Diácono Tiago Torres, Diocese de Lamego
À medida que nos aproximamos do Natal, por mais que nos deixemos ofuscar pelas omnipresentes luzes e pelos clássicos musicais da época, vai sendo posto diante dos nossos olhos um verdadeiro escândalo, que não podemos ignorar: Deus, o Altíssimo, o Criador e Senhor de todas as coisas, nasce como criança indefesa na mais absoluta indigência – um de nós.
O Verbo faz-se carne, e Deus passa a habitar de uma forma absolutamente nova a História, já por si conduzida e habitada em ordem à salvação de uma Criação ferida e indigente. Habita-a em Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, não menos Homem por ser Deus, nem menos Deus por ser Homem, mas que nos seus gestos e palavras de humano revela o amor concreto de Deus que ilumina os olhos dos cegos, dá pão aos que têm fome, levanta os abatidos (cf. Salmo 145) e anuncia a todos a Boa Nova de uma vida redimida. E se os seus contemporâneos ficaram escandalizados pela possibilidade de Deus surgir, assim, num homem concreto, maior escândalo causa o culminar do seu percurso na absoluta doação através da absoluta humilhação da Cruz.
Contudo, o escândalo não fica por aqui. O concreto do mistério revelado em Jesus não se esgota em trinta e três anos do século I. Desemboca na comunidade dos que acolhem o dom. A Igreja, novo Povo de Deus, recebe na fidelidade à herança do Mestre esse conjunto de gestos e palavras que tornarão para sempre contemporâneos os gestos e palavras de Jesus e pelos quais cada humano de cada época tem acesso à presença e ação salvífica do Verbo Encarnado. É o conjunto de gestos e palavras a que chamamos sacramentos.
Que o desígnio salvífico de Deus se opere na desarmante simplicidade de determinados elementos materiais (água, pão, vinho, óleo, etc.) unidos a determinadas palavras, em gestos também eles determinados, pode parecer aos olhares mais distraídos como uma insultuosa limitação do poder de Deus e da sua transcendência, ou então como uma “crendice” mágica própria de tempos menos evoluídos.
O escândalo dos sacramentos, da Igreja, da Cruz e do Natal é o mesmo e está essencialmente no facto de Deus se auto-comunicar com absoluto respeito por aquela dimensão da natureza humana que os próprios humanos mais tendem a desprezar: que só através da realidade concreta e contingente se chega a captar algo de abstrato, universal ou eterno. Dito de outra forma, recorrendo às palavras do Papa Francisco, que a realidade é superior à ideia. (cf. Evangelii Gaudium 231-233) Esta ideia, que facilmente se torna desconfortável diante dos choques com a fragilidade da realidade por comparação aos nossos sonhos ideais, torna-se transparente nos sacramentos. Afinal, resulta clara a superioridade da Eucaristia em si a uma descrição do conceito de Eucaristia, por detalhado e certeiro que seja. Ou a superioridade do perdão realmente acolhido na Reconciliação sobre qualquer imagem mental do que significa perdoar e ser perdoado.
Mas há mais. Não bastando o escândalo de um Deus feito Menino, de uma salvação oferecida pelos gestos e palavras de um homem, atualizados num conjunto de gestos e palavras concretos, eis que estes – os sacramentos – são entregues para ser acolhidos em comunidade. Concretamente, na comunidade ferida que é a Igreja. Como compreender e aceitar, diante dos escândalos que assolam a Igreja, que nela se possa encontrar a presença e ação de Jesus pelos sacramentos? Talvez aqui se esboce com mais nitidez a semelhança com o escândalo da Cruz, onde o próprio Deus exteriormente humilhado, escarnecido, flagelado e crucificado oferece a salvação a todos. A comparação não serve para calar a pergunta, mas para procurar um caminho pelo qual, também hoje, entre as misérias da Igreja, se possa encontrar a luz do Ressuscitado. Sim, hoje, como há dois mil anos, Jesus continua a nascer e atuar no mundo, como nosso contemporâneo, através das suas palavras e gestos, dirigindo a cada um a mesma promessa: “Bem-aventurado aquele que não encontrar em Mim motivo de escândalo.” (Mt 11, 6)
Diácono Tiago Torres, Diocese de Lamego