O Papa eslavo

Homenagem dos Bispos do Brasil nos 25 anos de Pontificado A fumaça branca que ascendeu da chaminé da Capela Sistina no dia 16 de outubro de 1978 e se perdeu no céu cinzento do outono de Roma indicava o último escrutínio do conclave que se reunira para eleger o sucessor de João Paulo I e anunciava a alvissareira notícia da eleição do novo Papa. Momentos depois, o Cardeal Camerlengo, proclamou, da loggia da Basílica, à multidão reunida na praça de São Pedro, a jubilosa notícia: “Habemus Papam. Foi eleito o Cardeal-Arcebispo de Cracóvia, Karol Woytyla, que escolheu para si o nome de João Paulo II.” O anúncio perdeu-se em meio à ovação e à curiosidade da multidão, enquanto a notícia da eleição do novo papa corria veloz e quase em tempo real pelo mundo afora. Não fora a intervenção maternal de Maria, o pontificado de João Paulo II, que, neste ano, celebra o jubileu de prata, poderia ter terminado três anos após o início, quando, no dia 13 de maio de 1981, foi vítima de um misterioso atentado na praça de São Pedro, durante uma audiência geral. A respeito alguém comentou: “O atentado contra o Papa foi certamente planejado com todos os detalhes; apenas um pormenor foi esquecido: era dia de Nossa Senhora de Fátima”. Ao celebrar 25 anos, o pontificado de João Paulo II torna-se um dos mais longos na história da Igreja, sendo superado, até o momento, pelo de São Pedro, que governou a Igreja cerca de 34 a 37 anos; pelo de Pio IX, com duração de 31 anos e 7 meses, e pelo de Leão XIII, que dirigiu a Igreja por 25 anos e 5 meses, de 13 de março de 1878 a 20 de julho de 1903. Não tenho a pretensão de aprofundar o significado da pessoa do papa, que, para nós católicos, é o sucessor de Pedro, o bispo de Roma, o pastor de toda a Igreja, o chefe do colégio episcopal, o princípio e o fundamento da unidade visível da Igreja, aquele que recebeu de Cristo a missão de confirmar seus irmãos na fé (Lc 22,32). Não tenciono, igualmente, explorar a riqueza do magistério de João Paulo II, tarefa, aliás, nada fácil, tendo em conta os numerosos e importantes pronunciamentos e documentos emitidos durante seu pontificado. De todos os papas, João Paulo II é o que mais realizou viagens internacionais. A próxima viagem – à Eslováquia – será a 102ª. Cumpre destacar ainda as 142 visitas pastorais na Itália e as visitas a 301 paróquias da Diocese de Roma. São igualmente numerosas outras atividades de João Paulo II: escreveu mais de uma dezena de encíclicas; elevou às honras dos altares mais de mil beatos e mais de 400 novos santos; convocou e presidiu o maior número de Sínodos dos Bispos; teve numerosos encontros com personalidades do mundo político, cultural, científico e religioso; concedeu mais de mil audiências gerais aos fiéis do mundo inteiro, com a participação de mais de dezessete milhões de peregrinos, sem contar as audiências especiais e os oito milhões de peregrinos durante o grande Jubileu do ano 2000. Ao lado desses pontos, desejo ainda chamar a atenção para outro aspecto de relevante significado: o impacto representado pela eleição de João Paulo II na Europa e em todo o mundo. Karol Woytyla é o primeiro papa eslavo e, para ele, ser eslavo não é apenas uma particularidade étnica ou mera casualidade, mas sim um sinal da Providência Divina. Referindo-se a esse fato, o próprio Papa assim se expressou: “Certamente sou um papa um pouco fora do normal para a história do Vaticano. Não foi por acaso que a Providência Divina enviou ao Vaticano um papa eslavo” (Turij Karlov, Parlando com il Papa, 1998). As profundas transformações ocorridas na Europa no final do segundo milênio e no início do terceiro têm em João Paulo II um dos principais protagonistas e revelam os desígnios de Deus relativos à sua eleição. No começo do pontificado de João Paulo II, a Europa, pelo Tratado de IALTA, continuava dividida em dois blocos por motivos ideológicos e geopolíticos. Começava a surgir, à época, o Sindicado Solidariedade, que ameaçava provocar instabilidade não só no interior da Polônia mas também em outros países do Leste Europeu. Karol Woytyla apoiou e estimulou a chamada “Ostpolitik”, conduzida por seu Secretário de Estado, o Cardeal Agostinho Casaroli, e continuada pelo seu sucessor, o Cardeal Angelo Sodano. O processo culminou, no período do Presidente Gorbachev, em marco de 1990, com o restabelecimento das relações oficiais entre o Vaticano e a ex-União Soviética.João Paulo II é ardoroso defensor da “Grande Europa”, que se estende do Atlântico aos Urais. A “Grande Europa”, segundo ele, deve respirar com os dois pulmões, alimentar-se com a riqueza das duas tradições: a cristã-ocidental e a eslavo-ortodoxa. A riqueza da Europa está no intercâmbio dos valores religiosos, culturais e civis entre o Ocidente e o Oriente, por isso, o Papa declarou padroeiros da Europa juntamente com São Bento, representante da tradição latina, os santos Cirilo e Metódio, apóstolos da Rússia, representantes da tradição oriental. A queda do Muro de Berlim representou a derrocada do socialismo real e o término da divisão da Europa entre o Ocidente e o Bloco Oriental, que alimentou por vários anos a Guerra Fria entre as duas potências: Estados Unidos da América e URSS. O fim do Muro foi a oportunidade histórica para a construção da casa comum européia. Sobre o acontecimento, vale a pena recordar a afirmação de João Paulo II: “De agora em diante, os ocidentais são perseguidos por um dilema existencial: reconhecer plenamente a realidade da ‘Grande Europa’ e começar a construir um mundo alicerçado na solidariedade, na cooperação e no diálogo, ou, então, enfrentar novas linhas divisórias e outras perigosas dilacerações”. (Turij Karlov, Parlando com il Papa, 1998). À luz dessas reflexões, pode-se imaginar o quanto o Papa acalentou e acalenta no seu coração o desejo de visitar Moscou, a “Terceira Roma”, atendendo a convite que lhe fizera o então presidente da ex-União Soviética, Mikail Gorbachev. Da mesma forma que defensor da “Grande Europa”, pode-se dizer que Karol Woytyla é, igualmente, promotor da idéia de uma “Grande América”. Ao convocar o Sínodo Especial dos Bispos para o Continente Americano em novembro de 1997, João Paulo II quis, além de impulsionar a Nova Evangelização, fortalecer a idéia de uma América única e escolheu, por isso, em decisão pessoal, usar a expressão “Sínodo da América” – no singular – e não “Sínodo das Américas” ou da “América Latina e do Norte”, como muitos bispos haviam sugerido. “Essa escolha queria significar não só a unidade, nos aspectos já existentes, mas também aquele vínculo mais estreito ao qual os povos do continente aspiram e que a Igreja deseja favorecer no âmbito da própria missão dirigida a promover a comunhão no Senhor” (EA nº5). Acredita o Papa que a América Latina, profundamente religiosa – hoje são mais de 30 milhões de latino-americanos vivendo nos Estados Unidos – pode e deve infundir um suplemento de alma, de espiritualidade ao povo da América do Norte, marcada por uma mentalidade técnico-científica, materialista e individualista. Os povos do norte, mais desenvolvidos e ricos, devem, por sua vez, colaborar com os irmãos do sul e, juntos, construírem uma casa comum americana, onde reine, para todos, a solidariedade e não as injustiças sociais. É nessa perspectiva que se devem levar adiante as negociações com vistas à integração regional e continental da América, chamada, a exemplo da Europa, a tornar-se a “Grande América”, no respeito à riqueza de sua diversidade cultural e à autonomia de seus povos. Não há dúvida de que a eleição do primeiro papa eslavo na história da Igreja não tenha sido mero acaso ou singular coincidência, mas sim um desígnio especial da Providência Divina para a Igreja e para a humanidade. Dom Raymundo Damasceno Assis, Bispo Auxiliar de Brasília

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