O Presépio do Silvestre

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Naquele Dezembro o Silvestre andava mais entusiasmado que nunca. Aliás, ele andava cada ano com maior entusiasmo quando se aproximava o Natal. Mas, naquele ano, tinha entrado na escola e a escola era um outro mundo.

A sala da escola do Silvestre havia sido enfeitada com uma árvore de Natal cheia de estrelas, bolas de mil cores e outros enfeites. As janelas agrinaldadas com fitas, estrelas e sinos num colorido variado e brilhante. No vidro maior da janela principal, havia sido colocada a figura do Pai Natal. Nas costas trazia um enorme saco. Vinha tão cheio que aquela figura de bigode e barbas brancas se encontrava encurvado, como que a aguentar, com dificuldade, o peso de tão enorme carga. E na escola já ninguém perguntava o que o Pai Natal levava em tão grande sacola. Todos sabiam que eram presentes. Presentes a fingir, como era a fingir aquele Pai Natal da vidraça central da escola. O Pai Natal verdadeiro encontrava-se no centro comercial da vila, sentado num cadeirão de ouro a prometer presentes, enquanto, risonho e com gargalhadas do outro mundo, se deixava fotografar com as crianças que aparecessem. E, se crianças não apareciam, com a mão direita elevava o sino, também de ouro, a chamar por elas. E verdade é que vinham. Não tivessem elas andado com os pais, de montra em montra, a alimentar os seus sonhos!

O Silvestre, que colaborara com entusiasmo na decoração da sala, foi aparecendo, depois, cada vez mais triste. Na escola ficou a faltar o presépio. É verdade que ele, vencendo a natural timidez, ainda apontou essa falha e sugeriu uma instalação com os recursos disponíveis na cerca. Mas não encontrou correspondência na maior parte dos colegas. Só três foram excepção: um menino e duas meninas. A própria professora recusou a ideia de um presépio na escola, invocando a tradição. Não era costume, dizia ela, para desilusão do Silvestre e daqueles três companheiros. Nem aqueles rostos, feitos de meiguice triste, convenceram a professora. «Não é costume», dizia marcando bem cada palavra e cada sílaba.

«Tem de haver um presépio, na nossa escola», ia repetindo cada dia o Silvestre para aqueles três companheiros. E os três iam concordando. Mas como?

A professora tinha proposto a realização de um lanche natalício. Cada um poderia contribuir com o que pudesse e quisesse. A ideia foi aprovada por unanimidade da assembleia geral da turma. E o lanche ficou logo agendado para o último dia de aulas daquele frio Dezembro.

Um dia, no recreio da manhã, num cantinho da cerca escolar, fizeram um conciliábulo aqueles quatro amigos. A vigilante, estranhando aquele recolhimento de quatro crianças no meio da algazarra do recinto, ainda os ia surpreendendo. Olhou, observou e perguntou qualquer coisa sem importância. Sem chegar a ouvir a resposta, virou as costas e deixou em paz as inocentes crianças.

E a reunião continuou. Delinearam um plano, distribuíram tarefas e, em segredo, cada uma foi realizando o seu trabalho. Como gente grande, conscientes da sua responsabilidade, realizavam, de vez em quando, rápidos encontros na casa dos pais do Silvestre para todos se inteirarem do andamento das coisas e realizarem tarefas comuns.

E o último dia de aulas chegou. Era um dia do lanche. Cada criança, em vez da habitual bolsa com o material escolar, trazia, numa cestinha, numa bolsita ou num embrulho, a iguaria natalícia que a mãe lhe havia preparado. E a variedade era grande, como se tivesse havido uma perfeita combinação: pães de leite, sonhos, rabanadas, filhoses, bolo rei, bolachas de todos os tipos. E não faltaram as adequadas bebidas a condizer. Tudo ia sendo colocado numa extensa mesa instalada para o efeito com a ajuda da vigilante. Enfeitada, a condizer.

Faltavam os quatro amigos e a professora já se preparava para assinalar as suas faltas. Houve, então, um toque suave na porta da sala que ninguém ouviu. Lá dentro o entusiasmo era ensurdecedor. Houve um segundo toque, suave também, e nada. Lá dentro já se cantava com entusiasmo. Fez-se, então, um silêncio na sala. Ia falar a professora e todos deveriam prestar a devida atenção. Houve, então, um terceiro toque. Suave e delicado como os outros dois. No silêncio, ouviu-se em toda a sala. E fez-se ainda maior silêncio. A respiração ficou suspensa por momentos.

Abriu-se a porta e, receosos como quem é apanhado em falta, pedem licença para entrar e compreensão pelo atraso. O último a entrar foi o Silvestre abraçado a um grande embrulho revestido de papel dourado, enfeitado por uma fita vermelha que terminava num laço na parte superior.

– É o nosso contributo. Abra. – Dizia o João enquanto entregava à Professora aquele inesperado embrulho. Misterioso mesmo, para a professora e, particularmente, para todas as crianças que não levantavam os olhos daquele objecto que aparentava ser um grande presente. E já iam comentando, uns com os outros, que a professora estava num dia de sorte. Só os quatro se encontravam ansiosos por conhecer a reacção da professora e dos companheiros.

Com a ajuda do Silvestre, a professora desfez o laço vermelho, e, enquanto ia retirando o papel dourado, foi aparecendo uma caixa de cartão que ia abrindo cautelosamente. A descoberta foi sendo realizada. E logo, para surpresa da professora, aclamada com uma salva de palmas de todo o grupo. Era um presépio. O chão era uma tabuinha velha; as paredes eram de vimes de videira entrançados toscamente; o tecto, de vimes também, estava coberto com musgo fresquinho acabado de arrancar de um barroco que parecia nunca ter visto o Sol. Lá dentro três pedras, mal-amanhadas, mas trabalhadas com carinho, representavam as três figuras da família sagrada. «Foram as melhores pedras que encontrámos no campo de carvalhos despidos», dizia o Guilherme como que a pedir compreensão para a imperfeição da obra.

Quando o presépio foi colocado no centro da mesa, o Guilherme, abre uma pequena caixa. Era uma vela vermelha de onde sobressaíam quatro algarismos a assinalar dois milénios. Acesa a vela, todos cantaram os parabéns de Natal ao Menino nascido há mais de dois mil anos.

A festa continuou com a vela acesa e todos iam mirando aquela gruta tosca, enquanto iam saboreando o Bolo Rei que serviu de bolo de aniversário.

A festa terminou, mas o presépio ficou na escola, numa mesa em lugar de destaque.

As férias passaram e as crianças, já em Janeiro, regressaram à escola. Surpresa das surpresas. O presépio lá se encontrava, mas com as três pedras trabalhadas com cinzel de mestre. A notícia espalhou-se na vila e logo a escola passou a ser local de peregrinação todos os anos pelo Natal. E em cada ano foram surgindo novas figuras. Primeiro os pastores, depois os magos e depois muitas outras. O presépio ia aumentando de dimensão de ano para ano. A sala já não chegava. A pequena cabana, feita de vime com as figuras de pedra, passou a ser exposta no recinto exterior da escola. Agora todo ele se transforma cada ano num imenso presépio que cobre todo aquele espaço. E os peregrinos aparecem cada vez em maior número.

Nunca ninguém soube quem cinzelou aquelas pedras, mas toda a gente diz que a vila foi abençoada e que possui o maior presépio do mundo.

Guarda, 13 de Dezembro de 2022

 

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