O Natal faz parte do património da fé cristã a que a Igreja tem por missão dar visibilidade ao longo da história. Trata-se duma celebração que nasceu no contexto dessa fé. Logo, só no interior desta poderá ser correctamente interpretada. A fé cristã é o universo de linguagem dentro do qual se capta o verdadeiro sentido do Natal. Este ‘universo de linguagem’ não é apenas algo a que se adere mentalmente. É, antes de mais, uma coisa que se vive. Por sua vez, o ‘sentido do Natal’ não depende do que cada um pensa que ele deveria ser ou gostaria que ele fosse. O Natal é que nos diz o que ele próprio é. Celebra o nascimento de Jesus, que constitui a entrada definitiva de Deus na história humana, para apontar a todos o caminho da verdadeira felicidade.
Só vivendo a fé cristã é que se percebe o significado do Natal. Mas a celebração deste tem que decorrer no seio da nossa sociedade plural. Ela fica, pois, exposta diante de quem não entende o seu significado objectivo, não lhe dá qualquer valor, ou rejeita pura e simplesmente. Acresce o facto de o Natal ser uma data que consta do calendário do conjunto da sociedade. Isto leva a que, a par do Natal cristão, exista o Natal cultural. Este último não tem conteúdo definido a priori. Mais parece o preenchimento dum espaço que a Igreja não pode controlar e com o qual a sociedade nem sempre sabe lidar. Faz-se do Natal uma grande sessão de despesas. Constroem-se fantasias à sua volta. Multiplica-se o seu significado consoante o que cada um quer. Tudo isto faz parte da chamada ‘magia do Natal’. Alguns talvez desejem até retirar-lhe o que tem de expressão pública.
Viver o Natal cristão no seio desta sociedade plural requer aprendizagem. Levantam-se questões que se tornam frentes de trabalho. Existe, em primeiro lugar, a discussão do que deve ser o pluralismo na nossa sociedade. Reconhece-se à tradição cristã o direito de o integrar ou pretende-se dar lugar a tudo menos a ela? Aceita-se que esse pluralismo surge num espaço de passado marcadamente cristão ou quer-se partir para o futuro fazendo tábua rasa do que está para trás? Este debate deve levar a perceber que, onde se risca a memória, dificilmente se consegue identidade. Deve ajudar a ver que, apagando o passado donde se vem, fica-se vulnerável à experimentação ideológica, tendencialmente tirânica, como é o caso do laicismo. A inclusão do Natal no nosso calendário civil deve-se ao passado cristão da sociedade a que pertencemos. Mas a tradição cristã tem mostrado até que respeita os outros no seio do convívio democrático. O Natal cristão não se impõe; quer existir e fazer viver.
Surge, em segundo lugar, a reflexão sobre o conteúdo do Natal cultural. Sabendo que ele não existiria sem o Natal cristão, compreende-se que este lhe aponte o que é proveitoso, sem fazer violência ao conjunto da sociedade. O Natal é, em virtude da sua origem, um elemento da simbólica cristã. Contudo, pode extrair-se dele o ‘humano fundamental’, que, de si, deve interessar a todos. Da cena do presépio, colhem-se os valores da humildade, do desprendimento, da dádiva; aprende-se a atender ao essencial da vida. Quando Deus surge no meio de nós da maneira que lá vemos, ele diz-nos o que é ser verdadeiramente humano. Está aqui a riqueza que o Natal cristão oferece à sociedade.
Pede-se aos cristãos, em terceiro lugar, um reforço identitário colectivo. É preciso cultivar o clima da fé cristã, para que ele robusteça as vivências individuais da mesma. Cada um deve fomentá-lo juntamente com outros, para que todos possam beneficiar depois dele. A fé cristã ganha consistência colectiva através de acontecimentos que lhe dão visibilidade e a fazem comunicar vida. É o caso daqueles que dão corpo ao Natal cristão. Veja-se a exposição dos estandartes do Menino Jesus nas janelas e varandas de muitas casas. Tais acontecimentos contribuem para um clima de fé cristã mais robusto, capaz de alimentar os que a praticam e de ser sinal para o mundo. O reforço identitário colectivo, que de tudo isto resulta, não pretende fomentar espírito de gueto. Está aberto às interpelações que lhe chegam do exterior, desi-gnadamente às grandes necessidades humanas. Esse reforço identitário procura ser também evangelizador; fala para fora. É bom que não enverede logo por um debate racional; talvez desgaste e não dê frutos. Convém que toque aquela área das pessoas que precede os argumentos, pois é nela que a mensagem do Natal pode fazer alguém nascer de novo.
Domingos Terra,
Professor da Faculdade de Teologia