A pandemia trouxe muitas restrições à forma como decorrem hoje as cerimónias fúnebres. Será que a experiência do ‘novo normal’ que vivemos pode deixar marcas a este nível?
Nestes dias em que, apesar das restrições, muitos portugueses não deixarão de homenagear os seus mortos, conversamos com José Eduardo Rebelo, da Universidade de Aveiro, fundador da associação APELO.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
É biólogo de formação, mas há vários anos que se dedica à investigação na área do luto. Sabemos que foi na sequência de uma tragédia pessoal que decidiu criar a APELO, uma associação que ajuda pessoas e famílias enlutadas. Constatou que esta sua experiência pessoal que fazia falta apoio a este nível?
Já existia uma associação de apoio a pais em luto, ‘A nossa âncora’, mas que se dedicava exclusivamente a esta área, e particularmente através do grupos de entreajuda. Eu achei que, de facto, ao nível do luto em termos globais, dos diferentes tipos de luto – por perda de filhos, mas também por viuvez, e por perda de pais, etc. – não existia, e nesse sentido decidi, em 2004, fundar precisamente a APELO.
Mais tarde verifiquei que era necessário alargar o campo de ação, porque ainda existia uma resistência muito forte por parte da comunidade em geral, mas também de certos setores mais esclarecidos, a nível académico, por exemplo, em relação a esta temática. Em relação à morte, a começar, e na sequência em relação ao luto, em relação à expressão das emoções provocadas por perdas pessoais profundas, como costumo designar. Nesse sentido, convidei colegas de diferentes academias – da Universidade de Lisboa, da Universidade do Minho e de Coimbra – e organizámos na Universidade de Aveiro uma reunião para debater esta questão e tomar medidas. E foi nessa sequência que criámos a Sociedade Portuguesa de Estudo e Intervenção no Luto (SPEIL), tendo em consideração que era necessário dar um salto qualitativo. Em função disso criei também o Espaço de Luto, que tem uma vertente mais para a área formativa e de investigação. Então, particularmente a partir de 2010 demos um salto qualitativo na abordagem na temática do luto em Portugal.
É possível perceber o que é que já mudou de forma positiva na abordagem ao fenómeno do luto?
Olhe, uma das primeiras iniciativas que tomámos foi organizar congressos sobre o luto. Trouxemos cá os maiores especialistas a nível mundial, fizemos cinco edições do Congresso ‘O luto em Portugal’ e um congresso mundial, alternadamente entre a Universidade de Aveiro e a Universidade de Lisboa, e chegámos à conclusão que, embora tenhamos aprendido sempre coisas, as estratégias que eles utilizavam não nos eram estranhas. O trabalho que desenvolvíamos aqui era um trabalho equiparado – e nalguns casos melhor – àquilo que se fazia noutros países com tradições, como são os anglo-saxónicos, que têm abertura e ação efetiva para a ação comunitária, os grupos de entreajuda, etc.
O que é que em 10 anos verificámos? Que durante esta década se alterou uma disponibilidade das pessoas – porque tem havido divulgação da nossa parte para esta temática-, mas também de determinados setores, nomeadamente a nível académico. Já se fazem teses de doutoramento e mestrado, o luto já chegou às academias e já começa a ser investigado de uma forma que não era, de todo, antes de termos dado este impulso. Ora, isso é extremamente positivo. Obviamente que não vamos mudar esta situação de um dia para o outro, mas estamos a lançar bases.
Continua a existir uma certa indisponibilidade das pessoas para procurarem apoio institucional junto dos Conselheiros do Luto, que também fomos nós que criámos, porque não existiam especialistas no apoio ao luto. De qualquer forma vamos caminhando no sentido de dar passos, de consolidar…
Dou um exemplo muito concreto: na sequência dos incêndios de 2017, que provocaram uma grande tragédia comunitária, com bastantes mortes, foi decidido pelo Estado promover uma ação comunitária direta na região, e fomos convidados, e estamos a exercer essa ação como ‘consultores’ para um grande projeto de ação comunitária de capacitação para apoio ao luto, e de apoio ao luto por ação comunitária. Portanto, de facto, já se dão passos e vão surgindo reflexos da nossa atividade.
Vamos, então, falar das ações de formação que promovem, nomeadamente o curso de Conselheiros do Luto, e das sessões que têm marcadas para este mês de novembro. ‘Desatar o nó do luto’, é o tema da formação marcada para dias 16 e 17, mas há outras previstas, com outros temas, como ‘O desgaste (burnout) do cuidador’, o ‘Luto no idoso’, ou ‘Comunicar a morte’. Há muita procura por estar formações? E quem é que procura?
Temos duas áreas de formação, uma é o curso de Conselheiros do Luto, e depois as outras, que referiu, que são ações de formação de 8 horas, enquanto que o curso de Conselheiros do Luto decorre durante mais de 80 horas. Qual é a diferença? É que fruto da nossa experiência, chegámos à conclusão que fazia falta em Portugal a especialidade em apoio ao luto.
Eu sou biólogo, mas em consequência de uma tragédia pessoal tive que me repartir por estas duas áreas de investigação, e decidi criar o curso de Conselheiros do Luto porque, dando aulas de biologia a alunos do curso de Psicologia da Universidade de Aveiro, e em colaborações com o curso de enfermagem, aqui na Escola de Saúde (Aveiro) e por aí, pelo país fora, desde Viana do Castelo até Beja e ao Algarve, constatei que a formação nas áreas de saúde e na área social da psicologia, não eram capacitantes do ponto de vista de luto. O luto era dado assim a correr, numa aula, ou isso, mas não havia uma especialidade.
Na Sociedade (SPEIL) falei com o meu colega António Barbosa, da Faculdade de Medicina, e disse-lhe que tínhamos de mudar este paradigma no nosso país, e criar especialistas em luto, com duas vertentes a considerar: a vertente da ação comunitária, do apoio ao luto sadio, que é a esmagadora maioria – 90 por cento dos lutos que as pessoas vivenciam, experienciam, são de natureza sadia -, e depois os lutos psicopatológicos, que têm de ser tratados sob supervisão psiquiátrica. Coloquei-lhe a questão nesses termos, de termos de criar dois tipos de especialistas no nosso país, os Conselheiros do Luto e os Terapeutas do Luto.
O que é que faz especificamente um Conselheiro do Luto?
O que faz é ouvir e não censurar a pessoa. Basicamente a estratégia do apoio ao luto é ouvir empaticamente e não julgar.
No luto, em função de uma perda pessoal profunda, as pessoas vivenciam situações absolutamente anormais em relação àquilo que elas próprias conhecem de si. É um processo extremamente doloroso, que se pode prolongar mais ou menos no tempo. Agora, se for um processo partilhado é mesmo sofrido e demora necessariamente menos tempo. Partilhado com quem? Quando existe uma rede social familiar que permita à pessoa falar – porque o enlutado necessita exclusivamente de falar, ser ouvido, sem condições, porque não está disponível para ouvir, só está disponível para ser ouvido…
E o Conselheiro do Luto faz isso?
Faz isso. Ouve, cria um espaço de segurança para a pessoa partilhar tudo e mais alguma coisa, sem ser julgado e de forma segura, para que a pessoa não se exponha. Ela já vive numa vulnerabilidade emocional, é preciso que essa vulnerabilidade emocional não se torne numa vulnerabilidade social. Basicamente o Conselheiro do Luto centra-se na pessoa, ouve aquilo que a pessoa vai dizendo, e depois, através do meu modelo, existem vivências de sujeição, vivências de assimilação da perda, sujeição à perda, e o que vai fazendo é devolver à pessoa os elementos que são elementos de assimilação, no sentido de ela progredir no processo do luto de forma mais tranquila, dentro do possível.
Como é que as pessoas que precisarem podem aceder aos conselheiros do luto? Há muitos, no país?
É muito simples: na página apelo.pt, as pessoas têm no menu a opção “pedido de apoio para o meu luto”. Clicam, há um formulário, as pessoas preenchem e passadas 48 horas, no máximo, obtêm um contacto telefónico. Se não estiverem familiarizadas com a internet, ligam para o 917 052 052, todos os dias úteis, entre as 14h00 e as 17h00, comunicam e é marcada uma sessão, que pode ser feita presencialmente – se a pandemia deixar – em Aveiro, Lisboa, Estremoz e Coimbra -, ou à distância para todo o país e para todo o mundo.
Usou uma expressão que marca muito os últimos meses: se a pandemia deixar. Em condições, os dias 1 e 2 de novembro são de romagem, peregrinação interior e exterior aos cemitérios. Este ano, com as restrições de deslocação impostas pelo Governo, provavelmente há rituais que não se vão cumprir, da mesma maneira que houve rituais que não se cumpriram, no confinamento. Isto pode deixar marcas, no futuro?
Eu devo esclarecer, à partida, que o luto se faz sempre e não é um trauma psicológico, não é uma doença. Se fosse uma doença, estaríamos todos mortos, porque ao longo da vida passamos por cerca de 40 perdas, a começar pela perda da infância, da adolescência, e depois as perdas pessoais profundas. Não sobreviveríamos a elas. Mas nós sobrevivemos, isto é, estamos capacitados biologicamente para enfrentar e superar as perdas. O luto faz-se sempre.
Como referi, pode ser de forma mais dolorosa, sofrida, de forma mais demorada ou menos demorada, mas faz-se. Os rituais, obviamente, ajudam a criarmos rotinas relativamente a este mesmo processo, bengalas, se quiserem, para nos apoiarmos nos momentos em que estamos mais desequilibrados. Mas, passado esse tempo, sendo uma bengala mais cómoda ou não, mais ou menos baixa, o que é certo é que continuamos a nossa marcha e recuperamos… recuperamos, não, criamos um novo equilíbrio.
O que se passa pelo meio são muitos acidentes de percurso, nomeadamente este que estamos a viver, agora. Ele é significativo para as pessoas, mas tem uma curiosidade: é de natureza comunitária, ou seja, afeta todos. Enquanto que, por exemplo, quando há uma pessoa que no seu processo de luto é afetada por uma circunstância qualquer e não pode reagir, por uma ou outra razão, essa pessoa poderá ficar mais afetada – porque não se pôde despedir do ente querido porque está muito longe, saiu em viagem, ou porque sofreu uma doença incapacitante -, aí haverá outro problema.
Quando se trata de um evento de natureza comunitária, claro que individualmente as pessoas se sentem revoltadas – que faz parte do processo de luto, a revolta -, isso provoca tristeza, culpa, mas são episódios, passageiros, em relação ao luto.
Referiram a palavra trauma e eu acho que é excessiva. Eu acho que não provoca trauma, provoca desequilíbrios, problemas, mas as pessoas superam. Trauma, para mim, é algo que fica para o resto da vida e é extremamente complexo. Ora, o luto é um processo sadio.
Mas com estas alterações que houve durante a pandemia, nos rituais das cerimónias fúnebres, que marcam profundamente algumas pessoas, não acha que tem havido algum exagero neste âmbito, por parte das autoridades?
Desde há 100 anos, nunca tínhamos enfrentado tão grave, em que a espécie humana pode estar em risco, é uma ameaça global, que é a própria natureza a confrontar-nos com isso. Nesse sentido, é necessário tomar medidas. Qualquer decisão que seja tomada acaba sempre por ser criticada: ou porque peca por defeito ou porque é em excesso.
Se – porque considero que o luto é um problema de saúde pública – já existisse, a nível global, uma disponibilidade para o apoio ao luto e os conselheiros do luto fossem reconhecidos, se estivessem nos Centros de Saúde, este tipo de respostas seria mais fácil. Ajudando, nomeadamente, as pessoas que se veem confrontadas com limitações, relativamente aos seus rituais.
Muitas pessoas vão passar estes dias a pensar no que não puderam fazer. Seria bom que a família, os grupos mais próximos, procurassem alternativas, até recorrendo a novas tecnologias?
O luto é individual. Quando eu amo determinada pessoa, ninguém consegue imaginar a dimensão, os laços intrincados que crio, laços de sobrevivência – por isso é que o luto é tão complicado. Quando me ligo com a esposa, o meu filho, o meu pai, a minha mãe, estes laços são apertadíssimos. Então, o luto, como costumo dizer, é um processo dramaticamente solitário. Claro que as pessoas encontram estratégias comunitárias de resposta, para se sentirem mais confortáveis.
Uma dessas estratégias é a cerimónia com toda a gente no cemitério, isso normaliza o que é individual.
As pessoas também têm de pensar que está em risco a sua própria vida, se se deixarem contaminar. Temos de balancear isto, nesta perspetiva, e encontrar formas individuais de estabelecer memórias aprazíveis relativamente à pessoa perdida.
Claro que é possível – com as redes sociais, a internet – criar formas de as pessoas se encontrarem. Não é mesma coisa, porque estão habituadas a um ritual, e isto exige muita imaginação, da nossa parte. Como vocês sabem, os portugueses têm uma grande capacidade adaptativa.
Do ponto de vista individual, do luto, cada um deve encontrar o seu memorial. Por exemplo, há um evento que se chama “acenda uma vela” e que é em memória de filhos. Pode criar-se uma coisa desse género, em que a pessoa põe uma vela elétrica na janela ou põe uma tarja de determinada cor. Ou põe à janela a coroa de flores que ia colocar no cemitério. Não está no local, mas está, a nível global, a demonstrar a memória que tem da pessoa perdida.