O legado social de D. Manuel Martins

Padre Constantino Alves

Um legado… não é para guardar no cofre. Mas é para na fidelidade a esse legado, fazer render, frutificar

O enquadramento: importa relembrar o contexto em que ele encontrou quando em 1975 veio para setúbal, período quente de acções e lutas transformadoras e revolucionárias, hostilidades e desconfianças sobre a igreja, fosso entre classe opera´ria e igreja e pouco depois, a partir de1980 o descalabro económico, a crise dos salários em atraso, a fome, o desemprego, o ruir do macro aparelho produtivo concentrado em grandes empresas e sectores de atividade… as notícias que encheiam as páguians dos jornaios com dramas e tragédias e as televisões faziam chocar toda a gente pela crueza e dor das famílias…

O seu legado em documentos, livros, histórias de vida, objectos, testemunhos é muito importante mas o mais importante será a herança que a todos nos deixou e que se torna vida em nossas vidas ou os desafios que nos levanta

I – O SEU LEGADO DO PONTO DO MEU PONTO DE VISTA E DA MINHA HISTÓRIA PESSOA DE SACERDOTE

  • Historial da minha relaçãocom D. Manuel, professor no Seminário diocesano do Porto, vinda para setúbal em 1978, três anos, depois,
  • Palavras marcantes na minha ordenação sacerdotal em 1980: O mundo operário apresenta-te á Igreja para que a Igreja te faça padre e a igreja envia-te ao mundo operário para aí anunciares a Boa Nova da libertação de Jesus…”.
  • Ao longo destes 37 anos de padreele tem sido um elemento inspirador fundamental, desde padre operário e dirigente sindical e coordenador dos Metalúrgicos nesta zona de Setúbal durante 8 anos, sendo simultaneamente vigário paroquial na paróquia do Lavradio, até à minha vida de pároco na Nª Srª da Conceição, desde há 17 anos, tendo sido membro do Conselho presbiteral no seu tempo, procurando acolher e dar-me ao povo, encarnar e assumir a sua vida.
  • Nos últimos anos estava presentepela sua inspiração e palavras de encorajamento e felicitações em lutas sociais e acções em favor do povo, de que a Comunicação Social se fazia eco, até à recente constituição do Centro Social paroquial D. Manuel Martins, e ainda com o seu acordo sobre o nome a dar, o Restaurante Social, Clínica social dentária, valências culturais e outras…
  • Recordo tantas conversas durante ao almoço ou jantar com ele em que o punha ao corrente sobre o que se passava nas empresas atingidas pelos salários em atraso, desemprego, fome…
  • Guardo e agradeço o carinho que sentia nele.

II – PERFIL DE D. MANUEL

1 – Um bispo que vivia o carisma da profecia e da esperança

  • Voz de quem não tinha voz nem vez
  • Acolhia trabalhadores, famílias e representantes de trabalhadores, sindicatos, comissões de trabalhadores, descia às fábricas mesmo aquando estavam em conflito…, procurava entendimentos ou exigia, pura e simplesmente, tudo em favor dos desgraçados e vítimas da miséria.
  • A suz voz forte denunciava a fome, a injustiça, a exploração dos trabalhadores.
  • Não tinha uma linguagem do politicamente correcto embora dialogasse com todos, empresários, governo, autarquia…
  • Não roçava as saias do poder,mas era firme e corajoso:“há fome em Setúbal ; Se Portugal é Nanfarros então em Portugal não há fome…” desafia frontalmente o Dr. Mário Soares que negava evidências e caracterizava os Representantes dos trabalhadores de Setúbal como agitadores profissionais
  • Bispo vermelho: se isso quer dizer que luto pela justiça, então tenho muito orgulho em que me chamem isso!
  • Recordo emblematicamente a sua ida á empresa Clérigo lda, no Alto da Guerra, por sinal a empresa onde eu era operário e que tentou demover uma empresa de leasing a não aplicar o garrote da falência e o despedimento capitalismo e face à sua intransigência afirmava com enorme desgosto e indignação: “ O capitalismo é um monstro…”
  • Ou então:
  • O “Governador civil está desesperado porque não consegue esconder a fome…” isto depois dele ter declarado à comunicação social que “é preciso que se saiba que há padres na CGTP-IN, como se isso fosse um crime…

Há dois anos ele confidenciou-me: Sabes, um dia quando me cruzei com os trabalhadores em manifestação continuei o meu caminho para a missa na Sé. Hoje sinto que devia marchar com os trabalhadores….”

Também sofria com contradições e silêncios na Igreja e seu distanciamento dos pobres:

  • “Umaigreja que não incomoda é uma igreja que não serve”. E repetia muitas vezes: “É preciso incomodar o poder e não pedir em esmola o que é devido por direito. Vão incomodar quem governa e tem o poder de tomar decisões…”
  • Por vezes, na catedral no final das Eucaristia dizia: “Não digo, ide em paz, mas ide e fazei a guerra contra….”
  • A dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a justiça social, centrais na sua pregação.

2 – Um bispo do povo, entre o povo e para o povo

  • Simples, vivendo modestamente, misturando-se com o povo, interessando-se pela vida do povo
  • Um bispo acolhedor dos trabalhadores, problemas e atitudes, consciente do valor do trabalho e da evangelização do mundo do trabalho acarinhava, valorizava os Movimentos de Acção Católica operária, Joc e Loc e a sua metodologia, a revisão de Vida, Ver, Julgar e Agir, promotor da Justiça e da paz, criando a respectiva Comissão
  • Não se ficava por palavras: organizou respostas de acção social directa, Fundo Diocesano de solidariedade ou Centros Sociais Paroquiais, partilha financeira com famílias com fome ou que não podiam pagar rendas de casa, água luz…, mas não ficava pela acção directa assistencial ou cooperava com o lançamento da OID – Operação integrada de desenvolvimento, Plano de Emergência de Setúbal.
  • Clamava contra as causas geradoras da pobreza e pelos direitos humanos.
  • Um bispo que clamava justiça e solidariedade eque antecipava já o papaFrancisco quando escreve na Alegria do evangelho” nº 189: “ AIgreja guiada pelo evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem escuta o clamor pela Justiça e deseja responder com todas as suas forças. Isso envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturaisda pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade….” E no nº 191: “ os cristãos são chamados em todo o lugar e circunstância a ouvir o clamor dos pobres…”

 

3 – Um bispo com espírito do Vaticano II

  • Uma igreja aberta, arejada, em diálogo com o mundo, margens, periferias, sectores… não cristãos de sacristia como muitas vezes afirmava…
  • Uma igreja pobre e para os pobres e que vive a dimensão social do Evangelho e coloca os pobres no centro e na prioridade da evangelização.
  • O papa Francisco em a Alegria no Evangelho escreve no nº 48: “Não devem subsistir dúvidas…Hoje e sempre os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho.Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos sozinhos”.
  • Igreja de comunhão e participação: Assembleias, debates, confrontos e debates de ideias e não consensos cinzentos, promovia a unidade, mas não a confundia com o uniformidade, monocórdica.
  • Promotor da identidade e missão dos leigos que faziajá pensar no para Francisco no nº 102 da Alegria no Evangelho: “ Apesar de se notar uma maior participação nos ministérios laicais este compromisso não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da igreja sem empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade.”

4-– Um bispo que atraía comunidades de vida religiosade forte pendor profético e opção pelos pobres,

5 – Um bispo que estruturou os diferentes serviços da diocesecom meios humanos muito reduzidos e recursos muito precários, lançou o Diaconado permanente ou o seminário diocesano.

6 – Um bispo afável, mas com um espírito crítico, espírito iluminador e acutilante, que continuou sempre a amar a diocese, alegrando-se ou sofrendo

7- A atualidade do seu legado social:

Um bispo cujo legado permanecena vida e acção de muitos cristãos ou não cristãos que revêem na sua inspiração as suas vidas, valores e intervenções, o trabalho, um direito, a defesa dos direitos dos desempregados.

O papa Francisco no Nº 52: Não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive precariamente com funestas consequências.”        

O papa Francisco no nº 89 da “Alegria do Evangelho escreve: “Mais do que o ateísmo o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo desencarnado e sem compromisso com o outro”.

  1. Manuel nos desafia para:
  • Uma igreja que deve ter opções evangélicas claras, firme e orientadoras que não se fique em boas intenções, mas que as transforme em projetos de libertadores e solidários e saiba priorizar e que o homem, os pobres e a sua vida seja o pondo de partida e o centro das suas opções pastorais.
  • Umaigreja ou um cristianismo que não deve ser monocultural e monocórdico onde se confunde unidade com uniformidade e que abafa as expressões culturais, religiosas e simbólicas dos povos.
  • Uma igreja que forme os seus fiéis não para as sacristias, mas para fermento no mundo da família, da cultura, da educação, da juventude, da economia, da política do associativismo… A este propósito cito de novo o papa Francisco no nº 70 da Alegria no Evangelho: “Há um certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual e sentimental da fé -.Alguns promovem estas expressões sem se preocupar com a promoção social e a formação dos fiéis…”
  • Uma igreja que desperte e eduque para o compromisso social, cívico e políticoque como escreve o papa Francisco em “Alegria do Evangelho” :“Deriva da nossa fé em jesus Cristo que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados… Isto supões estar docilmente atento para ouvir o clamor do pobre e socorre-lo.”Nº 186  e 187.
  • Um mundo onde 1% ficou com 80% da riqueza criada em 2017
  • Um mundo do trabalho onde as injustiçase a violência sobre a dignidade e segurança dos trabalhadores são enormese prevalece em muitos sectores da Igreja uma análise e olhar neoliberal da economia, do trabalho, daas transformações e das lutas dos trabalhadores. Sobre esta realidade o Papa Francisco no nº 192 da “Alegria do Evangelho” escreve: “Isto engloba educação, acesso aos cuidados de sasúde e especialmente trabalho, porque no trabalho livre, criativo, participativo e solidário o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens…”
  • Um mundo onde a Casa Comum é assaltada, e vilipendiada na voragem do lucro e os pobres são os mais sacrifk,icados
  • Um mundo que precisa duma alma solidária, fantasia da caridade, partilha de bens…de esperança!

… A continuar a sonhar, a lutar e a acreditar …e no fim de tudo a agradecer!

Graças a Deus pelo D. Manuel, nosso primeiro Bispo pastor em Setúbal. Sejamos dignos do legado que nos deixou!

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Agência ECCLESIA

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