Instrução Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa No início do novo milénio 1. O Jubileu do segundo milénio, que acabámos de celebrar, foi um tempo muito especial de graça, de alegria e de renovação da vida cristã, orientado para uma nova evangelização. Como diz o Santo Padre João Paulo II, logo no começo da Carta Apostólica Novo millenio ineunte, que nos apresenta as grandes linhas programáticas para a Igreja Universal no início do terceiro milénio, “é impossível medir o sucesso de graça que, ao longo do ano, tocou as consciências. Mas certamente um ‘rio de água viva’, o mesmo que jorra incessantemente do “trono de Deus e do Cordeiro” (Ap. 22, 1), inundou a Igreja” (n.º 1). Ao longo do Jubileu, toda a Igreja foi conduzida a um encontro mais vivo com Jesus Cristo. O grande legado que ele nos deixa é a “contemplação do rosto de Cristo” (NMI 15). O desafio que agora se coloca à Igreja, que retoma a sua actividade normal enraizada no espaço e no tempo, é dar continuidade a esse tempo de graça com o olhar sempre mais intensamente fixo no rosto do Senhor, que Ela contempla e tem por missão anunciar pela palavra e pela força do testemunho (cf. NMI 16). Se o Jubileu trouxe à Igreja um novo vigor resultante do encontro e da renovação em Cristo, o pós-Jubileu é um desafio a seguir em frente, com esperança, na fidelidade Àquele que “é o mesmo ontem, hoje e sempre” (He 13, 8) e que nos ofereceu a garantia de nos assistir até ao fim do mundo (cf. Mt 28, 20). O programa para o terceiro milénio é o programa de sempre, “expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste” (NMI 29). Mas, tendo em conta os novos tempos e culturas, “é necessário traduzi-lo em orientações pastorais ajustadas às condições de cada comunidade” (NMI 29). Uma das prioridades apontadas pelo Santo Padre para o relançamento pastoral, no seguimento da experiência do Grande Jubileu, é o sacramento da Reconciliação, cuja prática se deve propor com “uma renovada coragem pastoral (…) de forma persuasiva e eficaz” (NMI 37). O caminho de conversão conduz ao sacramento da Reconciliação, principal meio para realizar na vida dos fiéis a reconciliação com Deus, com o próximo e com a Igreja. Este sacramento restabelece a vida espiritual do Baptismo e conduz a uma maior fidelidade ao projecto de Jesus Cristo. É nossa intenção, com esta Instrução Pastoral, ajudar a esclarecer o lugar e o significado do sacramento da Reconciliação na vida cristã de modo que a sua celebração incentive a uma maior conversão à vida dos filhos de Deus. Conversão e virtude da Penitência 2. Para acolher o Evangelho e entrar no Reino de Deus, é necessário arrepender-se e converter-se: “arrependei-vos e convertei-vos para que os vossos pecados sejam apagados” (Act. 3, 19). A conversão ou metanoia é uma mudança profunda que atinge a forma de pensar e de agir, os critérios e as atitudes. Mas não é apenas uma transformação psicológica e terapêutica. É deixar os nossos caminhos para seguir o caminho que Deus nos propõe em Jesus Cristo. É acolher e aderir à vida nova que Deus nos oferece através do Espírito Santo que transforma o coração dos fiéis e renova a face da terra. Corresponder ao chamamento de Deus, tornar-se discípulos de Jesus Cristo e viver segundo o Espírito Santo é um processo de transformação que exige esforço e dedicação ao longo de toda a vida. Encontra, na verdade, a resistência da nossa natureza humana, ferida pelo pecado original, com tendências para o egoísmo, vaidade, orgulho, domínio, sensualidade e outros impulsos desordenados. Sem penitência, isto é, sem renúncia a estas tentações, não podemos viver o Evangelho do Reino. Por isso Jesus, na continuação dos profetas, e designadamente de João Baptista, proclama a penitência como condição para acolher o Reino de Deus. Este é o caminho que nos propõe para nos libertar da escravidão do pecado e nos introduzir na Sua luz admirável (cf. CP 1). A Penitência apresenta-se, assim, como um caminho que nos renova interiormente, em ordem a alcançarmos a plena estatura da vida cristã. Compreenderemos este aspecto positivo da conversão ao considerar a transformação que se operou na vida daqueles que encontraram Jesus Cristo e acolheram o Seu Evangelho: os apóstolos, Zaqueu, a pecadora arrependida, a Samaritana, etc. Assim, nas palavras e nos gestos de Jesus, bem como nos frutos de conversão daqueles que n’Ele acreditaram, descobrimos o apelo à penitência como um resumo da missão de Jesus. Se não nos convertermos, não pertenceremos ao Reino de Deus. Vocação à santidade e sentido do pecado 3. A conversão cristã é resposta ao apelo de Deus, à Aliança que Ele deseja estabelecer connosco. Para nos voltarmos para Deus e aderirmos ao Seu projecto é necessário conhecer Deus e a vocação que Ele nos propõe. A conversão cristã arranca da escuta da Palavra de Deus. Aqui se situam as dificuldades de muitos fiéis. Não têm consciência de pecado porque não têm formação suficiente para entender a dignidade e a responsabilidade da formação cristã. O pecado é uma infidelidade à Aliança a que Deus nos chamou. A sua gravidade ecoa na consciência de quem sente o apelo de Deus à santidade. Deste modo para entender a necessidade e a importância da conversão devemos partir da vocação cristã ligada ao Baptismo. Em confronto com o projecto que vem do Baptismo, da Confirmação e da Eucaristia, descobrimos mais facilmente as nossas infidelidades e a necessidade de perdão e de conversão. Perante a bondade e a misericórdia de Deus tomamos consciência das nossas falhas. Pelos sacramentos da iniciação cristã somos introduzidos na comunhão com Deus e na comunhão dos Santos. Este dom gratuito de Deus é um chamamento que espera pela nossa correspondência na vida cristã adulta e empenhada, alicerçada na palavra de Deus, conduzida pela acção do Espírito Santo, orientada para o amor de Deus e do próximo e para o testemunho da fé na Igreja e no mundo. É neste esforço por corresponder à santidade do Baptismo que tomamos consciência das nossas resistências e fragilidades e descobrimos a necessidade de lutar contra as forças do mal enraizadas no coração de todos: “A vocação à santidade mergulha as suas raízes no Baptismo e volta a ser proposta pelos vários sacramentos, sobretudo pelo da Eucaristia: revestidos de Jesus Cristo e impregnados do Seu Espírito os cristãos são “santos” e, por isso, são habilitados e empenhados em manifestar a santidade do seu ser na santidade de todo o seu operar. O apóstolo Paulo não se cansa de advertir todos os cristãos para que vivam “como convém a santos” (Ef. 5, 3) (ChL. 16). Renovação do sacramento da Penitência 4. O sacramento da Reconciliação, expressão da sacramentalidade salvífica da Igreja, é o principal meio eclesial para se abrir à conversão e chegar à virtude da Penitência. Por isso todo o esforço pastoral de renovação da vida cristã, passa, necessariamente, pela renovação e recuperação pastoral da celebração deste sacramento. O II Sínodo Especial dos Bispos para a Europa apresentou-o como fonte de salvação e reconciliação, de liberdade e nova esperança (cf. MFS 5). Ao falar de recuperação, reconhecemos que, apesar da riqueza oferecida pela renovação litúrgica da sua celebração, a prática deste sacramento tem sofrido profundas alterações que denunciam, mesmo, uma certa crise. São múltiplas as causas deste fenómeno: a perda do sentido do pecado, sobretudo do pecado grave, aquela desobediência à vontade e ao projecto de Deus, que nos afasta da vivência da aliança com ele; o desvanecer-se da consciência do poder sacramental da Igreja, enquanto mediadora da graça; o enfraquecimento da experiência da oração, radicada na meditação da palavra de Deus, enquanto experiência de intimidade com o Senhor; o divórcio entre a fé professada e a vida vivida como manifestação de fidelidade, etc. Devemos reconhecer, além disso, que a forma de celebrar o sacramento nem sempre deixa transparecer a sua riqueza. Frequentemente apresenta a imagem de um colóquio individual sem contexto litúrgico celebrativo nem dimensão comunitária. Ou então centrado predominantemente no momento da confissão e da absolvição sem a devida preocupação pelo itinerário prévio de penitência nem da maior fidelidade à vocação cristã a que o sacramento conduz. Tudo isto nos leva à consciência de que a renovação da celebração deste sacramento é indesligável de uma intensa evangelização que leve à redescoberta do Baptismo. Na Carta Apostólica sobre a preparação para o Jubileu, bem como na Bula da sua proclamação, o Santo Padre refere o contexto adequado para entender o lugar deste sacramento. Ele pressupõe um itinerário de conversão e orienta para uma vida cristã mais intensa. Corresponde, portanto, a um percurso de fortalecimento da vida nova do Baptismo, que se traduz no combate contra as tendências do pecado em ordem a uma maior fidelidade à vocação cristã. O sacramento da Penitência num itinerário de conversão 5. O sacramento da Reconciliação é o momento culminante de um processo que vai amadurecendo gradual e progressivamente. Pressupõe alguns passos prévios: formação da consciência para reconhecer as infidelidades ao projecto de Deus; arrependimento pelas faltas cometidas; e vontade sincera de dar um rumo novo à existência. O sacramento como dom de Deus precisa de ser preparado por um itinerário pessoal de conversão e deve conduzir a uma vida mais fiel à santidade cristã. Esta é uma dimensão fundamental do sacramento que se julga já adquirida mas que, na realidade, não penetrou ainda suficientemente na mentalidade dos fiéis e na prática pastoral. A Carta Apostólica Tertio millennio adveniente lembrava esta dimensão ao afirmar: “o caminho de autêntica conversão, que compreende, seja um aspecto “negativo” com a libertação do pecado, seja um aspecto “positivo” com a escolha do bem (…) é o contexto adequado para a descoberta e a intensa celebração do sacramento da Penitência no seu significado mais profundo” (n.º 50). Esta perspectiva decorre do Evangelho, como vimos, e está de acordo com a Tradição da Igreja. São Tomás afirmava que é impossível alcançar o perdão dos pecados só pelo rito, se não se alcança a penitência como atitude. Penitência adquire assim, na perspectiva bíblica e eclesial, um sentido positivo e estimulante de passagem das trevas à luz. Renunciamos ao pecado para alcançar a liberdade de filhos de Deus. No entanto, esta passagem do pecado à santidade do Baptismo é custosa e exigente. Não se alcança sem sacrifício e esforço, “sem jejum e oração”, segundo a linguagem do Evangelho. O pecado é sempre uma tentação agradável a que estamos inclinados e apegados. Renunciar ao egoísmo, à vaidade, à sensualidade, à mentira ou a outras inclinações pecaminosas para aderir ao projecto de Deus, é empreender o caminho difícil para a liberdade, para a bondade e para a beleza. Deste modo, não podemos entender e viver o sacramento como um momento isolado. É igualmente importante para preparar o “antes” e o “depois” do sacramento. Na prática pastoral não basta programar os dias e as horas das confissões. Devemos igualmente pensar e propor itinerários de penitência que preparem e dêem continuação ao sacramento. Caminhos para a renovação pastoral do sacramento da Penitência 6. A renovação pastoral deste sacramento alcança-se, portanto, no contexto geral de um processo de evangelização. A sua própria identidade como sacramento de cura, que recupera e fortalece a graça do Baptismo, associa-o à pastoral da iniciação cristã que tem em vista formar fiéis adultos e responsáveis. De facto, para alcançar o sentido de pecado e dispor-se a percorrer o caminho da conversão é indispensável ter consciência do projecto de Aliança de Deus e saber discernir entre o caminho do Senhor e os outros caminhos. A raiz da crise deste sacramento encontra-se, em grande parte, na deficiente formação cristã, designadamente na formação moral. Deste modo, a renovação pastoral do sacramento da Penitência alcança-se, a longo prazo, com uma catequese sólida, atenta a todas as dimensões da vida cristã. Referimo-nos tanto à catequese de infância e adolescência, que acompanha a celebração dos sacramentos de iniciação cristã, como à catequese de jovens e adultos que, apesar de terem recebido os referidos sacramentos, não foram verdadeiramente iniciados no conhecimento e na prática da vida cristã. Além desta preparação geral, torna-se igualmente importante uma preparação específica e próxima para celebrar frutuosamente este sacramento. Neste sentido precisamos de valorizar o itinerário penitencial da Quaresma para convocar e dispor as comunidades a viver a conversão que conduz à vida nova da Páscoa. Em ordem à preparação imediata para a celebração do sacramento é oportuno proporcionar aos fiéis celebrações penitenciais em que possam ser confrontados com a Palavra de Deus e orientados no exame de consciência adaptado à situação em que vivem. A renovação pastoral do sacramento da Penitência está ligada ao conjunto da vida cristã. Não se esgota, portanto, nestes vários níveis de preparação explícita. É fruto também do zelo pastoral quotidiano que faz referências oportunas a este sacramento e ajuda os fiéis a descobrir a sua relação profunda com as expectativas e problemas das pessoas do nosso tempo. Resposta da Igreja a problemas do homem contemporâneo 7. Como já referimos o sacramento da Penitência pode ter um papel fundamental na recuperação da esperança do homem europeu contemporâneo. Verifica-se, de facto, nas pessoas da época actual, um sentimento de insatisfação e de vazio, um desejo de regenerar a existência e de refazer a vida. A abundância de bens e as comodidades materiais não resolvem os conflitos interiores e exteriores, não alcançam a paz e o sentido da vida. Sintomas de vazio e de inquietação interior podemos encontrá-los em muitos factos: o recurso frequente a especialistas de felicidade que anunciam poderes ocultos para resolver problemas pessoais; a adesão a seitas que garantem remédio para todos os males e cura para as diversas doenças; a onda de melancolia e de depressão que leva muita gente a consultar psicólogos. Face a estes sintomas as pessoas têm a tendência a procurar soluções fáceis e exteriores quando o caminho é a mudança do coração que se alcança com o esforço da conversão. O itinerário de penitência que leva à reconciliação é o caminho mais seguro para reconstruir a vida segundo o projecto de Jesus Cristo e orientar no crescimento da vida espiritual e humana. Corresponde, portanto, a experiências e anseios humanos das pessoas. Mas o sacramento vai muito além do desejo humano de dar um rumo diferente à vida. É o dom do Pai de Misericórdia que perdoa as infidelidades de seus filhos e recomeça uma Aliança de amor connosco. Para aqueles que se afastaram gravemente do amor de Deus e têm consciência disso, o sacramento é o momento do perdão e de um novo recomeço. “Aqueles, porém, que, fazendo todos os dias a experiência da sua fraqueza, caem em pecados veniais recebem, pela repetida celebração da penitência, forças para poderem chegar à plena liberdade dos filhos de Deus” (CP 7). O sacramento da Reconciliação, quando bem preparado e celebrado, produz frutos abundantes que respondem a muitos problemas actuais: ajuda a tomar consciência cada vez mais profunda do ideal cristão e a reconhecer as infidelidades de cada um; dá referências e critérios evangélicos; aprofunda a confiança na misericórdia de Deus sempre maior que as nossas infidelidades. O sacramento cura e restaura a vida espiritual, ajuda a encontrar a paz e conduz a um recomeço na fidelidade à comunhão com Deus e com os outros. Este aspecto positivo leva naturalmente à regeneração pessoal e social e vai de encontro ao desejo que muita gente sente de dar um rumo novo à vida. A revitalização do sacramento da Reconciliação, vivida na plena integridade da doutrina conciliar, é cada vez mais urgente se se quer avançar no caminho da nova evangelização da Europa. Pelo sacramento da Reconciliação, bem celebrado e praticado, passa o renovado encontro do cristão com a graça redentora de Jesus Cristo. Momentos do Sacramento 8. A celebração da penitência integra alguns elementos que podem entender-se como momentos do processo de renovação da vida cristã (cf. CP 6). a) Antes de mais, a conversão interior ou “metanoia” isto é, “a mudança interior do homem todo, pela qual ele começa a pensar, a julgar e a dispor a sua vida, impelido pela santidade e caridade de Deus (…). É desta contrição do coração que depende a verdade da penitência” (CP 6). Este primeiro passo indispensável torna-se hoje difícil de dar. O apelo à conversão desperta um eco muito débil nas pessoas da época actual. Diluíram-se o sentido de pecado e a consciência de culpa. As pessoas sentem-se bem como são. Instalam-se na sua mediocridade. As falhas morais explicam-se por motivos psicológicos ou sociológicos. Experimentam sérias dificuldades em fazer um exame de consciência que tenha como referência a globalidade da moral cristã. Assim, para se dispor à conversão, é necessário começar pela formação da consciência que permita discernir entre o caminho do Evangelho e o caminho do mal. É urgente uma catequese cuidada sobre os dez mandamentos. b) A confissão dos pecados é outro elemento que faz parte essencial do sacramento. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “mesmo do ponto de vista humano, a confissão dos pecados liberta-nos e facilita a nossa reconciliação com os outros” (CIC 1455). Quando cada penitente assume o seu pecado como infidelidade pessoal e recorre com confiança e humildade ao perdão de Deus, alcança a reconciliação e dispõe-se ele próprio a ser embaixador da reconciliação à sua volta. Além de ser o sinal sacramental da reconciliação, a confissão das próprias culpas corresponde também ao anseio humano de ser escutado, compreendido e ajudado na procura de um rumo novo para a vida. Deste modo, compreenderemos a importância que a Igreja reconhece a este elemento do sacramento: “A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o fiel, consciente de pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja” (CDC, can. 960; CP 31). Hoje, numa sociedade massificada e individualista, torna-se muito necessário este atendimento pessoal em que o ministro da Penitência manifesta a misericórdia do Pai e o acolhimento materno da Igreja. A confissão individual dos pecados graves é sempre exigida para a validade do sacramento, mesmo quando, a teor do can. 961, § 1º e 2º, se pode dar a absolvição geral sem a confissão pessoal dos próprios pecados naquele momento. c) A satisfação é o terceiro elemento integrante que leva à reparação do mal cometido e propõe um remédio de acordo com a doença. Projecta-se para o futuro, para um novo rumo a seguir, numa maior fidelidade à vocação cristã. O confessor deve, nesse sentido, propor caminhos, gestos ou acções que correspondam à situação do penitente e o ajudem na configuração com Jesus Cristo: oração, donativos, obras de misericórdia, serviços concretos a prestar ao próximo, e sobretudo a aceitação da cruz da vida (cf. CIC 1460). d) Finalmente, a absolvição – pela qual o ministro da Igreja, em nome de Deus, Pai de misericórdia, concede o perdão dos pecados, alcançado pelo mistério pascal de Jesus Cristo – restabelece a vida nova no Espírito. A absolvição é o momento culminante do itinerário penitencial e conduz à reconciliação com Deus, com a Igreja e com o próximo (Mt. 5, 24). Deve, por isso, manifestar-se numa vida reconstruída, em harmonia interior e exterior com Deus e com os outros. Jesus Ressuscitado confia à Igreja o ministério da reconciliação 9. Jesus Cristo, que ao longo da Sua vida terrena manifestou, por vários gestos e sinais, que vinha perdoar os pecados e realizar a reconciliação dos homens e de todas as criaturas com Deus, após a Ressurreição confiou aos seus continuadores a mesma obra da Reconciliação: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados ficarão perdoados, àqueles a quem os retiverdes ficarão retidos” (Jo. 20, 22-23). É o primeiro dom da Ressurreição oferecido na tarde da Páscoa, para que os apóstolos e os seus sucessores pudessem comunicar a todos os fiéis a vida nova do Espírito. “Esta é uma das mais maravilhosas novidades evangélicas!” (RP 29). Como acontece na celebração dos outros sacramentos, também o dom da Reconciliação é concedido pela mediação da Igreja através do ministério ordenado. “O sacerdote, ministro da penitência, age in “persona Christi” e como irmão (…) e médico que cura e conforta” (cf. RP 29). O ministro do sacramento, confere, assim, visibilidade sacramental à obra de reconciliação de Jesus Cristo. “Trata-se, sem dúvida, do ministério mais difícil e delicado, do mais cansativo e exigente; mas também de um dos mais belos e consoladores ministérios do sacerdote” (RP 29). Permite-lhe, na verdade, conhecer o íntimo das pessoas, ouvir de cada uma as suas fraquezas e quedas, cuidar pessoalmente das que estão feridas e doentes, orientar no esforço de recuperação e comunicar o perdão de Deus (cf. RP 29). Compreendemos, portanto, como a preparação e a celebração do sacramento da Reconciliação devam ocupar um lugar importante na missão dos pastores da Igreja. Pede-lhes que cuidem seriamente da sua própria preparação humana, teológica e espiritual necessária para o exercício eficaz deste múnus. E igualmente que prestem a atenção necessária à devida preparação dos fiéis, à dimensão celebrativa do sacramento e a fixar em cada Igreja tempos destinados à celebração do sacramento (cf.RP n.º 29 e 32). Deste modo se poderão superar algumas dificuldades e objecções dos fiéis em relação à forma de celebrar este sacramento. Dimensão comunitária e social da reconciliação 10. A reconciliação não se reduz ao foro íntimo e pessoal. Com efeito, a reconciliação com Deus é indissociável da reconciliação com o próximo (Mt. 5, 24) e da reconciliação com a comunidade (LG 11). Esta dimensão comunitária é referida nas parábolas da misericórdia em que o Pai do pródigo não apenas oferece o perdão, mas deseja que todos participem da alegria e da festa. Não apenas acolhe o filho pródigo mas reintegra-o plenamente na dignidade de filho e na relação familiar. A reconciliação cria, na verdade, uma situação nova, uma forma nova de viver a relação com Deus e com o semelhante, consigo mesmo e com a vida: “Se alguém está em Cristo é uma nova criatura. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas. Tudo isto vem de Deus que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Cor. 5, 18-19). A reconciliação com Deus reflecte-se, portanto, na reconciliação comunitária e social, na superação dos conflitos e das divisões tão frequentes na vida familiar e social. Deste modo, aqueles que são reconciliados devem por sua vez tornar-se reconciliadores. É um papel de grande importância que hoje se pede à Igreja: tornar-se embaixadora da reconciliação numa sociedade em conflito. Vivemos, de facto, numa sociedade que experimenta dolorosamente o rompimento do tecido social: “talvez, como nunca na sua história a humanidade é todos os dias profundamente ferida e dilacerada pela conflituosidade” (ChL 6). Assim compreendemos o ministério da reconciliação que o sacramento confia àqueles que o celebram: com Cristo reconciliar todas as coisas, construindo a paz e o entendimento numa sociedade atravessada por conflitos e divisões. Situado neste contexto de conversão permanente, o sacramento da Penitência e Reconciliação deixará de ser uma celebração reduzida ao íntimo e desligada da vida, para se tornar caminho de reconstrução da existência cristã, numa maior fidelidade ao projecto de Jesus Cristo. Enriquecer o contexto litúrgico e pastoral do Sacramento 11. Alguns elementos celebrativos e pastorais do sacramento da Reconciliação precisam de ser valorizados em ordem a criar um contexto litúrgico e eclesial para a celebração do sacramento. O encontro pessoal entre o penitente e o confessor é um desses elementos a que se deve prestar atenção. É através do acolhimento, do diálogo, da exortação, dos gestos e da absolvição do confessor que o encontro com Jesus Cristo adquire forma visível e audível. Para favorecer este encontro é necessário estabelecer em cada comunidade horas e dias determinados para a celebração da Penitência. Considerem os sacerdotes a celebração deste sacramento como momento importante do seu ministério pastoral. Ao esperar e acolher os penitentes revestem a imagem do Pai do pródigo que acolhe com bondade e misericórdia e reconcilia com Deus e com a Igreja. Como várias vezes foi lembrado nesta Instrução Pastoral, a celebração do sacramento da Reconciliação é o cume de um processo de evangelização e de conversão. Assim não basta estabelecer horas e dias para as confissões. É igualmente necessário formar a consciência dos fiéis, despertar o sentido do pecado e orientar na conversão cristã. Procurem, portanto, os pastores oferecer uma catequese séria sobre a moral cristã bem como sobre a Penitência e a Eucaristia. A quadra litúrgica da Quaresma, mais indicada para a celebração do sacramento, deve também ser valorizada como tempo de aprofundamento da fé. Em ordem a desenvolver o sentido da conversão é aconselhável proporcionar aos fiéis celebrações penitenciais não sacramentais em que, através da escuta da Palavra de Deus, da oração e dos ritos, possam alcançar uma visão mais profunda do caminho de Jesus Cristo e tomar consciência das infidelidades ao projecto da Aliança com Deus. Formas de celebrar o Sacramento 12. Durante séculos a única forma de celebrar o sacramento era a confissão e a absolvição individual. Actualmente, seguindo as orientações do Concílio Vaticano II, o Ritual da Penitência apresenta, além desta, outras duas formas. Cada uma realça alguns aspectos do sacramento e permite adaptar a sua celebração a circunstâncias pastorais concretas. A primeira forma – a confissão e reconciliação de um só penitente – continua a ser a normal e valoriza aspectos importantes: o diálogo, a orientação de acordo com a situação, a decisão e o empenhamento pessoais (cf. RP 32). O diálogo pessoal com o confessor permite, de facto, prestar atenção e ajuda mais personalizada. A segunda forma realiza-se numa celebração comunitária mas a confissão e a absolvição são individuais. Tem maior abundância da Palavra de Deus através de leituras bíblicas e da homilia que podem aprofundar o conhecimento do projecto de Deus e a consciência de pecado. Por outro lado “evidencia melhor o carácter eclesial de conversão e da reconciliação” (RP 32). Será certamente enriquecedor para os fiéis oferecer-lhes esta forma de celebração nos tempos litúrgicos fortes garantindo a presença de confessores suficientes. A terceira forma – a reconciliação comunitária com absolvição geral – não pode ser adoptada senão “em caso de grave necessidade” regulado pelo Código de Direito Canónico (cânones 961-963), como já foi referido atrás. Quando se derem estas circunstâncias deve cuidar-se que a celebração comunitária conduza à descoberta das infidelidades pessoais e desperte a vontade de conversão, procurando assim que o recurso à terceira forma dê os frutos espirituais que se esperam do sacramento. Os critérios para estabelecer a qual das formas de celebração recorrer não poderão ser ditados por motivos subjectivos ou conjunturais mas pelo desejo de conseguir o verdadeiro bem espiritual dos fiéis. 13. Como o Código de Direito Canónico (can. 961, §2) dá ao Bispo Diocesano a competência para avaliar da “necessidade grave” que justifique a absolvição geral sem confissão individual dos pecados, sujeitando o seu discernimento aos critérios acordados pela Conferência Episcopal, para dar cumprimento ao previsto no referido can. 961, §2, determinamos quanto segue. 1. A forma normal de obter o perdão dos pecados graves e a reconciliação com Deus e com a Igreja é a absolvição com a confissão individual e íntegra dos próprios pecados (cf. can. 960 e CP 31). Esta exigência mantém-se mesmo quando se dá a absolvição geral, segundo as normas do Código de Direito Canónico. 2. A Conferência Episcopal Portuguesa julga não existirem nas Dioceses de Portugal situações habituais previsíveis em que se verifiquem os elementos referidos no Código de Direito Canónico como originando a “necessidade grave” para a absolvição geral sem confissão prévia. 3. Na eventualidade de surgirem situações excepcionais, o Bispo Diocesano providenciará para que tanto os presbíteros como os fiéis procedam correctamente. Existe uma necessidade grave quando se verificarem cumulativamente as seguintes condições: falta de sacerdotes suficientes para que, dado o número de penitentes, cada fiel possa ser ouvido dentro de tempo razoável e, sem culpa própria, seja obrigado a permanecer, durante muito tempo, privado da graça sacramental e da sagrada comunhão; não se considera, porém, existir necessidade suficiente quando não possam estar presentes confessores bastantes somente por motivo de grande afluência de penitentes, como pode suceder nalguma grande festividade ou peregrinação (CDC, can. 961 § 1, n.º 2; CP 31). 14. Para obviar a discrepâncias fáceis e a interpretações subjectivas, umas e outras prejudiciais e negativas em matéria de tal importância e delicadeza, é conveniente que se promovam nas dioceses encontros de sacerdotes para reflectirem em comum estas orientações e para promover o modo de agir que exprima, favoreça e testemunhe a unidade e a comunhão no presbitério. De igual, esclareçam-se as comunidades cristãs sobre o sentido deste procedimento excepcional e a doutrina da Igreja sobre o sacramento da Penitência e sua celebração. Conclusão 15. A santidade é dom de Deus oferecido a cada baptizado. É a “medida alta da vida cristã ordinária” (NMI 31) e “o horizonte para que deve tender todo o caminho pastoral” (NMI 30). Os percursos da santidade são pessoais e adequados à vocação de cada um. Sendo diversos, todos convergem para a descoberta de Cristo como “mysterium pietatis, no qual Deus mostra o seu coração compassivo e nos reconcilia plenamente consigo” (NMI 37). A Penitência e o sacramento da Reconciliação são meios privilegiados para a experiência renovadora desse encontro. A Quaresma, tempo litúrgico de preparação para a vivência do Mistério Pascal, é tempo particularmente favorável de conversão. Ao iniciá-la, queremos oferecer aos cristãos portugueses esta Instrução Pastoral, esperando que os ajude a redescobrir a Penitência e o Sacramento da Reconciliação como elementos indispensáveis para a peregrinação em direcção à santidade, meta de toda a vida cristã. Lisboa, 28 de Fevereiro de 2001 (Quarta-feira de Cinzas) SIGLAS CDC Código de Direito Canónico, 1983. ChL JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles laici, 1988. CIC Catecismo da Igreja Católica, 2.ª edição, 1997; tradução portuguesa, Coimbra, 1999. CP Ritual Romano – Celebração da Penitência, 2.ª edição; tradução portuguesa, Coimbra, 1997. LG CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen Gentium, 1964. MFS Mensagem final da II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa, 22 de Outubro de 1999, n.º 5. NMI JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo millennio ineunte, 2001. RP JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Reconciliação e Penitência na missão actual da Igreja, 1984.