António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
“Eutrapelia”, eis uma palavra que raramente é ouvida ou lida e cujo significado escapará a muitos leitores. Como outros termos estranhos portugueses, “eutrapelia” fala grego. Seja bem-vinda a eutrapelia às nossas vidas que importará conjugar com a esperança. Eutrapelicamente alegres na esperança, poderia ser este uma espécie de lema nos tempos, que nos é dado viver. Tempos tão estranhos como perigosos.
Lembremos, então, desde já: a eutrapelia é uma virtude, uma disposição de carácter, que foi estudada por filósofos da antiga Grécia, por teólogos cristãos como S. Tomas de Aquino [1225-1274] e Santo Alberto Magno [1196? -1280], e, como nos evidenciam aspectos das suas biografias, muito querida, cultivada e vivida por muitos santos como S. Tomás More [1478-1535], o santo da «Utopia», S. Filipe Néri [1515-1595], S. Francisco de Sales [1567-1622], S. Vicente de Paulo [1581-1660], S. João Bosco [1815-1888] e, mais perto de nós, São João XXIII [1881-1963], o papa que iniciou o Concílio Vaticano II e cuja bonomia encantou o mundo.
A virtude da eutrapelia foi outrora tratada com especificidade por Aristóteles, particularmente na obra “Ética a Nicómaco”, nos capítulos II e IV, como uma espécie de meio termo no divertimento, situando-a entre a palhaçada [por excesso] e a dureza [por defeito]. Depois foi ficando esquecida, ou mesmo ostracizada, até ser redescoberta pelo aristotelismo de S. Tomás de Aquino [1225-1274] na “Suma Teológica”, para logo ser ignorada pelos pensadores ocidentais. e redescoberta modernamente pelo teólogo Hugo Rahner [1900-1968], irmão do mais conhecido Karl Rahner [1904-1984]. Hugo Rahner, em 1952, publica um livro com o título “Der Spielende Mench” onde realiza uma interpretação teológica e religiosa das diversões humanas apresentando-as como um meio de participação na vida do próprio Deus, colocando assim o divertimento humano no âmbito do jogo da graça. Mas, pelo que consigo saber, a eutrapelia continua a rarear nos tratados de ética e de antropologia filosófica e teológica, apesar de se manter bem viva numa enorme plêiade de santos.
Entre nós descobri, sobre a eutrapelia, um texto do historiador José Mattoso [1933-2023] no excelente livrinho intitulado “Levantar o Céu: os labirintos da Sabedoria”. Diríamos que, talvez porque a eutrapelia chegou a estar ligada a atitudes obscenas, nos encontramos perante uma palavra perdida na história da nossa língua, mas que significa uma virtude bem necessária à sabedoria da vida dos seres humanos em geral e dos fiéis cristãos, em particular, como escreve o Papa Francisco.
O que é, então, a eutrapelia? Se a palavra não tivesse sido esquecida no uso que fazemos da nossa língua, ela não necessitaria explicações de maior. A palavra é grega, já se disse, e ela, significando brincadeira e divertimento, refere-se ao bom sentido de humor, traduzido na alegria de viver, na amabilidade social e bonomia na convivência, na leveza no falar e no agir. Enfim, uma virtude moral de pessoa espirituosa que propicia graça no convívio humano, tornando-o acolhedor, descontraído, divertido e agradável. Associando-a às virtudes teologais, razão terá Hugo Rahner quando a considera um modo de participação na vida divina e vê o divertimento no dinamismo próprio do jogo da graça.
Será também por isso que o Papa Francisco intitula um dos capítulos finais da monografia “Esperança: a Autobiografia” com esta sugestiva expressão: «A imagem de um Deus que sorri», o que não deixará de se encontrar na sequência de outros documentos, a começar com a Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” que inicia com a seguinte frase: «A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus.»
É verdade que não encontramos a palavra “eutrapelia” em “Esperança: a Autobiografia” onde, curiosamente, Francisco chama à Esperança «menina espirituosa», mas ela encontra-se lá, num amplo campo semântico que facilmente nos desperta a atenção: humor, sorriso, ironia e autoironia, gracejo e gracejar, brincar e carácter brincalhão, rir, riso e risada, alegria e alegrar, jogo, piadas, historietas e anedotas, à mistura, claro, com notas biográficas e algumas anedotas.
Importará não esquecer que Francisco, em conformidade com o título daquele texto, pretende fazer salientar «A imagem de um Deus que sorri», chegando a imaginar que Deus criara o mundo com o poder do seu riso. «Deus riu e o mundo existiu», assim escreve. O poder criador de Deus – se assim nos podemos atrevidamente exprimir – é o poder da eutrapelia divina que vai vendo que tudo é bom e belo à medida que, rindo, vai criando. No início, como em todos os tempos. E agora também.
Que me lembre, nunca havia encontrado este modo de pensar a criação, embora me tenha habituado a ler os primeiros textos bíblicos vendo aí algum humor na narrativa. A situação não deixa de ser divertida. Então não é que Deus anda pelo jardim a perguntar por Adão e não é que Adão e Eva se escondem de Deus? Então o omnisciente Deus não sabia onde eles se encontravam e Adão e Eva não sabiam que haviam de ser encontrados por mais que se escondessem? Jogar às escondidas é o que todas as crianças – e os adultos com elas – sabem fazer e Deus, sorrindo, a entrar no jogo. Situação bem divertida potenciadora de uma teologia espirituosa e espiritual da graça. E não é que Francisco exorta os leitores a «tentar fazer rir Deus» e a descobri-Lo como um «Deus que sorri» e por isso convidou aquelas dezenas de humoristas para um encontro no Vaticano?
Creio que nos habituámos a ler a Bíblia com seriedade a mais e não nos damos conta da dimensão humorística de muitas situações. Então não é que aqueles discípulos de Jesus, depois de três anos de evangelização, já no monte da Ascensão, ainda perguntam se chegara a hora de restaurar o reino de Israel e depois ainda ficaram de olhos cravados na nuvem que escondeu o Mestre até aparecerem dois Anjos a chamá-los à realidade com uma espécie de ralhete pedagógico? «Homens da Galileia, que fazeis aí a olhar para o céu?»
Papalvos, estes «Homens da Galileia»! Papalvos, e todos nós com eles!
Não sei se aqueles «Homens da Galileia» desceram o monte a rir ou a chorar a sua orfandade. Mas sei que aquela situação me faz sorrir a mim, a dois mil anos de distância.
Deus estará a rir-se de mim. Talvez eu esteja a esconder-me Dele quando julgo escrever sobre Ele, Ele que está acima de todos os dizeres humanos. Absolutamente indizível, vamo-nos escondendo Dele no jardim das palavras humanas, quando pensamos encontra-Lo aí. E Deus sorri.
Haja flexibilidade de alma para levar uma vida com graça e jovialidade.
Com eutrapelia, diremos, apesar da nossa papalvice e dos dramas humanos que engendramos.
Com eutrapelia e esperança, essa «menina espirituosa» que, com a excelência que afasta os extremos, fortalece o sentido de comunidade, quebra barreiras, cria conexões entre realidades diferentes e difunde o espírito de paz.