Entrevista ao cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos
O cardeal Robert Sarah, o prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (Santa Sé), veio a Portugal falar sobre as suas preocupações com a “crise de Deus” no Ocidente e do seu percurso de vida, desde uma aldeia remota da Guiné-Conacri. Nascido em 1945, foi nomeado bispo por São João Paulo II em 1979, chegando ao Vaticano em 2001, num percurso que o levou a ser criado cardeal por Bento XVI em 2010.
Entrevista conduzida por Henrique Matos
Agência ECCLESIA (AE) – Como é que uma criança da Guiné-Conacri faz a descoberta de Deus na sua vida e chega a ser cardeal da Igreja Católica?
Cardeal Robert Sarah (RS) – Deus utiliza sempre pessoas para se dar a conhecer. No meu caso, foram os missionários Espiritanos que estavam na Guiné e me deram a conhecer o Evangelho e Jesus Cristo. Ensinaram-me a rezar, isto é, a encontrar Deus na oração. Através da Missa, porque era acólito, pouco a pouco, descobri quem era Deus. Da mesma forma, Ele suscitou em mim esta escuta do seu apelo para ser padre.
Ouvi este apelo e, naturalmente, julgava que não fosse possível para um africano, porque eu só tinha visto missionários. Quando falei disso aos meus pais, eles não acreditavam que isso fosse possível, foi o sacerdote que disse: “Sim, ele pode ser padre”. Foi uma surpresa.
AE – É fácil ser cristão na Guiné-Conacri?
RS – Não, porque o meu país é maioritariamente muçulmano, pelo menos 73% da população é muçulmana. 12% é animista. Apenas 3, 4% da população é católica e o ambiente nem sempre é favorável. Devo dizer, ainda assim, que tanto o Islão como o animismo tiveram sempre boas relações com os católicos, relações que nos estimulam a colocar Deus na nossa vida, no nosso trabalho, nas nossas relações. Na Guiné, a palavra Deus está sempre em primeiro lugar, por isso, apesar destas diferenças de credo, há boas relações entre nós.
AE – Por vezes, esteve mesmo em perigo…
RS – Sim, corri perigo do ponto de vista político mas Deus não permite que sejamos atingidos. Em abril de 1984, o Governo revolucionário da época [ditadura militar de Lansana Conté, após a morte de Sékou Touré, ndr], com outras pessoas, decidiu eliminar-nos, mas felizmente Deus não o permitiu, porque quem queria matar-nos acabou por morrer, durante uma operação. A pessoa que nos deveria prender caiu, magoou-se numa perna, foi levada para fora da Guiné para ser tratada e foi assim que escapamos.
AE – Foi um sinal de Deus?
RS – Foi um sinal de Deus, que me disse: “Eu protejo-te”. Eu não fiz nada, tudo o que fiz na vida foi feito por Deus, tudo aquilo em que me tornei, foi Deus que o fez. Eu sou natural de uma pequena aldeia, de uma pequena família, somos apenas três, sou filho único. Deus tomou este filho para o levar ao seminário, ele tornou-se padre, bispo, cardeal… Tudo isso foi Deus que o fez, eu apenas fui dócil ao que Ele quis fazer de mim.
AE – A Igreja Católica está a crescer em África, onde tem caraterísticas próprias. É uma lição para a Europa?
RS – Efetivamente, a Igreja cresce em África e é uma graça de Deus. Há um século, em 1900, havia só 2 milhões de católicos; hoje somos 200 milhões. É um crescimento extraordinário, com muitas vocações à vida religiosa e sacerdotal, muitas conversões. Apesar da pobreza, das doenças, da guerra, a Igreja cresce. Isso é um dom, uma graça de Deus.
Não temos lições a dar à Europa, o que temos ao nosso dispor é o que Deus realizou em África. Sei que Deus realiza sempre coisas magníficas com os pobres, com os que não têm nada, os que não são nada. Não temos lições a dar ao Ocidente, mas penso que este pode olhar à sua volta, para a Ásia, a África, para ver como é que estes continentes respondem ao Evangelho, respondem ao apelo de Deus, e, talvez, voltar à sua fé original.
AE – Fala-se numa crise de Deus no mundo ocidental. Qual é o papel dos cristãos neste cenário?
RS – Têm a missão de ser testemunhas, de manifestar a fé que têm Deus, pelo qual vivemos e nos movemos. Sem Deus, não saberíamos para onde ir, quem somos, porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus, Ele guia-nos, respeitando a nossa liberdade. Se nos separarmos de Deus, é como uma árvore sem raízes, morre. Se o rio não tiver uma nascente que o alimente, ele seca, já não tem água.
O homem não pode ter a pretensão de dispensar Deus sem correr o risco de morrer e de desaparecer, pela violência que ele próprio cria, as guerras, todas as situações de conflito, de barbárie. Foi o homem que criou tudo isso, porque virou as costas a Deus, porque pensamos que somos autónomos, independentes, que podemos fazer tudo o que queremos.
O cristão tem o dever, sem impor a sua fé a ninguém, de manifestar que Deus tem um lugar importante na sua vida.
AE – Relativamente ao seu trabalho no dicastério para a Liturgia, o que é que podemos esperar em termos de mudanças?
RS – O trabalho mais importante que estamos a fazer hoje são as traduções do Missal Romano em várias línguas. De momento, está apenas terminada e aprovada a tradução em língua inglesa, em vigor há mais de três anos. A linguagem da Liturgia, naturalmente, é uma linguagem sagrada, não é a linguagem que utilizamos num mercado. Mesmo que queiramos facilitar a compreensão, é preciso manter a sacralidade da Palavra de Deus, é preciso manter a sua beleza. A Liturgia tem de ser bela, tem de ser silenciosa, não barulhenta.
Esse é o trabalho que procuramos fazer, que a Liturgia seja verdadeiramente um encontro, face a face, pessoal, com Deus. Se a Liturgia não me coloca diante de Deus, se não me permite encontrar-me com Ele, não permite crescer na fé.
A Liturgia não é feita para mim, é feita para Deus, a fim de que Deus se revele e eu o possa conhecer. Portanto, é um ato de obediência: quando Deus me fala, quando me ordena algo, tenho de fazê-lo, por amor e por obediência a Ele. Não sou eu que tenho de inventar a Liturgia, não sou eu que a tenho de criar, mas tenho de entrar naquilo que a Igreja sempre viveu, desde os primeiros séculos.
AE – Pode dizer-se que a Liturgia perdeu a sua sacralidade nalguns momentos?
RS – Penso que alguns têm a impressão de que é preciso banalizar a Liturgia, é preciso coloca-la ao nível das pessoas, que seja compreensível. É verdade que temos de fazer que todos compreendam o que fazem durante a Missa, mas isso não deve acontecer em detrimento da sacralidade, do mistério. Se eu entrar no mistério, ele leva-me para a intimidade de Deus.
AE – É necessária uma pedagogia, em particular junto dos mais jovens?
RS – Sim, é preciso educá-los, formá-los para a Liturgia. Não só os jovens, mas todos, em primeiro lugar os bispos e os padres. Todos devem ser formados na Liturgia, porque é o momento mais precioso para os cristãos, é onde se encontram com Deus. Não para satisfação pessoal, mas para louvar Deus, para o adorar, para o descobrir. É normal que haja pedagogia, sem que esta seja prejudicial para a sacralidade e o mistério.
AE – No recente Sínodo dos Bispos sobre a família houve um grande debate sobre a situação dos católicos divorciados, a sua integração nas comunidades. Como é que viu esta discussão?
RS – A missão da Igreja é revelar o pensamento de Deus sobre o matrimónio, a família, a pessoa humana. O pensamento da Igreja não é inventar coisas, mas revelar o que Deus pensa. Por isso, a Igreja não pode inventar, para fazer bem ao homem deve dizer-lhe: Isto é o que Deus pensa, é bom para ti. Isso não significa que a Igreja não se deva interessar, estar próxima de quem vive situações difíceis, como por exemplo os divorciados que voltaram a casar. Como ajudá-los? Primeiro, promover a reconciliação, se for possível. Se isso não puder acontecer, ajudá-los a praticar a sua fé, a ir à Missa, a ensinar a catequese aos filhos. Naturalmente, não poderão participar no Sacramento da Eucaristia, porque não estão na disposição necessária para comungar, mas poderão perfeitamente estar na comunidade, participar na vida comunitária, na organização da paróquia.
AE – Aqui, em Portugal, estamos a caminhar para o Centenário das Aparições. Como vê a mensagem de Fátima?
RS – A mensagem de Fátima é tão clara, tão benéfica para a humanidade e para a Igreja, que penso que este centenário vai despertar em nós essa mensagem da Virgem Maria que pede conversão, que nos pede sacrifícios. É tão válida como há um século. O homem tem necessidade de romper com o pecado, converter-se, voltar para Deus, rezar pela sua conversão, fazer sacrifícios para a sua purificação, pela purificação do mundo. Espero que Nossa Senhora desperte a Igreja, a humanidade, para a sua mensagem.
AE – Como antigo presidente do Conselho Pontifício ‘Cor Unum’ [organismo da Santa Sé que coordena as atividades das organizações caritativas], qual é a sua opinião sobre o novo secretário-geral da ONU, António Guterres?
RS – É um grande privilégio, uma grande honra para Portugal poder dar o seu contributo ao mundo de hoje, para que este não se preocupe apenas com o sucesso material mas também com o sucesso interior. Um sucesso espiritual.
Portugal levou sempre o Evangelho a todo o mundo, em particular à América Latina. Esta função é também uma ocasião para que Portugal fale dos seus valores, fale da sua fé, para dizer que conserva a sua identidade católica, os seus valores católicos, universais, e que vai combater para proteger a família, proteger a vida, a dignidade da pessoa humana. Penso que é capaz disso.
Penso também que é bom que António Guterres diga que é cristão, que não tenha qualquer vergonha de ser cristão, pelo contrário. Sem impor a sua fé a ninguém, sem julgar-se superior, mas afirmando claramente que acredita em Deus e que acredita no valor que Deus nos deu para sermos felizes, humana e espiritualmente.
AE – Uma das questões humanitárias mais prementes é a dos refugiados que chegam à Europa. Como vê esta situação?
RS – O Ocidente não pode julgar-se inocente em relação ao que se passa hoje. Se há refugiados, isso deve-se, em boa parte, ao Ocidente, que destruiu o Iraque, a Líbia… Quem apoia hoje a rebelião síria contra o Governo estabelecido?
O Ocidente não pode dizer que está inocente do caos que se gerou à nossa volta. Naturalmente, eu desejaria uma solução para os refugiados na sua terra. Ninguém vai para o estrangeiro se puder ter trabalho, do quê viver, tranquilidade, paz. Mas se há guerra, é claro que as pessoas vão fugir. E quem faz a guerra? Quem fabrica as armas, quem dá as armas a quem não tem dinheiro para as pagar? Por quê motivo?
Nós somos todos responsáveis por esta situação, principalmente o Ocidente.