Luís Silva, Diocese de Aveiro
A ideia de um universo (e, com ele, de toda a realidade) geométrico, totalmente previsível, é muito sedutora. Demonstra-o a (quase) omnipresença da visão fatalista da existência nas diversas religiões, mitologias e inclusive nas leituras filosóficas (Nietzsche recupera a ideia da circularidade do tempo como evocação da ideia do eterno retorno… Tudo regressa, vez após vez, sem que o humano nada consiga fazer para o evitar!).
E, curiosamente, num tempo em que o ‘mar’ cristão reflui, as areias sobre as quais este se espraiava deixam ver a emergência regressiva das visões geométricas.
Veja-se, como ilustração disto, a cedência à ideia de ‘Karma’ ou de ‘destino’ que, paulatinamente, vai tomando conta dos espíritos, sem que, criticamente, se constatem os custos da sua aceitação.
É que, de facto, a ideia é sedutora. Torna tudo previsível e diminui o assombro do inesperado… O inesperado causa ansiedade, com a qual temos dificuldade em conviver. Queremos ter na mão as certezas e não ter de nos inquietar em procurar ajustar o rumo…
Mas poderia o ser humano sobreviver à geometricidade do mundo?
O salmista do belíssimo salmo 130 enuncia a resposta: ‘Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?’ (cito a partir da tradução da Difusora Bíblica, edição online: https://www.paroquias.org/biblia/index.php?c=Sl+130)
A ideia fatalista, geométrica, presente nas religiões orientais e na mentalidade grega, contrasta com o que emerge na visão judaico-cristã.
Em tempos em que se discutem os custos da diminuição da marca cristã na sociedade, os sinais ‘geometristas’ (crio o neologismo para evocar esta ideia da geometricidade da existência) estão diante de nós e evidenciam o real impacto para além dos custos tantas vezes já denunciados: na perda da sensibilidade ética para com os mais frágeis, na perda da ‘semântica’ cristã na iconografia e nas múltiplas expressões artísticas, na fragilização dos liames sociais, etc. Uma tal geometricidade faz do erro condição para a errância. Aquele que erra, sem a possibilidade do perdão, torna-se um errante[1].
Ao judeo-cristianismo se deve, com efeito, a emergência, na humanidade, da ideia de perdão, ideia que quebra a linearidade das consequências em relação aos atos realizados, essa inevitabilidade de se tornar errante porque se errou.
A ideia ‘jubilar’ de perdoar os erros passados, reinaugurando um novo tempo, densifica-se com a afirmação da condição paterna de Deus eterno. A ideia, que, no Antigo testamento, aparecia 11 vezes, é afirmada, no mais curto Novo Testamento, 107 vezes[2]. Abba (‘paizinho’, como se se tratasse do balbuciar do nome por uma criança: ‘Ba-Ba’!) é o nome predileto de referência de Jesus Cristo a Deus.
Ilustram, de forma particularmente plástica, duas imagens que recolho da arquitetura medieval.
No tímpano da Catedral de Autun, há um detalhe particularmente belo. Retrata-se, ali, o juízo final, com toda a carga dramática que o medievo lhe associou. Mas um detalhe desconcerta. O Arcanjo Miguel aparece a ‘falsificar’ a balança, em favor do homem pecador[3]. A falsificação não é, aqui, evocação da ideia de uma ‘jogada’ pouco honesta, mas expressão da misericórdia de Deus que, por intermédio dos seus ‘mensageiros’ (aqueles que levam a Sua ‘mensagem’), põe em ação a sua ‘temperança’ e compassiva atitude de acolhimento da obra da Sua criação, marcada pela debilidade e fragilidade.
Também da idade média recolho a segunda imagem. Encontrei-a, pela primeira vez, na capa de um luminoso livro de Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas[4]. Retrata-se, nesta imagem, o que é ‘descrito’ no capitel de uma coluna da Basílica de Santa Maria Madalena, em Vezelay, igreja edificada entre meados do século XI e inícios do século XII (foi dedicada em 1104). No lado esquerdo do capitel, há um homem enforcado que vemos ser transportado, aos ombros, no lado direito. Percebemos a densidade deste momento quando reconhecemos, no enforcado, o traidor Judas Iscariotes e, no que o leva aos ombros, o próprio Jesus. A vítima voluntária transporta, voluntariamente, o seu verdugo… Cúmulo do perdão. Cúmulo da quebra da geometricidade. Numa lógica fatalista, nada mais sobraria a Judas do que a perda eterna… (É essa a tentação e sedução maior… Queremos que a justiça prevaleça, sem complacência…)
Mas Judas podíamos ser nós.
Oh, quantas histórias o evidenciam, ao longo dos tempos!
Inquieta dar conta de como os nazis cavalgaram o monte de escombros de vítimas com a complacência de ‘iguais a nós’…
Conta Radcliffe, num dos seus sempre muito narrativos livros… ‘O norte-americano Jim Campbell foi copiloto num avião que bombardeou o Japão, durante a II Guerra Mundial. Depois da Guerra, tornou-se dominicano, mas era sempre atormentado pela sua participação na destruição de pessoas inocentes. E decidiu, por isso, ir ao Japão pedir perdão. Encontrou-se com Oshida, um dominicano japonês, numa conferência nos Estados Unidos e, por isso, foi vê-lo no Ashram de Oshida, nas encostas do Monte Fuji. Disse-lhe: ‘Padre Oshida, bombardeei o vosso povo durante a guerra. Vim pedir o vosso perdão.’ E Oshida replicou: ‘E eu, nessa altura fazia parte da força antiaérea japonesa. Tentei deitar-te abaixo e foi pena ter falhado!’ Comenta Brian Pierce OP: ‘Ambos se riram e se abraçaram!’ O modo como o padre Oshida, um santo homem, mostrara a Jim que ambos tinham participado no mesmo mal, foi muito libertador para Jim.’[5]
Desta condição nos fala, densamente, o evangelho de Lucas, ajustadamente designado como o ‘evangelho da misericórdia’. Outro mundo emergiu das páginas do evangelista médico e outro mais cinzento haveria se dele não tivéssemos recebido parábolas como a do filho pródigo (do Pai de Misericórdia) ou do bom samaritano, ou a do amigo inoportuno ou, ainda, a do juiz e da viúva, ou do homem rico e do pobre Lázaro (cujo nome é um epónimo de todos os desamparados: ‘Deus ajuda’)…
O perdão abre um novo mundo onde a circularidade do tempo ou a inevitabilidade do destino afundaria no abismo…
Deus, ao mostrar-se, pelo Cristianismo (filho do Judaísmo), como Amor e que a Criação reflete, ainda que como centelhas na noite, a marca do Criador, assegura-nos que o perdão não é um apêndice, mas a condição própria do mundo, de toda a realidade: a surpresa habita-a como possibilidade omnipresente do novo quando o envelhecido parece decrépito e sem esperança.
Perdoar faz-nos novos, faz-nos habitar, de um modo assombroso e assombrado, o tempo para nos assomarmos ao umbral do que será sempre novo.
Um Deus trinitário, que é dinamismo permanente de encontro e partida, de recomeçar sempre novo, é disto que fala e é a grande novidade cristã.
Se o mundo se esquecesse, quem o continuaria a dizer, contrariando os ecos no vazio do universo geométrico? Quem diria, em sussurro, ao ouvido dos isolados humanos que, um dia, erraram, que errar (ser errante) não tem de ser o seu destino?…
[1] Ideia que apresentamos aqui (https://teologicus.blogspot.com/2023/12/o-tempo-e-advento_4.html) e encontramos belamente desenvolvida na Nota Pastoral da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé para a Semana Nacional da Educação Cristã 2024: «Construtores do Futuro como Peregrinos de Esperança
[2] Cfr. Timothy Radcliffe, Ir à Igreja porquê? O drama da Eucaristia, Prior Velho, Paulinas, 2010, p. 223.
[3] Cfr. Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 86.
[4] Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas, A literatura enquanto desafio à fé cristã, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018.
[5] Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 150.