O mundo pós-moderno regressa ao religioso?

conversa com Gianni Vattimo, estudioso de pensadores como Aristóteles, Nietzsche e Hedegger, escreveu recentemente o livro Credere di credere Esta interrogação proposta por Alfredo Teixeira pode ser um bom resumo do questionamento formulado de muitas formas nas Jornadas de Teologia do Porto, que decorreram de 3 a 6 de Março. A formulação do tema proposto “O regresso do religioso e o religioso como regresso” sugere mais problemas e questionamentos do que certezas ou definições dogmáticas. A principal figura convidada foi o filósofo e teólogo italiano Gianni Vattimo. Apresentou dois temas: “O religioso em contexto pós-metafísico” e “Credere di credere: filosofia e confissão”. Na comunicação introdutória, Arnaldo Pinho centrou a problemática do religioso no contexto pós-moderno, no plano filosófico e no plano teológico, partindo do nihilismo e do conceito da “morte de Deus”, propondo a retoma do religioso, a redescoberta do mito e o retorno do universo religioso ao âmbito do pensamento filosófico. Citou autores recentes, como Eugenio Trías, que superando os conceitos de Nitzsche e Heidegger, propõe também uma superação do estruturalismo, substituindo-o por uma “recionalidade fronteiriça” entre o sagrado e o profano: “o sagrado não desapareceu nem se destrói”, citou. Outros autores do pensamento moderno sugerem conceitos como a mediatização da palavra, da linguagem, questionando o relacionamento entre razão e fé, recuperando o antigo conceito da fé que busca o entendimento. Outras comunicações propuseram questões como “Regresso a que religioso” (Alfredo Teixeira), os limites da razão, segundo Kant” (Manuela Brito Martins), a fé cristã depois da morte simbólica de Deus (João Duque). Tivemos oportunidade de manter uma conversa com Gianni Vattimo, Professor da Universidade de Turim, aliás sua terra natal. Estudioso de pensadores como Aristóteles, Nietzsche e Hedegger, escreveu recentemente um livro “provocador” com o título Credere di credere, traduzido em português como Acreditar em acreditar (com alguma imprecisão e talvez traição, no dizer de Jorge Cunha). Homem de grande simplicidade humana e de grande simpatia e proximidade, acedeu a um diálogo coloquial. Ressalve-se, por isso, a coloquialidade da apresentação das ideias. Crer e saber VP – O título ou tema da sua conferência questiona o religioso em contexto pós-metafísico… Gianni Vattimo (G. V.) – O tema surge porque depois de uma conferência: falando com um professor da Universidade de Milão ele me perguntou: Mas tu crês ainda em Deus?, eu lhe respondi: Bem, eu creio que creio… Esta fórmula parece-me significativa no sentido em que muitas vezes se pensa que crer é mais certo que saber. Apesar de na tradição alguns autores como Pascal pensaram que Crer é menos seguro que o saber: uma aposta, um risco. Pretendo assim no quadro do meu trabalho filosófico, sublinhar esta ideia que acreditar contém sempre um risco. A doutrina cristã apresenta-se demasiado como um saber seguro. Quando eu repito o Credo não afirmo qualquer experiência científica mas a esperança da vida eterna. VP – Na sua conferência problematizou o religioso como pós-metafísico. Considera a metafísica como um pensamento ultrapassado? G. V. – A metafísica pode ter um sentido amplo (todo o pensamento é metafísica), mas o sentido em que a tomo segue na esteira de M. Heidegger que contestou a metafísica como pretensão de conceber o ser como algo de objectivamente dado, eternamente disponível, com estruturas eternas, que é a metafísica clássica, típica das ideias de Platão, não sujeitas ao devir de tempo, ou das essências aristotélicas, como algo que se concretiza historicamente, que existem ou subsistem para além do tempo, dadas ao espírito. Na tradição do pensamento europeu a metafísica poderia chegar aos primeiros princípios, de que tudo derivaria, como a ética ou a moral. Isto supunha que a metafísica poderia chegar ao ser como princípio. Mas quando o europeu se encontra com novas civilizações, verifica que há concepções do mundo diferentes, mas afirma as suas concepções de uma maneira autoritária. Depois que esta estrutura do euro-centrismo caiu, e que os “primitivos” já não aceitavam ser assim considerados, surgem dúvidas sobre a possibilidade de identificar uma filosofia, uma cultura determinada com o ser objectivamente considerado. Descobre-se então, com o pensamento de autores como Heidegger, que o que chamamos “objectividade do ser” prova-se no interior de um sistema de princípios, mas pode não ser entendida noutro. Para se compreender as provas da física atómica é preciso ser físicos atómicos. Ora não há quase nada nas nossas “verdades” que não seja incluído num horizonte histórico. Isto é mais ou menos que “a verdade”? Implica uma verdade que reconhecemos como finita, como humana, não divina. Eu escrevi recentemente uma autobiografia que vou enviar a Jorge [Teixeira da Cunha], que de chama Não ser Deus. Quero dizer que eu sei que sei algumas coisas, mas não estou seguro de tudo. Num mundo como o nosso, em que encontramos tantas diferenças culturais, é fundamental, inclusivamente para o cristianismo, compreender que as nossas concepções se incluem num mundo sócio-cultural que temos vivido no mundo ocidental. Podemos propor o cristianismo como caminho de salvação mesmo para os primitivos, os orientais com outras concepções, mas sempre com o risco de encontrar formas diversas de compreensão. Por exemplo: hoje já não se propõe como absoluto o axioma “extra ecclesia nulla salus” [fora da Igreja não há salvação]. Imagine que quando o Papa recebe o Dalai Lama, conversam sobre problemas do mundo, o Papa terá que recolher-se para rezar por este homem que está “fora da Igreja”? Temos que entender a expressão numa realidade salvífica muito mais ampla: que o Dalai Lama pode pertencer a uma Igreja muito mais alargada, marcada pela caridade de Cristo. É neste contexto que a atitude de “crer que se crê”, mais que a de “saber que se sabe” é muito mais razoável e mesmo cristã no sentido da abertura às convicções de outros. Ciência, fundamentalismo, ateísmo VP – Exprimiu-se também contra o “fundamentalismo” de normas e concepções, interpretação de dogmas, crenças tradicionais… C. V. – Para mim o contraste ou conflito entre a fé cristã e os que não crêem, não é que os ateus não gostem de Jesus, mas não gostam da pretensão da Igreja de apresentar uma verdade objectivamente imutável. A isto se chama fundamentalismo. Por exemplo, há pontos de discórdia entre as propostas da Igreja e concepções sociais, como acontece em Itália. É o que acontece com a Bioética: a Igreja pretende fundá-la sobre a sua concepção do conhecimento da natureza, do mundo e do homem, falando de Deus como criador. Mas daqui a dizer que a Bíblia é a verdade sobre a criação material de um mundo material, os homens, os animais, etc., isto é que perturba os ateus, este querer sobrepor as teorias bíblicas aos conceitos das ciências positivas. Hoje pouca gente pensa que o darwinismo é a verdade, mas propor os sete dias da criação será um pouco absurdo: é o que eu chamo fundamentalismo. VP – Também na sua comunicação falava de um cristianismo pós-científico. Será no sentido de adaptar o dogma e as concepções cristãs às posições modernas da ciência? G.V. – Para mim, a própria evolução da filosofia contemporânea parece-me ter destruído a pretensão metafísica de conhecer a verdade, a realidade. É por isto que tradicionalmente os filósofos eram ateus, porque pensavam que havia um conhecimento verdadeiro da realidade. Mas situação pós-moderna, nenhuma filosofia pretende descrever objectivamente a realidade. Não temos mais possibilidade de ser ateus racionalmente. Afirmam-se ateus, ou porque Deus não se vê nas experiências científicas; ou porque é algo do nosso passado, que apresentamos desde o mito à racionalidade… São duas visões do mundo: a cientista ou a historicista. Um cristianismo pós-metafísico é uma concepção que pode tornar-se aceitável depois de perdidas as razões metafísicas para ser ateus. Não há mais razões para ser ateus. Podem ouvir-se as Escrituras, sobretudo o Novo Testamento como o carácter unificador da nossa civilização cristã. Quando mais pretendemos estar num ponto de observação absoluto, tanto mais dependemos da nossa historicidade. Por isso dizia que falava de um ponto de vista historicamente dado, porque não posso falar como Deus, mas apenas como identidade histórica em contacto com a sua própria historicidade. Fé e concepções do mundo VP – Pareceu-me que na sua apresentação se poderia propor uma autonomia da realidade física, das realidades temporais em contraposição com a fé e a crença… G. V. – Quero dizer que eu não tenho uma teoria sobre o nascimento do mundo. Mas ver a Bíblia como um manual de verdades cosmológicas, antropológicas, naturalistas, parece-me um erro. O erro cometido no tempo de Galileo sobre as concepções cosmológicas do mundo de então. Hoje os teólogos falam menos do paraíso e do inferno, salientando sobretudo que “o reino de Deus está no meio de vós”. O que há depois da morte eu não o sei, mas espero que há alguma coisa, como um outro tempo, uma outra realidade. Não podemos comprovar nada. Trata-se de um problema de esperança. VP – A sua formulação “Credere di credere” propõe uma atitude diferente em relação ao mundo moderno… G. V. – A oposição entre Igreja e mundo moderno que existe em muitos documentos funda-se neste equívoco, neste erro: de uma lado há a visão cristã do mundo e do homem, e do outro a visão científica. Ora a visão cristã do mundo será algo que se pode contrapor objectivamente à visão científica? Não. Os ateus de hoje pretendem ser científicos, porque sabem e não precisam de acreditar. Ora a mim não me escandaliza falar do “Big-Bang”, por exemplo. Que tem isso a ver com a minha fé em Deus? Não diria uma autonomia do material em relação a Deus. Eu isso não o sei. O que sei é que algo se passou há dois mil anos na Palestina com Jesus que pregou, não as ciências positivas do mundo, mas o sentido universal da Caridade. Nesta situação até me parece providencial (que se descubram os dados científicos). Eu admito que os homens medievais tenham acreditado como Dante no sistema do mundo. Hoje não posso crer assim. Hoje há as ciências que interpretam a realidade. Hoje o conhecimento científico não tem que ter um relacionamento conflitivo com a fé cristã, porque esta não é um conhecimento das estruturas do mundo, é uma forma de as encarar e viver. VP – E crê que o mundo científico, o universo dos cientistas será um mundo anti-religioso? G. V. – A mim parece-me que não o é necessariamente. Mas os científicos foram educados num mundo de luta de pretensões absolutistas. Quero dizer que quando a Igreja dizia que as coisas eram de uma maneira, eles afirmavam que eram de outra. Hoje porém são muito menos agressivos. Porquê? Porque conhecem o conteúdo probabilístico das sua ciência, onde se verifica um sistema de pressupostos que não necessariamente conduzem sempre aos mesmos resultados nem à verdade absoluta. O que importa é que quer o cientismo quer o cristianismo, ambos renunciam a concepções fundamentalistas do seu conhecimento. VP – Uma espécie de colaboração criativa? G.V. – Sim, porque a organização da matéria e da vida é um dado prático que tem que ser entendido não diria sob o conceito da salvação da alma, mas sob o conceito da Caridade que estabelece o seu relacionamento.

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top