus: a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (GS 16).
7. Estas definições, da lei civil e da doutrina católica, ajudam-nos a compreender o peso e importância da liberdade de consciência (e do direito à objeção de consciência como seu corolário) no confronto com outros direitos e deveres. O domínio da consciência é o da mais acentuada intimidade e das mais relevantes opções existenciais e éticas da pessoa. Está estreitamente ligado à sua integridade moral e à sua dignidade. Forçar uma pessoa a agir contra a sua consciência será uma das mais graves ofensas à sua integridade moral e à sua dignidade. Ser forçado a agir contra a sua consciência é, para a pessoa, mais grave do que muitos outros atentados à sua liberdade, à sua integridade física e saúde, à sua honra ou ao seu bem-estar.
8. É sintoma dessa importância que o direito à objeção de consciência tenha começado por afirmar-se, em muitos ordenamentos jurídicos, em relação ao serviço militar obrigatório. O dever do serviço militar decorre de exigências de sobrevivência da comunidade política e envolve a assunção do risco de perda da vida, assim como uma forte limitação da liberdade pessoal. Mesmo perante esse tão forte dever, porque não podem ser desprezadas razões de consciência igualmente fortes, pode ser invocada a objeção de consciência.
9. A objeção de consciência traduz uma postura de grande elevação no plano ético, não pode confundir-se com qualquer oportunismo, falta de sentido cívico, subjetivismo individualista ou desrespeito anárquico da autoridade do Estado. Não se trata de desobedecer a uma lei de que se discorda no plano político ou ideológico. Estão em jogo «ditames impreteríveis da própria consciência» (como afirma a Lei da Liberdade Religiosa no artigo acima transcrito). O objetor de consciência não é desobediente, é obediente a uma Lei superior, uma Lei que não depende da sua opinião ou da sua vontade, uma Lei que lhe é anterior e de que não é autor (para os crentes a voz de Deus, como lapidarmente afirma a Gaudium et Spes nas frases acima citadas).
10. Por isso mesmo, o objetor de consciência está disposto (e esse é um sinal da autenticidade e coerência da sua atitude) às maiores agruras e aos maiores sacrifícios (até da própria vida) para ser fiel à sua consciência, a essa Lei superior. Vejam-se os exemplos de muitos mártires ao longo da história da Igreja, desde os seus primeiros tempos até hoje. Veja-se, entre muitos outros, o luminoso exemplo de Franz Jägestätter, um camponês austríaco (beatificado em 2007) que, por razões de consciência, recusou prestar fidelidade a Adolf Hitler (em quem via incarnada a subversão completa dos valores cristãos) e assim servir o exército nacional-socialista, recusa que lhe custou a vida. Veja-se o exemplo do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que viu comprometida a sua carreira profissional por ter sido fiel a um dever de consciência que salvou muitas vidas. Veja-se, noutro plano, o exemplo de Balduíno, Rei dos Belgas, ao abdicar das suas funções por um dia para não assinar a lei que liberalizou o aborto, assumindo, desse modo, o risco de a sua atitude poder ser motivo para que fosse exigida a sua abdicação a título definitivo.
11. Através da sua atitude, o objetor de consciência não visa boicotar a aplicação de uma lei de que discorda, sabe que outra pessoa no seu lugar a aplicará. O que pretende é evitar ser cúmplice do que para ele representa o Mal, é evitar a ofensa à sua integridade moral em que se traduz uma atitude contrária aos «ditames impreteríveis da sua consciência». Certamente pretenderá alterar essa lei que para ele representa o Mal, mas sabe que para essa alteração terá de recorrer aos normais instrumentos de um regime democrático.
Um direito que deve ser reforçado, e não negado ou limitado
12. O valor e importância do direito à objeção de consciência tem particular acuidade em matérias relativas à inviolabilidade da vida humana. Quando a inviolabilidade da vida humana é afetada, os ditames da consciência são realmente impreteríveis. Daí o particular relevo desse direito no âmbito da prática do aborto e da prática da eutanásia.
13. No entanto, o campo de aplicação desse direito é, ou deve ser, mais alargado, seja por eventual aplicação direta da Constituição, ou pelo seu reconhecimento através de leis específicas.
Há que ter em conta, desde logo, questões relativas à liberdade de culto e de outras práticas religiosas de diferentes credos sempre que não sejam contrárias à dignidade da pessoa.
14. A este propósito, merece também o nosso respeito e a nossa solidariedade o exercício do direito à objeção de consciência por parte de pessoas movidas por convicções religiosas diferentes das da doutrina católica, socialmente minoritárias entre nós. Nessa linha, é de louvar o regime do artigo 14.º da Lei da Liberdade Religiosa, relativo à dispensa de trabalho, exames ou de aulas em dias dedicados ao repouso e ao culto por determinadas comunidades religiosas (prevendo a compensação das faltas respetivas).
15. Há que atender, por outro lado, a questões relativas ao primado da família no campo da educação e ensino, primado reconhecido no artigo 26.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Práticas baseadas na ideologia do género, de cirurgias de redesignação sexual, terapias hormonais de afirmação de género e bloqueadores da puberdade suscitam graves questões de ordem ética que justificam a objeção de consciência de profissionais de saúde. O mesmo se diga de práticas de manipulação genética que se anunciam para o futuro próximo.
16. Por outro lado, o direito à objeção de consciência, como os direitos humanos, em geral, vincula entidades públicas, mas também privadas (como decorre do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). Tal implica que esse direito possa ser invocado em relações de trabalho, pelo trabalhador perante o empregador.
17. Corolário do direito à objeção de consciência é o direito de não sofrer prejuízo ou discriminação pelo facto de se exercer esse direito. É o que resulta do princípio da igualdade e não discriminação consagrado no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição portuguesa. E também, no que se refere especificamente à liberdade religiosa (com frequência associada à objeção de consciência), no artigo 2.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa: «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever, por causa das suas convicções ou práticas religiosas».
18. Tal significa, por exemplo, que não pode um médico objetor ser prejudicado no acesso ou promoção na sua carreira de obstetra ou ginecologista pelo facto de não praticar abortos. Não vale, pois, para este efeito, alegar que o objetor de consciência deveria escolher outro emprego, conforme à sua consciência. Tal significaria limitar também, além da liberdade de consciência, a liberdade de escolha de profissão e o direito ao trabalho. Significaria aceitar uma discriminação em razão das convicções religiosas e/ou morais.
19. A liberdade religiosa (e a liberdade de consciência a ela estreitamente ligada) tem uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão comunitária e institucional. Titulares do direito respetivo não são apenas pessoas, mas também comunidades religiosas. É verdade que a consciência assume uma dimensão fundamentalmente pessoal. Mas por detrás de qualquer instituição estão fins que refletem opções éticas (de consciência, portanto) das pessoas que a iniciaram e que prosseguem esses fins em conjunto, como obra coletiva que tem uma identidade própria ligada a esses fins e a essas opções éticas. Assim, atenta contra essa dimensão coletiva e institucional da liberdade de consciência obrigar um estabelecimento de saúde a autorizar que nele se pratiquem atos contrários, no plano ético, ao ideário que está na base da sua fundação e que inspira toda a sua atividade.
20. É com preocupação que assistimos a ameaças que podem representar um verdadeiro retrocesso desta conquista da civilização que representa o direito à objeção de consciência. Foram recentemente apresentadas entre nós propostas legislativas que poderiam ser interpretadas como grave limitação desse direito no âmbito da prática do aborto. Nessa linha, foi também aprovada uma resolução do Parlamento Europeu.
21. Suscita preocupação que se pretenda sobrepor o pretenso direito à prática do aborto ao direito à objeção de consciência; que profissionais de saúde que invoquem a objeção de consciência possam, por esse motivo, ser de algum modo prejudicados, designadamente na sua carreira; que se pretenda restringir a objeção de consciência quanto à prática do aborto apenas ao âmbito pessoal, não o reconhecendo a instituições como tais (um estabelecimento de saúde católico, por exemplo).
22. O direito à objeção de consciência reflete o primado da pessoa, e sua dignidade, sobre o Estado e a autoridade do direito positivo. Um Estado que se funda na dignidade da pessoa humana reconhece, consequentemente, o direito à objeção de consciência, como não sucederia num regime de totalitarismo político. Quando celebramos os cinquenta anos do regime democrático, é oportuno salientar como um dos seus frutos mais valiosos o da mais plena salvaguarda da liberdade de consciência, religião e culto, onde se insere o direito à objeção de consciência (em cujo reconhecimento em termos amplos é até pioneira a Constituição portuguesa). Abolir ou limitar esse direito será sempre uma lamentável regressão.
Fátima, 1 de maio de 2025
[1] A entrada em vigor desta Lei depende de regulamentação. O Tribunal Constitucional declarou, entretanto, a inconstitucionalidade de algumas das suas normas, entre elas, precisamente a que impunha ao profissional de saúde o ónus de especificar as razões que motivam a sua atitude.