O «Pe. Larguezas» nasceu há 120 anos mas o seu pensamento via “mais longe do que nós” “Não percam nada do que ele vai dizer porque tudo será muito importante. Olhem bem para ele. Verão que ele tem os olhos muito grandes. Por isso vê muito mais e muito mais longe do que nós. Ouçamo-lo” – foi assim que D. Manuel Vieira de Matos o apresentou num congresso realizado em Braga. Noutra ocasião, D. António Ferreira Gomes definiu-o como “grande homem da Igreja, ele é por isso homem de todo o mundo. Profundamente português e europeu pela cultura, fez-se missionário em África; e, pelas condições sanitárias de então, esteve a ponto de dar a vida pela missionação do continente negro. Homem de inteligência e de cultura cristã, nada de humano e cristão podia considerar-se alheio a si; e, porque o sentiu e o disse, veio a morrer exilado na Norte-América”. Quem foi então este homem que as duas «vozes» da Igreja definiram como visionário das décadas posteriores? Referimo-nos ao Pe. Joaquim Alves Correia nascido em Aguiar de Sousa (Paredes), a 5 de Maio de 1886, e sacerdote da Congregação dos Missionários do Espírito Santo (Espiritanos). Filho de modestos lavradores, Joaquim Alves Correia fez o curso secundário em Ermesinde, a Filosofia em Sintra e a Teologia em Chevilly (França). Quando recebeu a ordenação (em 1910) o seu destino eram as Missões em Angola mas a revolução republicana trouxe ventos contrários e acabou por seguir para a Nigéria. Nove anos depois voltou à Europa para colocar em ordem a sua saúde que estava profundamente abalada. O «presente» do Exílio nos Estados Unidos Depois de recuperado assumiu a direcção da revista missionária da sua congregação – «Missões de Angola e Congo» – e, em 1922, o cargo de Procurador das Missões, lugar em que permaneceu até 1945. Em Lisboa, contactou com muitas figuras da oposição ao Estado Novo. Chegou mesmo a participar activamente no Movimento Democrático de Campanha pelas Eleições Livres, em 1945. A sua faceta de “profeta e homem de Deus suplanta toda a manipulação política que já se fez ou, quiçá, se venha a fazer” – (Rocha, Nogueira; In: Revista: «Brotéria» de Maio-Junho de 1986). Estas conotações políticas tiveram impacto devido à recusa de publicação de artigos seus no jornal «Comércio do Porto» mas que Raul Rego publicara entretanto no jornal «República». Nestes denunciava “uma política de vigilância que não dava satisfações a ninguém” e o ser “muito cómodo, mas muito pouco corajoso, atirar à cara deste povo irrequieto com a responsabilidade da desordem pública, quando o pobre povo nem responder sabia”. Devido aos comentários corajosos recebeu como «presente» o exílio nos Estados Unidos. As brisas da revolução ressuscitam os seus heróis e canonizam os mártires da sua causa. O «25 de Abril» não escapou à regra. Para além da homenagem particular que D. António Ferreira Gomes lhe quis prestar, como bispo do Porto e seu antigo amigo, com uma sessão solene na Aula Magna da Faculdade de Letras do Porto e inauguração do seu busto na terra natal, a 6 de Maio de 1978, fora ganhando corpo a ideia da atribuição da condecoração como Grande-Oficial da Ordem da Liberdade, pela Presidência da República. O que aconteceu pelo alvará de 24 de Abril de 1980, publicado no Diário da República, n.º 148, 2ª série, de 30 de Junho e 1980. Esta condecoração, a título póstumo, do Pe. Alves Correia foi “ocasião, para vários meios de Comunicação Social, relembrarem a figura gigantesca desse combatente da liberdade, modelo de cristão autêntico, que desde a sua mocidade tinha dedicado inteiramente a sua vida a Deus e aos irmãos” (Rocha, Nogueira). Apesar destas luzes da ribalta, este sacerdote Espiritano não foi (em algumas situações) apresentado como “um verdadeiro e autêntico discípulo de Cristo mas antes como um revoltado, um «guerrilheiro da liberdade»” (Rocha, Nogueira). Faltavam algumas décadas para o Concílio Entre livros e artigos dispersos em revistas, o Pe. Alves Correia deixou muitos escritos. O pensamento cristão deste homem ficou expresso em diversas publicações: «Lúmen», «Estudos», «Seara Nova», jornal «Novidades», «Jornal do Comércio» e «Comércio do Porto». Os seus livros deixam uma marca de intemporalidade embora seja necessário situá-los no tempo. “A largueza do Reino de Deus” (escrito em 1931) e o “Cristianismo e a Mensagem Evangélica” (de 1941) foram obras saídas da sua pena e que merecem ser saboreadas. O primeiro teve tanto impacto em Portugal que o seu autor passou a ser conhecido como «Pe. Larguezas». Um livro “adiantado no tempo” (Magalhães, Arlindo; in: Revista «Mensageiro de S. António», de Maio de 2004). Visto aos olhos de hoje parece fácil mas ainda faltavam algumas décadas para a realização do II Concílio do Vaticano. “E na atmosfera salubre da lealdade, todos nos entenderemos, numa tolerância que não atenuará em nada a intransigência das nossas convicções, até que o erro se dissipe, até que os mal entendidos se desfaçam, até que possa, enfim, haver, talvez ainda na terra, um só redil visível e um só visível pastor” (In: «A Largueza do Reino de Deus»). E acrescenta mais afirmações incisivas: “Nós, os cristãos, temos de ser os campeões do direito da consciência alheia e da nossa e do amor ao povo oprimido e espezinhado, não porque é do nosso tempo a democracia, mas porque era ser hipócrita ter o Evangelho por bandeira e acamaradar com os tiranos, com o egoísmo, com o orgulho”. Perante estes alertas até apetece citar a quadra de António Aleixo. “O pão que sobra à riqueza / distribuído pela razão / matava a fome à pobreza / e ainda sobrava pão”. Os caminhos e pensamentos de carácter político-social apontados pelo homenageado não lhe retiram sabedoria noutras áreas da pastoral. “Impressiona a vastidão do seu domínio da Sagrada Escritura, donde soube tirar lições para aplicar às circunstâncias concretas da vida. Queixava-se ele de que havia quem visse nos seus escritos «laivos de heresia» (Freire, José Geraldes; In: «Resistência Católica ao Salazarismo-Marcelismo). Na sua obra «O Cristianismo e Mensagem Evangélica» apresenta larga fundamentação bíblica sobre os temas: «Direitos e dignidade do homem» e «Igualdade Cristã». Nela, o Pe. Alves Correia sublinha que “não se podem levantar mais alto os direitos sagrados da pessoa humana, das almas, das consciências. O Evangelho deu a esses direitos categoria de divinos” e “a dignidade da pessoa humana é tão alta que, diante dela, desaparecem, como fúteis, todas as dignidades que os homens inventaram”. Publicado dez anos após a «Largueza do Reino de Deus», este opúsculo do «Pe. Larguezas» é um resumo da mensagem cristã aos homens de «ontem e de hoje». Pensou largo Exerceu a sua missão “de profeta com arrojo e lucidez” e previu “a quase totalidade das reformas que o II Concilio do Vaticano adoptou e mandou pôr em prática” – (Rocha, Nogueira). Quando morreu, a 1 de Junho de 1951, tinha outro livro em preparação que nunca foi publicado. Dera-lhe o título de «Memórias de um sacristão» e nele estava prevista praticamente toda a reforma litúrgica depois adoptada pelo Concílio. Tanto nos artigos como nas obras, este missionário Espiritano “criticava os desvios, erros e abusos que feriam a sua sensibilidade cristã”. Como tinha uns «olhos grandes» e «via claro», a missão não se esgotou na pena. “Numerosas assembleias acorriam para o ouvir em conferências e sermões” – (Freire, Geraldes). Apesar de ser filho do «catolicismo tradicional», o Pe. Alves Correia “rebentou as estreitezas do tempo e pensou largo” (Magalhães, Arlindo) porque – refere o Espiritano em «O Cristianismo e a Mensagem Evangélica» – “cerrar as entranhas às necessidades que os homens padeçam é fechá-las ao Pai dos homens”. Precursor das «revoluções posteriores», ele sentia a necessidade que a seiva do Evangelho e o sentido da igualdade sobrenatural dos chamados à vida divina “penetrem esta ordem temporal para a vivificarem e sobreerguerem”. De facto, uma concepção realista “da igualdade de natureza, se se quer que ela se estabeleça entre os homens de uma maneira bastante geral e com bastante firmeza para agir eficazmente sobre a civilização, não poderá ser senão uma concepção cristã dessa igualdade” – (Maritain, Jacques; in: «Princípios duma política humanista»; Tradução de António Alçada Baptista) Como todos os escritores independentes, viu a sua actividade literária vigiada pela censura do Estado Novo. De 28 de Dezembro de 1974 a 25 de Janeiro de 1975 a «Voz Portucalense» ressuscitou cinco artigos seus cortados pelo lápis azul. Um deles, talvez o mais emblemático – «O mal e caramunha» – chegou a ser publicado pelo jornal «República» em 1945. Neles, denunciava os erros, desvios, abusos do Salazarismo, como denunciaria hoje os “erros, desvios e abusos do regime que lhe sucedeu” (Rocha, Nogueira). Décadas depois, a Encíclica de Paulo VI «Populorum Progressio» sublinha que “combater a miséria e lutar contra a injustiça, é promover não só o bem-estar mas também o progresso humano e espiritual de todos e, portanto, o bem comum da humanidade”. Não foi este o trajecto pastoral do «Pe. Larguezas»? O imprevisível Concílio veio confirmar as suas previsões. «As dores de parto» Os homens de hoje ao lerem as palavras do «Pe. Larguezas» são levados a recordarem-se dos ensinamentos de S. Paulo quando escreveu aos Romanos que “a criação inteira geme e sofre como as dores de parto” (8, 22). Estas dores (de parto) encheram a vida deste filho de Aguiar de Sousa. “Foi verdadeiramente um homem que morreu sem parir. Paridas estão hoje as ideias: vamos ao Concílio e às Constituições das Nações e está lá praticamente tudo” (Magalhães, Arlindo). Luís Filipe Santos