O Foco e o Fogo

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

O mundo encontra-se em chamas, «quer pelo aquecimento global, quer pelos conflitos armados» destacou o Papa Leão XIV na mensagem dirigida à 30.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas. Importa dar a este mundo um «sinal de esperança» na certeza de que quem quer cultivar a paz tem de proteger a criação. Perante as chamas do fogo do aquecimento e dos conflitos armados, o Papa coloca o foco da sua mensagem na protecção da criação para salvaguardar a paz: «Se quereis cultivar a paz, protegei a criação».

Quem não terá ouvido aquelas palavras titulares – “foco” e “fogo” – no mês abrasador que foi o passado Agosto quando as imagens dos incêndios nos entravam pela casa adentro ou quando lá, no campo, era necessário multiplicar os meios para não deixar alastrar um pequeno foco que despertara aqui e ali? Todos o soubemos, infelizmente. E mais o saberão, tristemente, os familiares daqueles que nesses incêndios perderam a vida ou de quantos perderam bens ou viram desaparecer o fruto do seu trabalho. O que nem toda a gente saberá é que os termos “foco” e “fogo”, que então tão associados se encontraram, nasceram do mesmo Latim que, para mal da nossa língua e cultura, quase deixou de existir nas nossas escolas.

Creio que foi no terceiro ano do então curso liceal – sétimo ano de escolaridade do sistema actual – que aprendi, com admiração e regozijo juvenis nunca perdidos, que havia muitas palavras que provinham do mesmo étimo. Se umas se foram transformando por via popular, outras desenvolveram-se por via erudita. Lembro-me de serem apresentados vários exemplos. Entre eles estava o caso de “foco” e “fogo”, exemplo que me ficou gravado na memória a lembrar o candeeiro a petróleo que iluminava a cozinha enquanto toda a família rodeava o fogo da lareira em que todos se aqueciam nos longos serões frios do Inverno beirão. Como que a acalentar o ambiente familiar, o termo latino ali se encontrava na expressão das duas palavras portuguesas: o “foco” do candeeiro que irradiava luz e o “fogo” da lareira que, enquanto aquece, aconchega e conforta é também “foco” da centralidade da família unida. Ambas as palavras têm origem no termo latino “focus”. Se “foco” chega ao nosso léxico por via erudita, conservando muita proximidade com a origem, “fogo” chega-nos por via popular: o “c” do latim “focus” evolui para o “g” do termo português.

A origem e o desenvolvimento de uma língua são um encanto para o espírito, se não perdemos também a capacidade de nos deslumbrarmos. Aí há mistérios escondidos que são milagres de vida que graciosamente nos são oferecidos sem merecimento algum da nossa parte. São também mistérios escondidos os problemas sociolinguísticos que acompanham os usos que fazemos da linguagem. São várias as palavras que entraram em força recentemente no dia-a-dia do nosso dizer. É o caso de “foco” e de “percepção”. Elas aí se encontram a constituírem-se como reflexo dos tempos e mentalidades do nosso viver.

A palavra “foco” é uma daquelas palavras que entrou em uso corrente tal que não será exagero dizer que ela está na moda desde já há uns bons anos, muito antes da palavra “percepção” tão frequentemente utilizada agora no espaço das discussões políticas. Ocasiões já houve em que o «foco» das conversas foi a «percepção» disto ou a «percepção» daquilo, ou que tudo se reduz, como já ouvi, a um problema de percepção, como que a dar razão   ao filósofo idealista irlandês George Berkeley [1685-1753] para o qual «esse est percipi aut percipere», ou seja, «ser consiste em ser percebido ou perceber» que é como quem diz «eu sou enquanto percepciono e os objectos são enquanto são percepcionados». Dito ainda de outro modo: o mundo é real na realidade das percepções de um sujeito que as percepciona. Tudo é percepção. E a percepção é um fogo abrasador quando ela se torna no foco dos nossos pensamentos e das nossas atenções.

Abstraindo das considerações metafísicas e epistemológicas desta filosofia do pensador irlandês, detenhamo-nos na dimensão pragmática das nossas vidas. Seja esse o foco deste devaneio nas letras do nosso dizer sobre o fogo, agora que o fogo dos fogos nos nossos campos se foi – e ainda bem -, vemos todos os dias fenómenos atmosféricos de consequências calamitosas e alastra tremenda e infelizmente o fogo da guerra enquanto as percepções dos altos responsáveis parecem andar obscurecidas pela cegueira das paixões.

Percpcionado ou não com clareza, as nossas vidas cruzam-se com o fogo, fogo real ou metafórico, e por isso ele foi ficando na História feita de lendas ou realidades interiorizadas, ou não, em complexos do nosso viver profundo. Não terá sido sem razão que o filósofo francês Gaston Bachelard [1884-1962], com clarividência e realismo, terá podido escrever na sua “Psicanálise do Fogo”: «Se aquilo que se modifica lentamente se explica através da vida, o que se modifica depressa é explicado pelo fogo. O fogo é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive no nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e oferece-se como o amor. Volta a tornar-se matéria e ocultar-se, latente, contido, como o ódio e a vingança. Entre todos os fenômenos, é ele realmente o único que pode aceitar as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Brilha no Paraíso, arde no Inferno. É doçura e tortura. É cozinha e apocalipse. É prazer para a criança que se senta com juízo à lareira; no entanto, castiga qualquer desobediência de quem pretende brincar demasiado perto das chamas. É bem-estar e respeito. É um deus tutelar e terrível, bom e mau.»[1]

Quem ousará desdizer o filósofo? Quem não tem a experiência das múltiplas percepções do fogo? A citação é longa, mas aí fica para ler e, com ela, meditar o mundo e a vida, conscientes da premente necessidade de reaprender a viver com o fogo, real ou metafórico, porque também as metáforas podem retirar lucidez ou perder muito do seu potencial significativo.

Se no passado Agosto o fogo foi foco das nossas percepções como um “inferno” abrasador, agora, que se aproxima o Inverno, vai-se sentindo a necessidade de um fogo acolhedor da lareira aldeã enquanto se pressente no ar um fogo mais destruidor, o fogo nuclear com que os “grandes” deste mundo parecem brincar como loucos.

Não deixará de ser oportuno lembrar que Gaston Bachelard refere, na obra citada, complexos humanos ligados ao fogo: o complexo de Prometeu ou o desejo de possuir o fogo contra a vontade dos deuses, como o titã da mitologia grega que o roubou desafiando a vontade de Zeus e o complexo de Empédocles, ou o desejo irracional de se deixar consumir pelo fogo, como o filósofo grego que se terá atirado para a cratera do vulcão Etna. Atrever-me-ia aqui a acrescentar o complexo de Heróstrato ou a busca da fama e glória a qualquer preço, mesmo que à custa da destruição, tal como Heróstrato quando ateou fogo ao famoso templo de Artemisa.

É sabido que muito – ou tudo – do nosso viver está lá, de um modo ou de outro, no íntimo pensar dos antigos clássicos, dos seus mitos ou das suas especulações. Não será difícil evidenciar como estes complexos ligados ao fogo se passeiam pelo nosso mundo. Em nós, ao nosso lado ou nos areópagos do poder onde muito se decide sobre o pão com que nos alimentamos, mas também sobre o fogo que destrói as searas da criação.

Quando o mundo se encontra em chamas, «quer pelo aquecimento global, quer pelos conflitos armados», como faz questão de lembrar Leão XIV, medito o fogo da sarça ardente de onde Moisés recebeu de Deus a missão de Libertador dos seus Irmãos e as Línguas de Fogo com que Deus encheu de Espírito Santo aquele grupo de Apóstolos de Jesus a viverem às escondidas com medo do que lhes poderia acontecer. E o fogo do Evangelho espalhou-se pelas nações, mas o fogo da paz nem sempre tem chegado aos poderosos deste mundo, presentes ou ausentes em conferências mundiais, sendo certo que as palavras do Papa constituem também uma mensagem dirigida aos moradores da Terra: «Se quereis cultivar a paz, protegei a criação.» Proteger a criação que é também salvaguarda dos pobres. Seja o foco do dizer também o foco do agir.

[1] G. Bachelard –A psicanálise do fogo, Est. Cor, trad. Maria Isabel Braga, [1972], p. 21.

 

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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