O médico perante a morte

A vida humana suporta todos os outros valores, nomeadamente a existência da consciência reflexiva e é a base de todos os direitos de cidadania 1. A formação clássica do médico iniciava-se no contacto com o corpo morto. O estudo da morfologia dos órgãos humanos fundamentava na manipulação de corpos há muito sem vida, frequentemente fragmentados e completamente desligados do seu contexto significante. De facto, no curriculum médico académico tradicional apenas posteriormente se iniciava, pouco a pouco, o estudo das funções dos órgãos e a integração de conhecimentos dispersos e estáticos num todo onde a imagem do corpo humano surgia como um conjunto equilibrado e extremamente complexo de órgãos com funções integradas, complementares e interdependentes. Desde o início o jovem médico moldava a sua formação pela omnipresença da morte. As tecnologias actuais de processamento da imagem tornam o corpo humano transparente permitindo o estudo das morfologias dos órgãos activos e em vida, necessariamente diferentes das do corpo morto, e mais de acordo com as intervenções das actividades habituais dos médicos, que se exercem predominantemente no corpo humano com vida. Na actualidade procura-se realçar a integração da saúde e da doença nos comportamentos humanos. Nas escolas das ciências da saúde, a Anatomia do corpo humano, de que não foi nem será certamente possível prescindir na formação médica, é agora companheira da Epidemiologia e das Ciências Antropológicas, disciplinas que estudam os homens integrados num ambiente específico e numa sociedade, entidades das quais depende o seu equilíbrio e a sua estabilidade. Demonstrou-se que a saúde e a doença, as condições da vida e da morte, estão estritamente dependentes das circunstâncias em que os homens, as mulheres e as crianças vivem as suas vidas. A morte tem um lugar de menor relevo na formação actual dos médicos. 2. As pessoas que se encontram no período terminal das suas vidas, por serem portadoras de doenças que inexoravelmente terminam com a morte, têm escassas probabilidades de encontrar nos hospitais actuais as condições adequadas para o seu tratamento. O pessoal médico e de enfermagem está mais preparado para tratar doenças agudas e rapidamente evolutivas do que para tratar as doenças crónicas e de prognóstico fatal. De um modo geral, o sistema de cuidados de saúde está mais adaptado aos cuidados da medicina curativa e de reabilitação do que aos cuidados da medicina paliativa que se destina aos doentes portadores de doenças crónicas, progressivas, invalidantes e fatais. Os objectivos da terapêutica estão apontados predominantemente para os sofrimentos físicos e minimizam o enquadramento psicológico, social, cultural e espiritual. Este facto traduz-se na incipiente preparação no pessoal de saúde nos domínios da medicina paliativa e na ausência de instituições dedicadas àquelas actividades em muitas comunidades. A própria arquitectura dos hospitais tradicionais está mal adaptada para permitir aos doentes em situação terminal a privacidade, o conforto e a ligação à família que a abordagem adequada das suas situações exigiria. 3. O termo da vida é um fenómeno natural. Tanto como o seu início. A vida humana suporta todos os outros valores, nomeadamente a existência da consciência reflexiva e é a base de todos os direitos de cidadania e de espiritualidade. A vida humana não adquire nem perde o seu valor por se situar em condições limite, por mais precárias que sejam, nomeadamente por existir uma doença progressiva e fatal. O valor da vida pode entrar em conflito com o valor atribuído a uma morte digna, já que este valor se encontra ligado à imagem integral da pessoa. Neste sentido os médicos e, de um modo geral todo o pessoal de saúde, têm o dever de contribuir para reunir as condições para tratar adequadamente, os doentes em situação terminal, segundo as possibilidades da arte médica e as capacidades reais da sociedade. Têm o dever de manter um diálogo verdadeiro e aberto de modo a manter a confiança dos doentes e das suas famílias, respeitando as suas vontades expressas. Têm o dever de não transmitir precipitadamente informações, que, ainda que verdadeiras, possam induzir a angústia ou o desespero. Têm o dever de utilizar adequadamente os meios de intervenção da medicina paliativa e de fomentar, na medida possível, a organização de cuidados paliativos, nomeadamente, nas comunidades locais. E têm sempre o dever de não recorrer aos tratamentos fúteis, inadequados e desproporcionados à situação dos doentes que neles confiam. Alexandre Laureano Santos Médico

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